segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Educação Amorosa: Daniel

Eu gostava de sair cedo da escola, porque eu podia brincar com os meninos da minha rua. Em casa, eu ainda jogava futebol. Na escola, eu não podia jogar, porque a quadra era dos meninos. Na realidade, esse foi minha rotina por quatro anos. Torcer para sair cedo da escola, brincar até tarde e ouvir minha mãe preocupada para não chegar muito tarde, porque eu estava brincando na rua. 

Adolescentes são maus, as crianças também. Esses meninos da minha rua eram estudantes da escola particular. Eu ficava com inveja deles, pensando que a minha educação estava manca. Eles também, às vezes, me olhavam com resignação, como se eu fosse uma menina pobrezinha, uma coitada. Mesmo assim, eu brincava com esses meninos, porque eu gostava de jogar futebol. 

Há uma frase de Nelson Rodrigues que eu gosto. Ela diz mais ou menos assim: os jovens têm os mesmos defeitos que os adultos, só que mais um, a imaturidade. Nelson Rodrigues aconselhava aos jovens que eles envelhecessem. Caetano Veloso aconselhava aos jovens que rejuvenescessem. Se eu pudesse aconselhar alguém para alguma coisa, aconselharia que vivessem apenas; sendo jovem ou velho, a vida ainda tem a capacidade de nos surpreender. 

Descobrira que podia cabular aulas às vezes para lidar melhor com a escola. Inclusive, aprendi a andar em São Paulo, cabulando aula. Mas, sempre voltava para casa; eu nunca peguei uma bicicleta e viajei pela América Latina, como Che Guevara. Quando eu voltava para casa, encontrava os meninos da minha rua, um desses meninos era chamado Daniel. 

Décima Terceira Lição - sobre apaixonites


Daniel era um menino alto, um pouco atrapalhado com a sua altura, o cabelo dele era de abóbora. Gostava de estudar, tinha uma voz gostosa de ouvir, andava com os meninos da rua e era meu vizinho. Ele era da vila de trás, eu era da vila da frente. Os meninos da minha rua falava muito bem dele, mas também me parecia que ele não pertencia ao grupo dos meninos. Na realidade, houve uma identificação imediata com Daniel, porque eu sentia que ele era um desajustado igual a mim. 

Eu menti para as meninas dizendo que tinha ficado com ele. Depois, ridiculamente, passei a chamá-lo de viado, quando ele me dispensou. Entretanto, Daniel foi a figura masculina que mais me trouxe coisas boas, nunca tivemos nada, apenas muitos momentos marcantes. Para as meninas, é mais fácil dispensar os garotos, é mais elegante. Porém, quando uma menina é rejeitada, pode parecer uma tragédia grega. Isso possui uma relação direta à linguagem esquizofrênica de sedução que aprendemos na escola. As meninas não sabem ser dispensadas, os meninos não podem dispensar.

De qualquer modo, penso que não poderia falar de educação amorosa sem citar a figura de Daniel. Até hoje, eu não sei se eu me interessei por ele, porque as meninas da tribo queriam que eu me interessasse por alguém ou se eu me interessei por ele, porque houve momentos que, realmente, fiquei encantada. Dizem que a paixão é uma doença que dura três dias e passa. Nesse caso, poderia dizer o momento exato que me apaixonei. 

Era uma quinta-feira, nós costumávamos descer juntos até o teatro e subirmos até minha casa para comer pipoca. Daniel estava brigado com os meninos da rua, tinha chorado comigo e disse que não queria mais conversar com nenhum deles. Não tinha entendido o motivo da briga, sabia que os meninos da rua podiam ser bem malvados. 

- a gente podemos comer pipoca - eu disse
- não é a gente, - Daniel explicou-me didaticamente, - o certo é "nós podemos comer pipoca" 

Daniel tinha mania de corrigir o meu português, tinha mania de professor Pasquale, gostava de explicar tudo de acordo com o seu ponto de vista. Isso me deixava furiosa, sempre sentia que eu era uma burra perto dele. Curiosamente, eu entrei no curso de Letras. Sem dúvida, eu hoje ficaria muito nervosa se eu visse algum sabichão corrigindo a fala das outras pessoas.

-  tá bom, vamo comer pipoca - disse 
- vamos sim! - rindo 

Entramos na minha casa. Passávamos horas juntos, conversando sobre coisas banais, besteiras e falando mal dos meninos da minha rua. Daniel tinha um senso de humor incrível, mesmo tendo essa terrível mania de corrigir o meu português, ele sabia como ninguém suscitar o meu riso. Em casa, as brigas entre meus pais estavam intensas. Daniel me alegrava sem pedir, me protegia, quando os meninos da rua faziam maldades. Ele foi um irmão mais velho que eu desejava ter. De tudo, a coisa que mais sinto saudades da minha adolescência, era essa amizade inocente que eu tinha com Daniel. Confesso que era uma coisa boa. 

- você não vai falar mais com meninos? - perguntei 
- não, não quero mais ver o Rique - Daniel disse, - ele é um idiota 
- bom, isso é verdade, ele é um idiota 

Rimos. 

- veja só, Bruna, essa pipoca - disse
- que que tem?
- você vê apenas uma pipoca? 
- não, isso é um dinossauro

Ele mudou a expressão do rosto, fez o gestual de um dinossauro. Eu dei gargalhada. 

- e isso aqui é uma pipoca? - perguntei 
- não, isso é um cachorro - Daniel disse

Eu imitei um cachorro, ele riu. Foi assim, ficamos procurando rostos e animais nas pipocas para imitar. Passávamos horas fazendo isso, rindo de nós mesmos; quando eu ficava sozinha com Daniel, não me sentia deslocada, era uma sensação maravilhosa. Quando terminamos de comer pipoca, saímos para brincar na vila. 

- vamo correr atrás dos pombos? - perguntei 
- eu corro mais rápido que você - ele disse

Nós corremos atrás dos pombos, ele ganhou a corrida. Então, quando acabamos de correr, eu comecei a pular com uma perna só. Daniel começou a fazer voltas com seu próprio corpo, procurando um rabo, talvez, para acariciar as suas orelhas. 

- duvido que você rode até um milhão de vezes? - Daniel me desafiou 

Eu adorava desafios, por isso, eu disse:

- eu rodo até um trilhão de vezes

Rodamos até ficar enjoados, sentamos no chão. Ficamos rosto a rosto, rindo demais. Foi aí que pensei: até que ele tinha um sorriso bonito, eu é que nunca tinha reparado. 

- você tá tonta também? - perguntou 
- eu tô vendo quatro pombos ou dois? - perguntei 

Naquele dia, o que demos um a outro, foi um olhar e nada mais. Começou a chover, nos molhamos um pouco, ele entrou na minha casa. Não sei se é uma imaginação na minha cabeça, (a memória também nos trapaceia), não sei se eu inventei essa memória. Sei apenas que Daniel me deu olhar profundo que nunca mais recebi ao longo da minha vida. Eu dei também esse mesmo olhar. Talvez, era um olhar de despedida, porque esse dia foi o último dia que brincamos juntos. 

Daniel me beijou no rosto e foi embora. 

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