terça-feira, 11 de novembro de 2014

Educação amorosa: A Educação Física

Continua a série, vamos a segunda lição sobre a educação amorosa nas escolas.

Lição do dia: A Educação Física - aprendendo a mentir 

Em qualquer livro de História ou ficção, há um evento que reúne as pessoas e personalidades de uma sociedade, esses eventos são produtivos para observar as diferenças sociais e os pensamentos comuns de um grupo social. No drama Romeu e Julieta, a festa foi o evento que reuniu as duas personagens marcantes dessa tragicomédia shakesperiana. O evento marcante em Casa de boneca que possibilitou o divórcio de Nora também foi uma festa.

Nesse caso, o evento que reuni as personagens e os acontecimentos dessa tragicomédia, narrada por mim, é a aula de Educação Física. Nada mais e nada menos. Essas aulas eram consideradas semelhantes às aulas vagas. O conceito de aula vaga lhe pareceu estranho? Você que lê esse texto e não faz a mínima ideia do significado de aula vaga, então, não deve saber o que é uma escola. Se não consegue entender esse conceito, possivelmente, meu caro leitor, você nunca frequentou uma escola pública e, portanto, não faz a mínima ideia de como as coisas funcionam.

O que significa aula vaga? Parece uma construção paradoxal, mas, - vai por mim, caro leitor, não é. É um conceito muito produtivo. Um dos sentidos desse conceito é festa ou liberdade carcerária. Aluno é a palavra utilizada para designar um sujeito na escola, é uma palavra de origem latina, significa sem luz. Os professores são os seres iluminados que iluminam a escuridão da ignorância desses seres cobertos pelas trevas. Qual é a relação disso tudo com aula vaga e as aulas de educação física? Esse conceito de aluno define exatamente o sujeito da escola, ele não é um indivíduo com uma história e uma imaginação, é apenas um número de matrícula. Esse conceito define a vida estudantil, a vida amorosa e a vida social de todos esses indivíduos que se matriculam num colégio. O número de matrícula é maior que a vida dessas pessoas.

A aula vaga é o carnaval, é a redenção da prisão. O aluno pode sair das cadeiras que machucam as costas, pode conversar besteiras significativas entre os seus colegas, pode comer um lanche, pode fugir da escola e cabular aulas. (Sinceramente, cabular aula é uma desobediência ética necessária dentro da escola). A aula vaga move os alunos no desejo de ir à escola, é a possibilidade de rever os seus amigos, de fumar maconha e cigarro escondido, de beber escondido, de falar sobre música, de conversar sobre os pais, de falar mal dos professores e, finalmente, de falar sobre os relacionamentos amorosos. Sem a autorização de uma autoridade, o aluno pode fazer todas essas coisas. A aula vaga é um universo particular dos estudantes, quando tudo acontece, tudo se aprende sobre a sociedade, só não se aprende matemática, física, história e geografia. 

A educação física é uma aula vaga com lista de chamada. O grande pátio era dividido por um muro. De um lado, havia o refeitório e o pátio; de outro lado, havia a quadra e as escadas monumentais. Os meninos jogavam futebol, porque, obviamente, futebol é esporte para homens. As meninas procuravam fazer alguma coisa nesse tempo ocioso, ou seja, comentavam sobre os meninos ou falavam de outras garotas. (É claro que sempre existem pessoas diferentes, as figuras de exceção, naõ se resume assim. É muito mais complexo, porém, superficialmente, as coisas eram bem assim mesmo. O mundo era dividido entre os meninos do futebol e as meninas ociosas nas escadas).

Eu detestava no fundo do coração a Educação Física. Mas, nunca consegui entender o motivo de tanto ódio por essa disciplina, fui entender o motivo de tanto ódio pela Educação Física, quando não estava mais dentro de uma escola. A minha maior lembrança da Educação Física foi o dia que abandonei o gosto de jogar futebol. Costumava jogar futebol com os meninos da rua, com meus primos e sozinha em casa, era uma atividade que tinha relação direta com a minha personalidade, (nunca gostei de brincadeiras pouco movimentadas). Entretanto, jogar futebol, ao lado dos meninos, era o mesmo que ser chamada de briguenta, mulher-macho, esquisita e etc. Não ia conseguir muitas amizades femininas jogando futebol, o máximo que poderia acontecer era ser considerada uma menina estranha. De certa maneira, mesmo abandonando o futebol, foi exatamente isso que aconteceu, eu era uma menina estranha. Eu só queria, desesperadamente, ser uma menina igual às outras, não tinha o menor desejo de ser uma pessoa diferente.

Pagar o preço de ser diferente numa escola é muito alto e nunca tive disposição para isso. Eu abandonei o futebol, fiquei sentada nas escadas com as meninas (ou quem não gostava de jogar de futebol), olhando os meninos do futebol e comentando assuntos insignificantes.

O menino que jogava o futebol melhor, suava mais, chutava e goleava mais. Era sempre considerado o menino mais bonito, era o mesmo que o macho alfa da escola, como um Neymarzinho que tinha liberdade para fazer tudo, podia xingar o professor, faltar aulas, fumar maconha, roubar beijos de meninas, não estudar e etc. O Neymarzinho da escola era livre para trapacear e passar por cima da lei, porque todos os outros alunos sempre lhe protegiam. A motivação dessa proteção não era um querer bem, era o oposto disso, a proteção homogênea dessa figurinha era uma inveja coletiva. Afinal, todos queriam ser um Neymarzinho, todos queriam ser amado por conta de suas habilidades com os pés, queriam ser desejados pelas meninas das escadas e paparicados pelos professores, que entendiam os sonhos ambiciosos do aluninho, mesmo que cometesse arrogâncias, passasse por cima dos outros e machucasse meninas.

