Estamos encaminhando para o final. Mas, não podia terminar essa série sem falar da professora mais marcante do Ensino Fundamental, a professora de matemática Maria Antonieta. Eu estou falando de todas as formas de amor, inclusive daquela que foi fundamental para mim na Escola (apesar de tudo), o amor que eu tinha pelos estudos.
Sempre ouvi de professores de teatro, que eu tive, a seguinte frase: "teatro é uma merda, então é bom ter tesão pra fazer". Da professora de matemática, eu aprendi outras coisas, entre muitas, a ter persistência e paciência. Faço questão de contar a vocês um episódio marcante.
Décima quarta lição - nota baixa em matemática
Um dos meus contos preferidos de Clarice Lispector é Os desastres de Sofia, porque me identificava muito com a descrição de Sofia. Clarice descreve a personagem condutora da narrativa como alguém que tinha tendência para o mal, uma criação desastrada de Deus. Sofia é "como um talo de begônia". Begônia é uma flor miúda que costuma nascer em conjunto, são flores graciosas e belas demais, o talo é muito forte e grosso, mas não é nada atraente. As begônias parecem pérolas da natureza, prendidas por uma monstruosidade e feiura que são os seus talos.
Não há uma descrição mais perfeita do que essa para dizer o que eu sentia nesse momento da minha vida. Me sentia como um talo de begônia, uma criação desastrada de Deus, uma brincadeira de péssimo gosto que esse Deus inventou. Os desastres de Sofia narra uma relação entre um professor de português e uma aluna. Sofia narra os acontecimentos da infância, já na fase adulta, quando ela descobre que o professor de português mais marcante na sua vida havia morrido.
Recentemente, minha mãe se encontrou com essa professora de matemática. Ela já é uma senhora aposentada. Fiquei muito feliz com a notícia, perguntei como ela estava. Minha mãe disse que ela estava bem, informou que eu estava fazendo graduação em Letras e, (pasmem!), Maria Antonieta respondeu que eu devia ter feito matemática, porque eu fui uma grande aluna.
Dei risada com essa notícia. Dias seguintes, não soube da Professora Maria Antonieta. A lembrança que eu tenho das aulas de matemática é que eram as únicas aulas respeitadas pelos alunos. Quando a senhora Maria Antonieta entrava em sala de aula, o silêncio era monumental. A professora de matemática não precisava fazer esforço nenhum para conseguir a atenção dos alunos, não precisava gritar. Eu morria de medo da professora Maria Antonieta.
Além de morrer de medo, não tinha mesmo facilidade com os números. A primeira prova que fizemos com Maria Antonieta, eu tirei dois e fiquei muito triste. Ela tinha uma técnica interessante para passar prova, mandava-nos cortar uma folha do caderno ao meio e pedia que nós respondêssemos duas perguntas no máximo. Ela sempre dizia: não é quantidade, é qualidade; se vocês não conseguem responder uma, vocês não vão responder dez problemas de matemática.
As meninas da tribo eram alunas medianas, tiravam até cinco. Miranda conseguiu tirar a nota seis na primeira prova que fizemos com Maria Antonieta, ela detestava no fundo da alma essa professora. Eu sentia medo, estava triste, fiquei com vergonha de mostrar a minha nota baixa. Escondi a prova no fundo do meu caderno.
A professora Maria Antonieta passava pelos corredores, sempre olhava para mim com autoridade. Eu cumprimentava e andava até a Sala de Aula com a cabeça baixa. Um dia, ela passou por mim, deu um sorriso tranquilo, eu fiquei com a cabeça baixa. Alice era a minha melhor amiga das meninas tribo, ainda falávamos às vezes, constantemente, dizia que precisávamos estudar matemática.
Eu me esforcei muito para aprender matemática, tinha mesmo muita dificuldade. Alice estudava comigo, quando sentia vontade. Às vezes, ela tentava fugir das brincadeiras insuportáveis da turma do Caio, por incrível que pareça, Alice se escondia comigo, quando queria fugir. Eu não andava mais com tribos. Ela falava o tempo inteiro do Doce de Leite. Eu estudava equações de primeiro e segundo grau.
