Serei sincera com vocês, nunca me imaginei casando com alguém. Era mais fácil me imaginar tocando numa banda de rock, deslocada no mundo, do que me imaginar com um homem para toda a vida. Na realidade, isso sempre me assustou muito, ficar com a mesma pessoa até a hora da minha morte.
As meninas da tribo sonhavam o tempo inteiro com o casamento e alianças. Fico me perguntando se era um desejo real? Será? Na adolescência, criamos muitos acontecimentos na nossa cabeça, nem sempre eles vingam. No último episódio, contei o caso do meu primeiro beijo. Agora, eu vou contar o evento que fez, definitivamente, aceitar o meu deslocamento em relação às meninas.
Nona Lição - o deslocamento
Era um dia chuvoso, eram gotas finas que cobriam as nossas cabeças, eu escondia meu rosto com meus longos cabelos e apertava os meus braços para proteger-me do frio. As meninas da tribo ainda não tinham chegado na escola, sentei-me na primeira carteira, observei a professora de química entrar e deitar em cima da mesa, sonolenta.
Desenhei Pikachus e corpos femininos no meu caderno, esperando passar o tempo. Alice foi a primeira das meninas que chegou, sentou-se ao meu lado, não puxou nenhuma conversa. Com vontade de matar o tédio, eu tentei iniciar uma conversa:
- Alice, eu tenho uma coisa pra te contar: ontem, eu estava jogando futebol com os meninos
Alice me ignorou, estava entretida com os seus fios de cabelo e eu estava explicando os detalhes do último gol maravilhoso que havia dado contra os meninos da minha rua. De repente, Miranda e Aninha chegaram, sentaram-se ao lado de Alice. Eu fiquei com o rosto de encontro à elas. Alice estava com um péssimo humor, Miranda parecia radiante, Aninha estava igual aos outros dias.
- eu não sei o que eu vou fazer, ele está me ignorando totalmente - disse Alice
- ele quem? - eu perguntei
- o menino que eu estou ficando - disse Alice
- você está ficando com um garoto? - perguntei
- você não sabia, Bruna? - perguntou Miranda
- não
Eu estava enganada, a Alice não era a única de péssimo humor aquele dia. As três estavam entristecidas, eu que estava comum.
- Bruna, você é muito lesada, mesmo - disse Miranda
- ela levou um fora do Doce de Leite - disse Aninha
Doce de Leite era o apelido do menino que Alice estava apaixonada. Eu nunca tinha visto esse menino, sabia que ele estudava à noite. Alice passava horas dos dias suspirando pelos cantos por causa dele. Demorei meses para perceber que Doce de Leite não era Doce de Leite, era, na verdade, o menino da Alice, porque, segundo ela, o menino tinha sabor de Doce de Leite.
Eu perguntei:
- mas, você tá assim por causa desse garoto?
- ah! Bruna, não quero falar disso, tá bom, - disse Alice, - na verdade, não quero conversar hoje não
As meninas ficaram silenciosas. Eu continuei olhando o rosto melancólico de Alice, pensei que podia tirar uma fotografia e guardar na minha mente. Na verdade, as três meninas da tribo estavam com olhares sofridos, me senti manca de novo, não entendi o que estava acontecendo.
- tá tudo uma merda! - disse Miranda
Miranda me surpreendeu com essa declaração autêntica e sincera, principalmente, porque ela não era muito de falar "merda" ou palavrões. Logo, fui começando a entender o que sucedia, elas estavam com corações partidos, ao mesmo tempo, todas estavam vivendo uma decepção amorosa. Entendi que não poderia ajudar, calei-me e ouvi apenas.
- eu ia casar com ele, gente! - disse Alice, - eu me imaginava casando com ele. Poxa! Ele me disse que me amava, aí vai e fica com as outras
Aninha abraçou-a e disse:
- eu também ia casar com ele
- pois é, - disse Miranda
As três se abraçaram, acolhendo uma a outra. A Aninha era quem estava mais irritada, logo, ela me perguntou:
- e você, Bruna?
- que que tem eu?
