sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Educação Amorosa: a vida amorosa e sexual de uma galinha

Não resisti. Disse que preferiria escrever a vida amorosa das galinhas a escrever algo sobre a minha vida amorosa. Não é que eu seja derrotista, como diria minha amiga Alice, não concordo que eu seja uma derrotista. Só acho que minha vida amorosa não é importante, ela é parecida com todo mundo que eu conheço, é mais uma vida insignificante que não vai mudar a perspectiva de ninguém. Principalmente, a tua, meu caro leitor inteligente! 

Esse lance de escrever autobiografias faz as pessoas acreditarem que a sua vida foi maravilhosa e com enredo desenhadinho. Não é verdade, minha vida é tão insignificante quanto a vida de um inseto. Entre uma galinha e um inseto, pareço mais com uma formiga. Sou uma formiga desprezada sem a companhia de outras formigas, muitas das melhores formigas morreram pisadas pelos humanos. Queridas e desprezadas formigas, uni-vos! 

Uma galinha é outra coisa. Ninguém nasce galinha, ser galinha é um dom. 

Apêndice - a vida amorosa e sexual da galinha 

Britney Spears, pensamos em Britney Spears. Aposto que você, caro leitor, nunca pensou nessa princesinha pop. Eu não gostei de Britney Spears na adolescência, mas tenho que admitir que a melhor coisa de Britney Spears não foi a música, foi a sua história. Pense que milhares de fãs eram apaixonadinhos pela figura da princesa do pop, o rosto limpo, a virgem mais famosa da modernidade, chupando pirulitos, com saias curtas e danças sensuais. Namorando Justin Timberlake, beijando na boca de Madonna e cantando músicas que não foram composições dela. 

De repente, um boom! O término de namoro com Justin se torna assunto internacional, ela casa com outro homem, vira mãe de dois filhos. Bebe demais, usa drogas demais, a justiça impede de ter a guarda dos seus dois filhos. Ela, então, raspa os cabelos, abandonando de vez o rosto limpo, puro e virginal. A princesinha pop, que não era a virgem mais famosa da modernidade, era agora uma louca e careca. Realmente, temos que admitir que isso foi mais rock n' roll do que as bandinhas do começo do século XXI. 

Uma galinha famosa, conhecida por todos, amada por todo o galinheiro. Era apaixonada por Saltimbancos, de Chico Buarque, não desejava botar ovo. O ovo, para ela, era um mistério que não saberia comunicar. Era uma galinha jovem, assustada. O galo olhou-a de longe e decidiu que ia fazer um ovo com essa galinha. A galinha tinha asas, mas não sabia voar. 

O galo prendeu-a pelas costas, pôs o seu esperma dentro dessa galinha. Essa galinha concebeu o mistério, esperava um ovo sem ter consciência que esperava um ovo. Depois do sexo selvagem, a galinha famosa caminhou para cima e para baixo, cantando músicas de Britney Spears, sem ter a consciência da maternidade. 

Os humanos, então, sentiram necessidade de fazer uma galinhada, estavam com fome. O homem da família foi atrás das galinhas no galinheiro. A galinha famosa, com sorriso de galinha no rosto, a mais feliz, chamou-lhe a atenção. O homem pensou: essa é uma boa galinha para comer.  Uma galinha feliz, porque tinha descoberto a violência prazerosa e intensa da vida sexual, percebeu que era observada de longe pelos humanos. Sentiu um arrepio no pescoço. 

A galinha mais velha disse: estão procurando uma galinha jovem para comer

A galinha sentiu medo de morrer. Dias seguintes, o homem da família preparou a caça. Procurou um lugar para um esconderijo perfeito. A galinha famosa estava vivendo um dos mais maravilhosos dias banais, quando percebeu que uma mão humana estava sobre a sua cabeça. Ela não pensou duas vezes, correu para proteger a sua vida infinita e maravilhosa. 

O homem da família ficou assustado diante de tamanha coragem que uma galinha podia ter para proteger uma vida de animal. Ele chamou o menino mais velho para correr atrás da galinha destemida. O menino mais velho chamou a irmã mais velha para correr atrás da galinha corajosa. A irmã mais velha chamou a mãe para correr atrás da galinha furiosa. Aí, a mãe chamou a irmã mais nova para correr atrás da galinha anônima. 

