Aceitar o deslocamento foi a coisa mais difícil que fiz na escola. Mesmo percebendo a impossibilidade de pertencer à tribo das meninas, ficava com a esperança de um dia fazer parte; elas sentirem amor por mim.
Quando eu já não me importava mais andar junto com elas. A Alice me disse que Aninha estava achando que eu tinha ficado legal. Fiquei curiosa, quer dizer que antes, eu não era legal, era uma menina chata? Deve ser, afinal, eu não era da turma.
Andar sem tribo era mais difícil, às vezes, eu tinha vontade de contar as minhas impressões de desenhos animados, filmes e desabafar com alguém a respeito das brigas que havia em casa entre meus pais. Ficar sozinha era dolorido, sentia que ia perdendo o sorriso, quando chegava próximo da escola. Nas aulas vagas, nem pensava duas vezes, me escondia na biblioteca.
Virei amigo de um menino negro que não tinha tribo também, chamado Kevin. Na realidade, conversávamos sobre equação do 2º grau e equação do 1º grau. Às vezes, trocávamos figurinhas do Yu Gi Oh. O menino gay, que era chamado Rafael, também conversava comigo na escola. Falávamos sobre a novela Betty, a feia. Os risinhos debochados e as piadinhas desnecessárias ainda existiam, principalmente, porque eu andava com esses meninos.
Às vezes, os amigos de Caio brincavam falando: eh, Rafael, agora você achou uma namorada, viu. Eu ficava nervosa, mas, de certa maneira, já tinha acostumado ouvir imbecilidades daquela turma. Assim, passaram os dias, aprendendo que eu era um número de matrícula e vivendo o tédio.
Décima lição - vivendo o tédio
Como não fazia mais questão de conversar com as meninas da tribo. Não fiquei sabendo do desenvolvimento amoroso de cada uma delas, ia para escola fingir que estudava, contando nos dedos para as aulas acabarem e ir embora. Principalmente, nas quintas-feiras, porque eu tinha começado a fazer curso de teatro. Era o dia que me dava mais alegrias.
Mas, não era quinta-feira, era mais uma temorosa e difícil segunda-feira. Pelo menos, estava calor. Nas segundas-feiras, eram as aulas de educação física. Os meninos eram os donos da quadra, as meninas ociosas olhavam os meninos jogarem futebol. A escola parecia eterna, já tinha decorado os sons monótonos do futebol dos meninos, o tom dos risos debochados e os olhares eternos das meninas ociosas nas escadas. As nuvens não estavam bonitas para observar, contava os números de tijolos que tinha no muro à frente. Contava e recontava, esperando a escola acabar.
Gustavo era o menino novo, já tinha encontrado uma turma, sentou-se próximo de mim. Parecia que esperava alguém, não perguntei, continuei contando e recontando os números de tijolos.
Gustavo era o menino novo, já tinha encontrado uma turma, sentou-se próximo de mim. Parecia que esperava alguém, não perguntei, continuei contando e recontando os números de tijolos.
- sabe o que é isso? - perguntou Gustavo, mostrando algo na carteira
Eram camisinhas. (Não é que eu não sabia o que eram camisinhas. Minha mãe nunca teve cerimônia para discutir sexo comigo, mas eu nunca tinha tocado nelas). Gustavo mostrou-me, como se contasse um segredo de Estado, fiquei curiosa.
- pra que você tá carregando elas na carteira? - perguntei
- pra fazer balão - ele riu
Eu ri também e disse:
- quando eu tinha seis anos, eu encontrei sem querer uma camisinha na carteira do meu primo
- e aí?
- aí, eu perguntei pra ele o que era aquilo? Ele me disse que eram chicletes. Então, eu fiquei com vontade de mascar um.Aí, eu pedi um pra ele, né
Gustavo riu, como se eu tivesse contando uma piada.
- você tá brincando, não?
- não, na infância, acreditei que isso era um chiclete. Aí, sabe que aconteceu depois que pedi um chiclete pra ele?
- ele riu de você?
- também! Ele me disse que isso era um chiclete de adulto que eu só podia comer depois dos meus trinta anos
Gustavo riu. Eu nunca tinha feito um menino rir na minha vida. Senti prazer pelo riso verdadeiro. Ele era um menino com dentes tortos, alto demais, atrapalhado demais para sua altura, desconjuntado. Naquele dia, eu achei, pela primeira vez, alguma beleza entre os meninos da escola. Gustavo tinha uma energia contagiante, as meninas eram maluquinhas para ficar com ele. Entendi logo o motivo, era um rapaz encantador. O que eu dava risada apenas era quando elas diziam que Gustavo era o menino mais bonito da escola. A vontade que eu tinha era dizer: bom, depois, sou eu quem não sabe escolher meninos.
Pedro, amigo de Caio, aproximou-se. Gustavo estava me contando sobre a escola particular que tinha sido expulso, as diferenças entre estudar aqui e lá, os amigos que tinha deixado e etc. Quando Pedro chegou perto de nós, ele contou uma piada desnecessária: você gosta mesmo de homem, Gu, tá perto do Tévez. Eu me calei, senti ódio e me afastei imediatamente da presença de Gustavo.
Voltei a contar e recontar tijolos, sentindo vontade de chorar e engolindo o choro para não sentir vergonha. Gustavo tinha guardado as camisinhas, olhou-me fraternalmente, esperou que Pedro se distraísse. Fiquei curiosa com a atitude, olhei a cena. Gustavo pegou um balão branco, encheu com a boca e soltou próximo do ouvido de Pedro.
Pedro pulou assutado e gritou: mas, o que é isso?
Gustavo disse: é a camisinha que usei ontem!
Gustavo deu gargalhadas, piscou o seu olho direito para mim. Eu ri muito e voltei a recontar e contar tijolos. Começou a chover, a Educação Física acabou de repente. Me senti vingada, subi até a sala de aula. Naquele dia, eu gostei de Gustavo. Nunca mais conversamos. Ele passou a ficar com a Mariana da outra sala, que andava com a Joyce, (uma moça que quase me bateu um dia).
No dia seguinte, havia burburinhos que Gustavo estava fazendo sexo oral atrás do muro da escola com uma menina que não era a Mariana. Sempre quando ele passava perto de mim, soltava os seus dentes tortos e me abraçava com o sorriso. Ele ficou mal visto pelos professores e pelas meninas da tribo também. Eu, desde aquele dia, guardei o seu olhar fraterno e a proteção que ele me dera sem pedir.
Foi a única vez que conversamos. Dias depois desse acontecimento, o mundo estava exatamente onde tinha que estar. Eu usava uniformes, caminhava até a escola, esperava o tempo da escola acabar, deitava o meu rosto entre os meus braços, contava as minhas impressões sobre os capítulos da novela para Rafael, trocava figurinhas com Kevin, estudava equações do primeiro grau. Contava e recontava tijolos. O clímax da minha vida era a hora da saída.
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