Certa vez, eu ri de um quadrinho. A piada era a seguinte: "um menino pergunta ao homem mais velho, o que ele deve fazer com uma menina. O velho responde: você destrói a casa e as bonecas dela, porque você ainda não tem idade para estuprar." O Neymarzinho da escola é a figurinha que aprende a destruir a casa e as bonecas, porque ainda não tem idade para estuprar. Não se engane, a sociedade ainda não mudou os seus valores, a escolha do nome Neymar não foi aleatória.

Ficar com o tal Neymarzinho lhe dava impunidade diplomática. Assim, era possível ficar livre dos deboches, ter os amigos menos risíveis, andar sem medo de risinhos escondidos e não ter apelidos toscos. A maioria dos apelidos era invenção dos meninos, eles se tornavam comuns e as meninas, para identificar alguém, falavam através desses apelidos. Eu era a Tévez, por causa dos meus dentes e porque gostava de futebol. A Stephany era a Dengue, era a menina negra da escola, considerada a mais feia da escola também. A Amanda foi o cabo de vassoura até a quinta série. São vários apelidos terríveis, eu posso dizer que já ri de muitos e também brincava com eles. Mas, não era confortável andar e ser chamada através desses apelidos. Eram sempre para ferir. Adolescentes são maus, crianças também. 

Numa quarta-feira, era o dia de Educação Física, a sensação era de ambiguidade. Era delicioso não estar mais dentro daquela sala de aula,  porém, ficar o dia inteiro sem fazer nada no pátio e sentado numa escada era algo que me aborrecia. Do meu ponto de vista, era preferível não fazer nada do que fingir que estávamos tendo boas aulas na escola. Tudo era uma representação. Nós, os alunos, fingíamos aprender; os professores fingiam ensinar; os diretores e os condenadores fingiam funcionar a administração da escola. O fingimento não é privilégio de Fernando Pessoa. 

Um aluno se aproximou e me perguntou:

- você gosta de comer linguiça?
- eu gosto - respondi

A turminha, que estava perto desse aluno, começou a rir descontroladamente. Eu fiquei sem entender. 

- não liga pra eles, tão fazendo piadas sem graça - me disse uma menina
- tipo, você gosta de salames? - eu brinquei

Ela riu, a menina era Rafaela. Ficava muito feliz, quando tinha alguma identificação com alguém, era uma realização. 

- você gosta de que tipo de música? - perguntou Rafaela
- eu gosto de rock - eu respondi 

Com quatorze anos, a música que nós costumamos gostar é sempre a música dos outros. Eu gostava da música que os meus primos apresentavam, isso incluía Legião Urbana, Nirvana, Os Tribalistas, Ramones e gostava de ouvir o cd da Elis Regina que minha mãe tinha. Para música, pessoas e arte, temos um gosto muito limitado, aprendemos a expandir mais tarde. Na minha cabeça, ser rockeira significava usar roupas pretas, ter tatuagens e piercings pelo corpo, ( minha mãe, provavelmente, detestaria). 

- eu também sou rockeira, olha só - ela me mostrou uma pulseira 

Ah sim! A pulseira! Na minha cabeça, as pessoas, que tinham anéis de caveira e pulseiras com espetos, eram os maiores rockeiros do universo. Ainda, não entendia que isso apenas significava que essas pessoas tinham dinheiro para comprar pulseiras e anéis.

- nossa! Que máximo! - eu falei - onde você comprou?
- na galeria do rock! Você já foi lá?
- não, eu nunca fui - eu respondi

Nesse momento, a Rafaela me olhou com recriminação. 

- você não conhece a Galeria do Rock! - disse Rafaela 
- não conheço - respondi 

Rafaela, apenas, balançou a cabeça e continuou olhando os meninos jogar futebol. Na aula de educação física, ficamos o resto dos 15 minutos, que sobravam de liberdade, num silêncio absoluto. Quando a aula estava terminando, ela me perguntou:

- você é BV? - disse Rafaela 

BV. Essa sigla merece alguma explicação. Eu demorei para entender o significado dessa sigla, fui entender somente na sétima série, quando uma das meninas da tribo teve o seu primeiro beijo. B= Boca e V= Virgem, ou seja, uma pessoa que é BV, é uma pessoa com Boca Virgem. Ao que parece, havia uma distinção clara de experiências de mundo, entre os BVs e os não BVs. Mas, nesse momento, eu mesmo não estava entendendo o significado dessa sigla, respondi:

- claro que não - disse 

Voltamos à sala de aula, era a última aula e iríamos embora para as nossas casas. A segunda lição que aprendemos hoje sobre Educação Amorosa é a mentira. Eu aprendi a ser uma grande mentirosa, inventava estórias incríveis que nunca vivi. Era uma forma de sobrevivência, eu mentia para não ter essa mesma sensação desconfortável do olhar recriminatório. De falar a verdade, a pessoa olhar para mim com recriminação e eu ser ignorada. Eu detestava ser ignorada, não sabia que ser ignorada era uma grande virtude, ainda era muito jovem para responder: "não, eu não sei de nada, não posso saber nada, mas, dentro de mim, tenho todos os sonhos do mundo". Só, para terminar bonito, eu invoquei Fernando Pessoa que, antes de o ter conhecido, eu já usava seus heterônimos e já fingia.

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