A irmã mais nova conseguiu ficar próxima da galinha. Rosto a rosto. A galinha estava cansada de correr pelo galinheiro. Todos gritavam para a irmã mais nova: mata a galinha! Mata a galinha!. De repente, ela ficou assustada com o olhar da galinha. Era um olhar intenso de uma galinha com medo. Quando as duas ficaram distraídas, a galinha sem querer botou um ovo. 

A irmã mais nova mostrou o ovo para a sua mãe e disse: mãe, não vou matar essa galinha, ela é mamãe também. Todos ficaram com pena da galinha, poupando a sua vida jovem e animal. 

Depois de uma semana, o ovo tinha virado um pintinho. A galinha que já tinha sido esquecida pela família, virou comida no jantar de domingo. Um belo domingo de sol, nuvens bonitas, alegria familiar e mistério.  

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Educação Amorosa: o última dia de aula

Eu escrevi dezesseis aprendizagens que eu tive na escola sobre amor. Fiz um esforço para equilibrar as coisas boas e ruins que aprendi no colégio, mas eram importante a fúria e o ódio na escrita desses textos. Afinal, durante oito anos, a melhor sensação que eu sentia era não estar dentro de uma escola. Era ir embora. 

Muitas vezes, eu escuto de pessoas mais velhas que elas adorariam reviver as suas experiências da juventude, tendo o corpo de vinte anos com a cabeça de quarenta ou cinquenta anos. Eu acho isso uma bobagem, além de uma asneira, eu acho que é uma espécie de fuga da vida, é uma fantasia. Funciona como álcool, cigarros ou drogas ilícitas. Pegamos o passado e lembramos somente das coisas boas, esquecendo completamente das coisas ruins que densaram as nossas vidas. Esquecendo, talvez, que se você perguntasse para a pessoa jovem que você era, caro leitor, provavelmente, não gostava de viver daquele jeito ou faria aquilo da mesma forma estúpida, (porque, naquele momento, o fazer-estúpido dava sentido a sua existência).  

A graça é essa, é o que torna a vida cômica e bela. (Pelo menos, na minha opinião). Não gostaria de voltar ao passado, não pagaria por nada para voltar à escola, ter a minha infância ou a minha adolescência de volta. Eu pagaria, se eu pudesse, para viver mais e cada dia mais, da maneira mais intensa e urgente possível. Até, finalmente, morrer como um ato final de surpresa. Afinal, somos passageiros da vida e as coisas passam. 

Décima sexta lição - o último dia de aula 


No último dia de colégio, nada demais aconteceu. O dia pareceu banal demais. Tivemos seis aulas vagas seguidas, as pessoas que nunca se falaram, passaram a se abraçar e escrever declarações carinhosas nos uniformes do colégio. Não tiramos fotografias, eu lembro que assinaram o meu uniforme, lembro de duas cartas que recebi das meninas da tribo e do sorvete que ganhei do Caio, (ex-ficante de Miranda). 

Eu fiquei sentada no chão do pátio, sentindo que minha vida não era impressionante. Feliz, porque sabia que não precisaria pisar os pés naquele colégio de novo. O pátio parecia enorme demais para os meus sonhos; eu parecia estar livre demais. Confesso que houve, por alguns momentos, uma sensação estranha de liberdade e alívio. Alice me abraçou e me disse:

- agora, tudo vai ser diferente

Pareceu um clima de ano novo, tinha um ar renovador na atmosfera. Eu tive a sensação que, na outra escola, sem a presença dessas pessoas, sem vestir esse uniforme escolar, sem o medo e a minha covardia, tudo poderia ser diferente. Senti alegria, Rafael me disse:

- finalmente, vamo sair dessa merda 
- pois é, Rafael 

Caminhei até a biblioteca da escola pela última vez. Me escondi lá pela última vez, olhei a placa escrita Arquivo Morto pela última vez. Cantei músicas de rock n' roll pela última vez. Apesar de fazer tudo isso pela última vez, não tinha aquela ar solene de último dia de aula, o clima ano novo era evidente. Mas, ninguém parecia notar a fragilidade que era viver aquele último dia de aula. Eu não notei, vivi com a mesma naturalidade dos outros dias, torcendo para acabar as aulas, torcendo para chegar a hora da saída. 

