Estamos chegando no final da série Educação Amorosa, lembrando que estou falando apenas do Ensino Fundamental, não escrevi nada sobre o Ensino Médio. A proposta inicial foi escrever Educação Amorosa como meio de exercício da minha narrativa, porque ainda tenho vontade de escrever um guia de sobrevivência da escola, aí incluiria as aprendizagens do Ensino Médio. (Mas essa ideia fica para depois).
Mais ou menos, as lembranças mais marcantes nesses textos estão localizadas entre a quinta série até a oitava série. Me propus a escrever dezesseis aprendizagens que eu tive sobre a minha educação amorosa na escola. Há mais, porém é impossível escrever tudo, nem sempre sabemos filtrar tudo que ficou em nós. Existe muita ficção no meio desses textos também. A memória é arbitrária, inventa as coisas de acordo com a nossa maneira parcial de enxergar o mundo e (re)interpretá-lo. Essa é imagem que eu tenho da escola, mas se perguntassem para Alice, por exemplo, tenho certeza que ela teria outra história para contar.
Daniel foi se afastando de mim. Eu fui me afastando das meninas da tribo e dos meninos da minha rua. Assim, minha descoberta do mundo implicou no abandono de uma tribo para definir os meus sentimentos e medos. Mesmo assim, é curioso! Durante dois ou três anos, escrevi várias vezes no meu diário do Ensino Fundamental que o meu sonho era ter uma turma de amigos que eu pudesse me sentir acolhida e ser aceita. (Consegui essa turma no Ensino Médio, mas essa história fica para depois).
Alice sempre costumava me dizer que quando eu beijasse na boca de um menino, não poderia deixá-lo passar a mão na minha bunda. Eu dou muita risada, quando me recordo desse ensinamento tão sério de minha querida Alice. Na adolescência, que acreditamos nessas coisas, um beijo na boca pode ser só um simples beijo, sem segundas intenções. Talvez, acreditemos nisso, porque alguns dos meninos que beijamos na escola, também estão beijando pela primeira vez. Na verdade, é tudo uma bobagem. Imagina só que a nossa maior preocupação, quando beijávamos um menino na boca era não deixar passar a mão na bunda. Mal imaginávamos que esse era o menor dos nossos problemas, porque não sabíamos as maravilhas de uma menstruação atrasada, ainda não tínhamos ideia desse conhecimento, dessa neura e o que ela pode acarretar para uma semana.
Nesse episódio, vou contar o último primeiro beijo que eu recebi, quando estava na escola. Último, porque foi a surpresa dos últimos momentos que estudei numa escola pública. Primeiro beijo, porque sempre quando me perguntam do meu primeiro beijo, eu conto essa história.
Décima quinta lição - o último beijo na boca
Era uma quarta-feira, seria aula de química. Cabulei aula sem pensar duas vezes, marquei um encontro com um menino que conhecia do curso de violão. Ele tinha um nome engraçado, era chamado Robério. Ele tinha cabelo ruivo, era negro, alto demais e tinha dezoito anos. Saímos para tomar sorvete e conversarmos sobre música.
As meninas da tribo nem imaginavam que eu estava cabulando aulas; muito menos, imaginavam a história do Robério. Nunca contei para elas, passei a saber menos da vida amorosa de cada uma e isso era recíproco. Cada dia mais, elas sabiam menos de mim.
Quando cheguei na pracinha da Tiradentes, eu o vi me esperando. Robério estava lindo, tinha uma cabelo vermelho fantástico. O vento amassava a sua camiseta preta. Era uma camiseta da banda Capital Inicial. Eu olhei-lho e pensei: mas nunca que ia ficar com um menino bonito desses. Fui crente que ia encontrar um amigo e tomaríamos um sorvete inocente, na esperança do tempo passar rápido para chegar em casa na hora da saída.
Não conhecia a autora Ángeles Mastretta na minha adolescência, mas ela disse uma das frases mais importantes da minha vida, no livro Mal de Amores, que me apropriei para explicar coisas que parecem tão inexplicáveis: não esperava encontrar-se com alguém daquele jeito, tinha previsto dar com um gringo de espírito indiferente, e outra vez, teve que reconhecer a verdade numa das frases de Milagros: a vida foi feita para nos desconcertar.