Depois de tanto estudar matemática, consegui encontrar prazer nos números. Eu até conseguia me divertir com os números e os problemas de matemática. Conversava demais sobre matemática com Kevin e Rafael, (hoje, já não me lembro mais de nada, além do raciocínio) . No dia da minha segunda prova de matemática, fiz a avaliação tranquilamente. Entretanto, eu esquecera de escrever o meu nome. A professora Maria Antonieta não aceitava de jeito nenhum provas sem nome, ela já tinha avisado que reprovaria aluno, se isso acontecesse. Afinal, prova é documento, não pode esquecer de assinar nome em provas.
Dias seguinte, já tinha aceitado a minha condição de reprovada em matemática. Estava triste, mas não tinha muito o que fazer. Então, a professora Maria Antonieta chegou na sala de aula, sentou na cadeira, abriu o diário de classe e começou a discursar sobre as avaliações que os alunos fizeram.
- bem, gente, tem duas avaliações aqui na sala que estão sem nome - ela disse, - isso é um problema. Porque o único nove que tem aqui, é uma avaliação sem assinatura. Vocês sabem qual é a minha política de provas, não é? Mas, vou abrir uma exceção.
Ela mostrou as duas provas. A primeira prova tinha nota oito e meio; a segunda prova tinha nota nove. A única nota nove da sala de aula era a nota da minha avaliação, quando eu a vi, fiquei apavorada e senti raiva da minha distração.
- é o seguinte - Maria Antonieta explicou -, os dois alunos aqui dessa turma que esqueceu de colocar o nome da prova, eu quero que vocês se apresentem e venham aqui até a minha mesa
Os dois alunos eram eu e o Kevin, (meu amigo negro que jogava Yu Gih Oh comigo). Nos aproximamos lentamente da mesa da professora de matemática. Eu senti que a respiração de Kevin ia sumir, por outro lado, a minha ia explodir. Estava muito nervosa, as minhas mãos tremiam descontroladamente. Chegamos próximo da figura monumental e silenciosa de Maria Antonieta.
- quero que vocês tiram par ou ímpar para ver quem vai pegar primeiro a prova de vocês - ela disse
Kevin estava sem ar, levou-lhe a mão direita até as costas. Eu observei e repeti o mesmo gesto. Contamos até três, foram os minutos mais longos da minha vida. Um, dois e três. Kevin tinha pedido par, eu tinha pedido ímpar. Eu perdi o jogo. (Jogo é jogo!).
- ótimo, Kevin, qual é a sua prova? - Maria Antonieta perguntou
- é essa aqui! - ele disse apontando
Era a prova que tinha a nota oito e meio. Kevin, assustado, pegou a prova, mas, antes de ir, a professor de matemática fez um comentário:
- se eu fosse você, pegaria a prova com nota nove, já que ela está sem nome
Kevin riu e fez o caminho épico até a sua carteira. Eu ia colocar as mãos na minha prova, quando a professora Maria Antonieta disse:
- essa prova é sua, Bruna? - ela perguntou
- é sim, professora - ela disse
- na próxima vez, não esqueça de assinar o nome
- tá bom, professora
Ela me deu um sorriso tranquilo. Eu senti carinho e amor por aquele sorriso, com as mãos trêmulas e atrapalhadas, peguei a prova, sorri de volta e sentei até a minha carteira. Passei a amá-la e respeitá-la, porque teve a capacidade de jogar no lixo suas próprias regras para aumentar a confiança de dois alunos. Não é questão de ser um grande professor, com uma grande bagagem teórica, é questão de olhar ao próximo e dar um sorriso tranquilo, mesmo assumindo a posição mais alta da hierarquia. A professora de matemática, desde aquele dia, tinha deixado de ser um monstro inacessível para ser um simples pessoa que lecionava matemática.
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