domingo, 16 de novembro de 2014

Educação Amorosa: Sobre o isolamento

Sex and City eram as meninas da tribo, era óbvio que eu não jogava esse jogo. O desejo delas era o mesmo que as quatros mulheres, andando em Nova York, tinham. Nas meninas da tribo, as quatro meninas já existiam, eu era a quinta, ou seja, eu era o resto da brincadeira, tanto faz como tanto fez não estar presente. Elas desejavam andar pela cidade, ser amada desesperadamente, falar de sexo o tempo inteiro, ter dinheiro para comprar alegrias e inventar regras ou calendários para viver a vida. 

Eu sempre quando me defini, pensava que poderia ser a Phoebe de Friends, mas eu não era nada na tribo das meninas. A Phoebe era Miranda, a Rachel era Aninha, a Mônica era Alice. Eu era uma espécie de fantasma que escutava pacientemente as confissões amorosas dessas meninas, (quando elas sentiam vontade também de contar seus anseios. Eu não era a única desconfiada da turma). Ficava muito triste às vezes, sem entender o motivo.

Acontece que nós somos aquilo que a nossa imaginação nos define, como somos animais que vivem em sociedade, a imaginação não é cem por cento individual, por isso, a imaginação dos outros também interfere na nossa. Se não entramos na brincadeira dos outros, não entraremos nunca. 

Eu era uma anônima. Apenas isso. Os signos já estavam postos, não estava sonhando junto com elas, não estava desejando os mesmos desejos, não estava brincando a mesma brincadeira. A rede de significados estava pronta antes de mim. Portanto, inventei a minha rede particular que costumava comunicar com as paredes. Eu me isolei. 

Fora da escola, fiz os meus melhores amigos; dentro da escola, eu era um número de matrícula. 

Sétima Lição - aprendendo sobre solidão 

Alice e Miranda estavam bravas comigo, porque eu tinha falado alguma coisa que elas não gostaram. Eu virei amiga íntima da professora de Educação Artística, a única com quem eu conversava e me abria na escola era essa professora chamada Antônia. Ficava ansiosa para chegar o dia da aula de Educação Artística. Em casa, as coisas não estavam boas também, precisava conversar com alguém. Por isso, eu passei a escrever diários, poesias e desenhar todo o dia para passar o tempo das intermináveis aulas vagas. 

Alice me ignorava. Miranda descia comigo até a minha casa sem falar uma palavra. Fiquei um mês sem conversar com Miranda e dois meses sem conversar com Alice. Se perguntarem o motivo dessa briga, eu vou dizer que não me recordo. Provavelmente, eu falei alguma coisa que elas não gostaram, as duas não tinham a minha mania de guardar raivas, por isso, ficamos sem conversar.  

Então, eu fiquei sozinha. Ou melhor, eu entendi que, na realidade, estava sozinha o tempo inteiro. Em casa, as coisas estavam piorando, precisava desabafar com alguém, caminhava firme até a escola, sentindo o peso de não comunicar as minhas angústias. Alice passava próximo rindo, Miranda ignorava a minha presença totalmente. Eu colocava meu rosto entre os braços, esperando morrer ou matarem meus medos. O tempo da escola era eterno, eu tinha a sensação que nunca ia conseguir sair daquele lugar, nunca ia acabar com os meus medos, sempre precisaria correr atrás dos outros para ser aceita. Estava ficando cansada de brincar de anulação. 

- tá tudo bem, Bruna? - perguntou Antônia
- não está muito não, - eu disse, - eu estou sozinha, professora 

Ela olhou para mim com sorriso fraterno. 

- aconteceu alguma coisa? - ela perguntou
- eu acho que eu fiz alguma coisa errada, estou brigada com algumas amigas, elas não estão falando comigo 
- que você fez? - Antônia perguntou
- eu acho que falei sem pensar alguma coisa que elas não gostaram 
- por que você não pede desculpa?
- elas não tão olhando pra minha cara. Ah tudo bem! - com voz chorosa, - se fosse eu, não ia ficar quase dois meses sem conversar com a outra, eu ia tentar esquecer e continuar
- vocês tão quase dois meses sem conversar?
- é 
- pede desculpa, Bruna!
- ah, eu sou ignorada, - ansiosa, perguntei, - professora, será que, um dia, eu vou me sentir menos sozinha? 
- estamos todos sozinhos, Bruna - ela disse, piscou os olhos para mim e foi tentar lecionar para turma. 

Naquele dia, eu fiz um desenho bonito, pintado de azul com bolinhas amarelas. Senti alguma alegria no meio disso tudo, senti que fui acolhida. No dia seguinte, consegui pedir desculpas para Alice, Miranda voltou a conversar comigo e voltamos a rotina. Elas falavam, enquanto eu me distraía com as nuvens. Com alguma diferença, senti que não era impossível viver sem a opinião delas, senti que precisava ficar mais calada e passei a me acostumar com a minha condição de não pertencer à tribo. A solidão não era mais dolorida.  