Robério me desconcertou. Passeamos lado a lado, eu estava descomprometida com as possibilidades de viver um romance adolescente. Não imaginava nem que, a essa altura, poderia conseguir um beijo na boca sem a ajuda das meninas da tribo para empurrar garotos que sobravam.
- você gosta de Capital Inicial? - ele perguntou
- ah, gosto sim, eu sei tocar Tudo que vai, - eu disse
Ele sorriu e tirou o meu cabelo dos meus olhos. Eu disse:
- não sei fazer solos de guitarra
- ah, tem que estudar bastante, eu consigo fazer um dos Guns and Roses
Eu preferia tocar tears in heaven, de Eric Clapton, do que tocar qualquer música de Guns and Roses. Porém, eu balancei a cabeça, concordando com a dificuldade de tocar os solos dessa banda. A cada momento que meus cabelos cobriam os meus olhos, Robério afastava os fios de cabelo dos meus olhos.
- poxa, você tem um sorriso lindo! - disse
- ah, obrigada - eu respondi
Fiquei sem jeito com elogio. Nunca havia sido elogiada gratuitamente. O vento ficou muito forte, as horas passaram muito rápido. Caminhamos até o ponto de ônibus. Nós precisávamos pegar conduções diferentes. O ônibus dele foi o primeiro que passou.
- ei, você não vai pegar esse aí? - perguntei
- ah, depois passa outro, tô sem pressa - ele disse
- ah, então, tudo bem
Ficou um silêncio constrangedor. O meu ônibus não costumava demorar para passar. Naquele dia, ele demorou mais para chegar. Olhava o Robério. Cabelos ruivos, sorriso safado, camiseta amassada, um leve crescimento de barba no queixo e uma voz rouca inesquecível. Me calei contemplando-o. Ele percebeu que eu estava calada demais, percebeu que eu estava olhando demais. Fiquei sem jeito, mudei o meu foco e passei a olhar os dedos dos meus pés.
- que foi? - ele disse
- ah, nada, eu preciso comprar tênis novos
- ah, estão bons
- é, mas já tá furado, olha só - levantei o pé para mostrar
Ele riu. Aí, aconteceu o inesperado. Meus cabelos cobriram o meu rosto, ele sempre afastava-lhos. Porém, dessa vez, não foram os meus olhos descobertos, alguns fios de cabelo cobriram a minha boca. Foi um gesto delicado, Robério tirou os fios de cabelo, descobrindo a minha boca. Naturalmente, uma coisa levou a outra, ele descobriu a minha boca, ficamos lábio a lábio, deu um beijo de leve, como se pedisse permissão para entrar, eu deixei entrar e, em troca, nos beijamos.
Foi um longo beijo gelado, dele guardei o cheiro forte de colônia. Ele amassou os meus cabelos, eu segurei forte a sua camiseta. Foi tão natural que, ao acabar o beijo, fiquei sem graça. Como é que eu tinha feito aquilo? Como é que eu respirei? Como é que vou olhar para esse moço depois? Robério permaneceu sólido, olhando-me inquieto e perdido. Riu para disfarçar.
De longe, vi o meu ônibus chegar. Dei outro beijo nele e entrei no ônibus. Ele se despediu de mim com as mãos. Pela janela do ônibus, me afastando desse moço bonito, vendo-o ficar pequenininho. Senti uma alegria estonteante que quase senti vontade de chorar. Minhas mãos tremiam muito. Dias seguintes, Robério tinha desaparecido do curso de violão, nunca mais o vi.
Acho que era para ele dar esse beijo e ir embora sem explicações. Acho que foi uma surpresa da vida para me mostrar que ainda estava muito cedo para desacreditar. Acho que foi um desconcertamento efêmero mais fantástico que guardei na minha adolescência. Acho que foi o meu último primeiro beijo inocente que dei em alguém. Acho que foi uma experiência curta que valeu mais a pena do que muitas outras que tinha ouvido. Não interessa o que eu acho, o importante é o que fica. O que ficou para mim de Robério, foi o seu gesto efêmero e delicado que calou-me por segundos.
A vida é muito malandra mesmo.
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