- não tem nada pra dizer pra gente
- éééééh! Eu sei lá
Aninha apertou os olhos, eu fiquei olhando as nuvens. Então, disse a primeira coisa que me apareceu na cabeça:
- olha, eu também levei pé na bunda, também tô triste
Então, elas me abraçaram, acolhendo. Acredito que pessoas tristes gostam ainda mais de pessoas infelizes, atraem essa espécie de energia. A tristeza é viciante, porque também íntegra, eu fingi que estava triste para estar ao lado delas. Mas, me senti um pouco idiota, abracei-as mesmo assim e disse:
- sei lá, gente! Vai passar, né
- como vai passar, Bruna? Eu não quero que você fale isso, eu quero que fale o que eu quero ouvir - disse Alice
- Alice, você vai casar e ter filhos com ele, vai dá tudo certo no final, - eu disse, dando-lhe papelzinhos para enxugar as lágrimas. Releva, caro leitor, apaixonados aceitam com mais facilidade mentiras que são bonitas e infundadas. Apaixonados são meio estúpidos mesmo, é uma doença.
- a gente vai casar tudo com os nossos homens, - disse Aninha, - e vamos todas morar juntas. Eu vou ser madrinha da sua filha Miranda, você vai morar com a gente Alice e vai ser que nem a Mônica de Friends
De novo, a imaginação já estava posta, eu não entrava nessa rede de significados. Eu forcei e disse:
- eu posso aparecer de vez em quando na casa de vocês ou não?
- claro - disse Miranda
Miranda disse sinceramente. Alice não mudou a sua expressão facial, quando Miranda disse que eu podia entrar nessa brincadeira de faz de conta também.
- você também vai casar, Bruna - disse Miranda
- e ter filhos, ficar rica e famosa - disse Alice, finalmente rindo
As três se abraçaram, acolhendo uma a outra. Eu observei e senti que podia fotografar esse momento na minha mente. Alice deu a ordem para entrar no abraço também, eu abracei somente Miranda. Senti que, de fato, não pertencia ao universo de significados que elas tinham. Entretanto, senti que, mesmo assim, poderia amá-las.
Era o meu aniversário de 15 anos, estava muito feliz. Miranda, que nascemos no mesmo mês, que recordou e pediu desculpas.
- ah! Bruna, hoje você faz aniversário!
- sim!
- quantos anos? - perguntou Alice
- 15 anos
Miranda me deu uma blusa de presente. Alice deu um abraço caloroso e desejou muitas alegrias. Aninha não fez insinuações indelicadas. Mesmo vendo as três tristes, eu senti muita felicidade, senti que eu podia amá-las daquela forma mesmo. Com todas as diferenças, dúvidas e medos, eu senti que elas eram mais vulneráveis do que imaginava. As três meninas da tribo não estavam mais arrogantes, desfilando nos corredores da escola com seus belos corpos, elas também choravam.
- hoje, vou devolver a aliança que Caio me deu - disse Miranda
- por que não fica com você? - perguntei
- eu vou ficar com a aliança que lembra ele, Bruna - disse Miranda, - você tá louca?
- não é isso, bom, deixa pra lá, não quis te ofender
- eu queria tanto ganhar uma aliança do Doce de Leite - disse Alice
- o Filipe disse que ia me dar uma aliança, mas terminamos antes - disse Aninha
Elas eram capazes de ficar seis horas falando de alianças. Eu era capaz de ignorar seis horas e observar as cadeiras.
- e o moço lá, o Daniel? - perguntou Alice
- eu sei lá, nunca mais vi ele - disse, - também, deixa assim
- vocês ficaram, Bruna? - disse Miranda
- não
- vocês ficaram, né? - disse Alice
- não
- ah! Vocês ficaram? - disse Aninha
Na terceira vez, não disse que sim, mas também não disse que não. Já que elas insistiram.
- sim, eu fiquei com ele - menti descaradamente
- e foi bom
- ah! Foi sim, foi como atravessar a via láctea com barquinho rosa
Já que a imaginação delas era exagerada para descrever beijos na boca, logo eu também tinha licença poética para inventar o que era o beijo na boca para mim.
- ah! Imagina a gente se cansando ao mesmo tempo - disse Alice
- eu não sei se eu quero me casar - eu disse
- você fala isso agora, Bruna, - disse Alice
- talvez, mas eu sei que é agora que tô vivendo. E agora! Eu não sei se eu quero me casar - disse
Nunca havia sido tão sincera com elas como nesse dia. As meninas da tribo continuaram sonhando os sonhos que desejavam; eu não entrava na brincadeira. Ao menos, não me importei com os olhos perplexos e observei as linhas das cadeiras detalhadamente. Eu estava feliz. Amava sem precisar ser amada por cada uma delas.
Até hoje, lembro que poderia fotografar o abraço acolhedor que, entre elas, se davam. Mesmo não sendo a integrante desse Sex and City, sei encontrar amor, quando há condições de existência. Eu não era convidada para entrar nessa tribo, mas sentia amor apesar de tudo. Apesar de tudo.
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