- eu jamais conseguiria ficar sozinha, Miranda, - disse Alice 
- eu também, preciso ficar com algum menino - disse Miranda

Eu sorri. Pela primeira vez, senti que o meu passo não era manco, o descompasso entre nós não era um abismo. Eu falei:

- eu consigo ficar sozinha - disse 
- eu não sou o tipo de mulher que consegue ficar sozinha, Bruna, preciso de um homem, - disse Alice 
- eu sei ficar sozinha, não preciso de homem. A gente estamos sozinhos, nascemos sozinhos e vamos morrer sozinhos. Acho que cês deviam aprender a ficar sozinhas, acho que essa devia ser a primeira lição 

Elas olharam incrédulas. Alice ignorou a minha frase, começou a descrever as linhas do corpo do cantor preferido dela. Miranda bateu as palmas das mãos nos meus joelhos, enquanto eu sorri. As nuvens desapareciam, a melhor coisa que eu aprendi na escola foram os meses que não conversei com essas meninas. Ficar sozinha seria difícil, mas não impossível, a sensação de bem estar que eu tive depois que voltamos à rotina de anulação; essa descoberta que eu tive que não precisava me esforçar para ficar com ninguém, não precisava me anular. A professora Antônia me deu o melhor ensinamento, o mais libertador de todos: estamos todos sozinhos. 

De repente, percebi que o peso não era só meu.  As meninas também se anulavam para ser o que elas eram, elas também sentiam medo de ficar sozinhas. Para ficar com alguém, as meninas da tribo eram capazes de inventar regras, calendários e sonhos deslocados da realidade só para sentir um pouco de amor. A anulação não era privilégio somente meu, eu dei um salto manco pela primeira vez. Senti que estava entendendo. Eu estava sozinha, mas não estava triste. 

Durante esses dois meses que fui ignorada, não conversava com as meninas da tribo, andava com passos firmes até a escola, desejava morrer e desejava matar. Me escondia na biblioteca, colocava meu rosto entre os braços, escrevia furiosamente e desacreditava que o mundo havia alegrias. Eu senti que seria eterna a escola, senti que não ia conseguir. Mas, é sempre assim, nós nunca achamos que podemos dar o outro passo, aí conseguimos e caminhamos um passo a frente. A vida é violenta, mas é ótima! 

Eu ri percebendo que estava na melhor fase da minha vida. Ri distraída, olhando os rostos daquelas meninas que, provavelmente, nunca mais ia ver. Ri catando as nuvens que estavam na minha imaginação, descobrindo que a beleza era ter o que não sabia. Nós conversávamos ali, era uma cena efêmera, ninguém notaria. Alice deu gargalhadas, Miranda chorou, porque tinha terminado com Caio. Estávamos conversando sobre as nossas vidas, nunca mais conversaríamos assim de novo. Era um momento frágil. 

Alice era uma menina frágil que gargalhava. Miranda era uma menina frágil que chorava. Eu era uma menina frágil que brincava. As três estavam sozinhas, fazendo monólogos que tentavam ser diálogos. Ninguém conversava com ninguém, as três viviam imersas nas suas solidões. Eu ri, tudo pareceu cômico demais, pueril e passageiro. Alice disse:

- eu vou casar com ele - mostrou a foto do cantor favorito, - ,ter filhos e ser muito feliz. Vocês conseguem imaginar como vai ser a vida de vocês daqui a dez anos?

- eu vou casar com Caio - disse Miranda
- eu vou fazer cinema - disse 
- mas, casar você não vai casar, não? - perguntou Alice 
- eu não sei, não tô pensando muito nisso 
- mas você não se imagina com ninguém? - perguntou Miranda
- eu não sei, talvez 
- não, Bruna, você tá sendo muito derrotista, - disse Miranda, - você vai casar, ter filhos e ter muito sucesso 
- tomara, mas não tô muito contado com isso em casar e ter filhos, sei lá. Eu só não sei o que vai acontecer. Vocês não acham isso bonito?
- o quê? - perguntou Alice
- não saber o que vai acontecer. Puxa! Tudo pode acontecer com a gente, tudo! Vocês não acha isso engraçado? Vocês não acha isso incrível? Sei lá, alguém aqui pode ser uma assassina, alguém aqui pode publicar um livro, alguém aqui pode viajar o mundo inteiro, pode casar ou ter filhos. A gente não sabe, não é bonito?

Desconfiadas, elas me olharam. Eu continuei rindo para as nuvens. 

- que é? Eu falei algo tão estranho? - perguntei 
- não, não é isso, Bruna, - disse Alice, - eu sei que eu vou casar e ter filhos. O meu destino é esse, já nasci pronta pra viver isso 
- e todas nós, mais cedo ou mais tarde, vamo casar e ter filhos, Bruna, não adianta fugir - disse Miranda
- tudo bem, vamo casar e ter filhos. Mas, até lá, tem um espaço um branco imenso nas nossas vidas, tudo pode acontecer - disse 

Elas ficaram perplexas. Eu fiquei rindo, senti que, pela primeira vez, que o mundo era mais imprevisível do que eu imaginava, foi um sentimento libertador. O formato das nuvens era de algodão, senti desejo de viver e seguir as linhas em branco. Ri catando as nuvens. 

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