domingo, 9 de novembro de 2014

Educação Amorosa: amor é propaganda, amar ou ser amado?

Essa é uma série de textos que discute sobre a experiência amorosa nas Escolas. No meio de duas ideias sem nexo, eu tive essa ideia também para escrever romances e contos. A ideia inicial é contar como, de certa maneira, aprendemos a namorar. Como isso é feito? Quem nos ensina? Se existe ou não uma cartilha para relacionamentos amorosos? O que se aprende ou não se aprende? 

Na realidade, também discute o que se aprende nas escolas. No meu caso, aprendi muito pouco sobre biologia, matemática, português e física. Tive boas aprendizagens sobre História e Filosofia e, no meu primeiro ano do Ensino Médio, tive noções básicas sobre Linguística. De resto, o conhecimento das escolas, na minha vida, não foi nada relacionada aos conhecimentos científicos ou filosóficos, o que aprendi nas escolas foi uma aprendizagem de violência, isso inclui a educação amorosa.  


Primeira lição: amor é propagada, amar ou ser amado? 

Na escola, eu demorei bastante para ter interesse por meninos, fui uma moleca por um bom tempo. Na realidade, eu tinha fama de que gostava de meninas, eu era uma lésbica sem saber que era, até na minha família, tinha um primo que costumava dizer que eu parecia um menininho. Sempre fiquei muito triste com essas afirmações, para mim, eu era simplesmente uma criança. Essa foi uma das primeiras lições da infância. A imagem sexual não é algo que vem dentro, mas vem de fora. A palavra lésbica me pareceu que era uma espécie de insulto, por isso, eu ficava bastante triste. Não queria ser odiada pelas pessoas por causa dessa palavra. 

Passei alguns anos, querendo entender, por que eu senti tanta repulsa pela palavra "lésbica" e por que eu não gostava de ser chamada de sapatão, mulher-macho e etc. Como também, eu detestava ser chamada de menina meiga, delicada e etc. Eu, então, tive o meu momento de dúvida, será que eu gostava de um sexo apenas ou gostava dos dois? Acontece que eu provocava nas meninas alguns constrangimentos, afinal, falava e gostava de coisas de meninos. Nos meninos, também provocava constrangimentos, afinal, eu agia sem querer como uma menina. Demorei para perceber que a essência era, na verdade, um recurso de linguagem, era uma propaganda para controle de práticas sexuais. 

Desconsidero pessoas que nunca tiveram dúvida sobre a sua própria sexualidade, acho que, dificilmente, alguém que nunca se duvidou vai conseguir se colocar no lugar do outro. Eu não duvido que, no meu caso, acabei me tornando uma mulher heterossexual com pensamento um binário e narrativas maniqueístas, porque a cultura me ensinou assim; na realidade, porque eu queria fazer parte de alguma tribo. Aqui, começa a história. 

A escola é dividida por tribos. Essa é a primeira forma de segregação que está presente nas Instituições Públicas. É a forma de violência que mais agride, porque não nos definimos por nós mesmo, nos definimos pelos grupos que andamos, somos uma categoria, negam a nossa individualidade. Para não ser machucada ou ferida por dentro, é preciso fazer parte de algum grupo ou aprender a viver no isolamento. Não há outras formas de sobrevivência, é preciso aprender a ser parte de algum grupo. O preço para ser estranho numa escola é muito alto, nem sempre as pessoas estão dispostas a pagar. 

Eu sou leonina, o lado do meu leonismo mais forte é o desejo de estar presente no status quo. Ainda bem que isso foi deixado para trás, pode ser muito agressivo querer fazer parte de um status quo sem compartilhar os mesmos valores e os mesmos sonhos que essas pessoas (que estão no status quo) desejam e compartilham. Como leonina, eu queria ter amigos e aparecer no status quo escolar, logo fui deixando as coisas, fui deixando o jogo de futebol, deixando o videogame, deixando o gosto pelas brincadeiras, o desejo por livros de poesia. Eu aprendi a deixar, me acostumando a me anular pelos outros. 

Deixar é uma regra de anulação. Eu queria pertencer a uma tribo, não importa os sacrifícios de personalidade que eu poderia ter, o importante era deixar. As meninas da tribo começaram a se interessar pelos garotos do futebol, eu nunca os achei interessante, (aliás, sinceramente, não gostava de nenhum menino da escola). Duas lembranças fortes perseguiram a minha vida: a famosa lista de meninas bonitas da escola e as listas de meninos que as minhas amigas beijavam. 

Essa foi uma outra lição que eu nunca entendi. O valor da experiência de uma pessoa é quantificado pelo número de meninos que essa pessoa já ficou (utilizando o sentido que tornou-se comum na palavra Ficar . Nesse caso, significa ter algum relacionamento amoroso, porém, efêmero, com alguma pessoa. Namorar significa namoro duradouro com mais de dois anos, eu costumo brincar que namorar, hoje em dia, significa o mesmo que noivado. Ficar é o equivalente da construção sintática de 1970: "tive um casinho com ele", ou mesmo da palavra, "um namorico com ele"). Essa lição ficou, cada vez, mais esquizofrênica, pois, em relação as meninas, a quantidade era importante, mas a aparência era fundamental. O que isso quer dizer? Era preciso ficar com muitos garotos, porém, eles não podiam perceber que você mesmo já ficou com muitos meninos, porque senão a menina recebia a fama de "corrimão", "maçaneta" e etc. Isso parece pouco, mas, pode influenciar um século dentro da escola. Haverá muitas piadinhas e constrangimentos desnecessários. Por isso, a lembrança das meninas, na sala de aula, fazendo a lista de garotos que já ficou, era uma lembrança intensa que ficou guardada na minha memória. 

Aninha era uma menina que se vestia de preto, já tinha experimentado de tudo (em relação aos nossos parâmetros de pensamento, nós tínhamos quatorze anos), era quem experimentava, na maioria das vezes, situações novas e, depois, falava para a tribo de meninas. Ela começou com a moda das listas dos meninos, que se desencontravam com as listas das meninas mais bonitas da escola, feita por meninos. Aprendi que a melhor maneira de fazer parte de uma tribo é concordando com todas as atitudes, mesmo discordando amargamente. 

Aninha escreveu treze nomes de meninos naquela lista. Nós tínhamos quatorze anos, ficar com um garoto já era um grande acontecimento. Receber um beijo roubado, declarações de amor em público, alianças de namoro eram os maiores acontecimentos numa escola, significavam que as meninas eram amadas por alguém. As meninas que não eram amadas por ninguém, eram as coitadinhas que tinham que ser apresentadas para alguém. Ser amado era a maior propaganda de popularidade que alguém poderia ter dentro desse espaço, era inclusive uma arma de sobrevivência. Afinal, se alguém pertencia a uma tribo e namorava com tal menino (de outra tribo), portanto, ninguém podia fazer piadinha ou comentários indelicados desse fulano ou dessa fulana. 

Aninha desejava desesperadamente ser amada, Alice, por contágio, também desejou, Miranda desejava igual. Eu, para ser aceita, também desejei. Esse desejo de ser amado não é o desejo de amar, essa é a primeira lição que se aprende na escola. É preciso desejar ser amado acima de todas as coisas, passando por cima da dignidade do outro e aprendendo odiar as diferenças. 

A primeira das meninas da tribo que arranjou um ficante, (ficante é a derivação da palavra ficar que significa um estado transitório para o namoro, por isso, possui o sufixo -nte que indica um estado transitório, passageiro e não rotineiro. O sufixo -dor indica o contrário desse sentido, por exemplo, nomes de agentes: um amador, um ator, um professor e etc,  essas palavras trazem o sentido da rotina ou da duração), foi a Aninha quem teve o primeiro ficante para apresentar para as outras meninas.

- esse é o Pedro, ele é lindo, tem cabelo assim, olhos assado, blá blá blá - disse Aninha

Era assim mesmo. A pessoa virava uma lista de qualidades, expectativas de felicidade e propaganda de bom gosto. Na escola, o amor é propaganda, a escolha de um menino implica em definição de bom gosto. 

- o que se acha dele? - perguntou Aninha
- legal - respondeu Miranda
- porque ele é lindo, maravilhoso, fantástico, gostoso, blá blá. O que você acha dele? - perguntou Aninha
- legal - respondeu Alice
- porque ele é perfeito, romântico, beija bem, pega bem, blá blá blá. O que você acha dele? - perguntou Aninha 
- eu acho, ah sei lá - eu respondi. 

Eu fui estúpida nesse episódio, se o meu objetivo era pertencer a tribo, não podia hesitar nas repostas. Eu devia ter falado: "é claro, legal". As hesitações de respostas indicam que há a possibilidade de discordância. Nessas tribos escolares, a última coisa que pode haver é a discordância, é preciso aceitar os valores da tribo sem pensar duas vezes. É o mesmo que entrar numa religião, a possibilidade de diferenças de raciocínio é anulada. 

- Bruna, eu não preciso disso, eu quero que você fale pra mim o que eu preciso ouvir
- ah, tudo bem, ele é lindo, maravilhoso e blá blá blá 

A questão era bem simples, eu não conhecia o menino. Minha noção de beleza não era a mesma, eu não tinha bom gosto na escolha de meninos. Enfim, eu era uma pessoa desajustada, isso não significa que eu era a mais virtuosa da tribo, só significa que, entre todas, realmente, a diferença era bem evidente. Incluindo o fato que elas me consideravam um menino.

Passaram duas semanas. Miranda também estava apaixonada pelo bobão da classe, o Leonardo. Alice chorava por um menino (Lúcio) que namorava uma outra menina da escola. Enfim, através do contágio, todas as meninas da tribo desejavam ser amada, eu não fiquei de fora, também desejei um menino. Aninha tinha terminado com Pedro e estava ficando com outro; Miranda estava no impasse interminável com Leonardo; Alice chorava e chorava pelos cantos. Eu levei um pé na bunda, que fiquei durante anos acreditando que estava triste, mas isso é só crença, era só desejo de ser aceita.

Na escola, amor é propaganda, as pessoas são capazes de entrar num relacionamento como meio de sobrevivência. Muitas vezes, o amor não vem de dentro, vem de fora, significa poder que exerce nos outros.É uma forma de influenciar um grupo social para constituir mais valor, para ser uma pessoa invejada, para ser uma pessoa diferente e socialmente respeitada. Por isso, o desejo mais vendido, mais ensinado nas escolas, é o desejo de ser amado, muito mais do que o desejo de amar. 

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