As meninas da tribo choravam. Alice abraçava Miranda. Miranda abraçava Aninha. Aninha abraçava as duas. Elas choravam e choravam. As três diziam que seriam amigas para sempre, cultivariam a amizade e seriam eternas. 

Os meninos jogaram futebol pela última vez. O gol de placa foi de Caio que dedicou ao amor da vida na escola, que não era segredo para ninguém, para Miranda. Ela o ignorou. Os meninos estavam todos suados, as meninas choravam.  Eu estava sentada olhando e recontando os números de tijolos que estavam no muro da frente, como eu fazia todas as vezes e todos os dias nas aulas de educação física e nas aulas vagas. 

Finalmente, bateu o horário para ir embora. O sol estava quente, cobria o nosso olhar de luz. Quando olhei para trás, o portão da escola ainda estava aberto, ainda saíram alunos chorosos. Rafael me disse:

- tchau, Bruna, até mais! - disse
- tchau, Rafael, até mais e se cuida! - eu respondi 

Fiquei parada algumas horas, pensando. Não sei bem o que estava pensando, alguns pensamentos voam para sempre e nunca mais retornam à cabeça. 

- Bruna, você podia me devolver a minha borracha? - perguntou Kevin
- ah sim, Kevin, desculpa - devolvendo a borracha, - tá aqui ela! 

Kevin guardou a borracha, olhou-me tranquilamente e disse:

- até mais, Bruna, se cuida 
- você também, Kevin

Foi tão banal, tão comum a despedida da escola. Mais tarde, encontrei-me com a Alice, foi a única das meninas da tribo que encontrei anos depois. Ela mudou radicalmente algumas opiniões, outras permaneceram iguais, transformou-se numa mulher sensual e muito atraente. Ela foi o meu último grito que precisava externar da minha adolescência; abandonar Alice na minha imaginação foi mais libertador do que cabular aula pela primeira vez. 

Quando a encontrei e conversamos. Cheguei, finalmente, à algumas conclusões sobre as coisas que eu aprendi na escola. Não quero escrever um desfecho, meu caro leitor, com uma moral da história. Até, porque, é um tanto impossível destilar uma moral depois de tantos acontecimentos desconexos e aparentemente absurdos. Entretanto, quero dividir com vocês, talvez, a maior explicação que posso dar para tantos acontecimentos banais no último dia, (que teoricamente deveria ser o mais solene). 

Não é possível imaginar o que um aluno vai ser depois da escola. Acho que o mais terrível para um professor é lecionar para cabeças tão diferentes entre si, com experiências tão distintas e singulares. Um professor na sala de aula fica apavorado, porque são várias cabeças pensando ao mesmo tempo, são pessoas vivendo ao mesmo tempo, criando novos conceitos ou sustentando os velhos dilemas. Não era possível prever a pessoa que eu me tornei hoje, nenhum desses acontecimentos determinaram a pessoa que eu sou e, muito menos, determinaram as mulheres que, um dia, já fizeram parte das meninas da tribo. 

A minha imaginação mudou, o que condicionou a mudança foi a própria experiência do tempo. A vida é bem malandra, não determina nada; ao contrário, ela trapaceia, tira as nossas meias e nossos tapetes. Não é possível prever uma pessoa através de um número de matrícula, de uma nota baixa ou de um uniforme escolar. Uma garota vestida com um uniforme escolar comete erros e também está vivendo, caminhando pelas ruas,(me lembrei dos versos de Bukoswki: ah! como eu queria trepar com essas menininhas do colégio, mas é impossível). Acho que essa foi a melhor declaração de amor que já fizeram às meninas do colégio.  Não é possível prever o que tempo pode fazer com elas. 

Vou terminar esse texto aqui, disse que não seria um grande texto, seria um texto modesto. Eu não gostei muito de escrever sobre mim, creio que é mais interessante escrever as histórias das galinhas. Na próxima vez, eu narro a vida amorosa das galinhas, a minha é insignificante. 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Educação Amorosa: o último primeiro beijo

Estamos chegando no final da série Educação Amorosa, lembrando que estou falando apenas do Ensino Fundamental, não escrevi nada sobre o Ensino Médio. A proposta inicial foi escrever Educação Amorosa como meio de exercício da minha narrativa, porque ainda tenho vontade de escrever um guia de sobrevivência da escola, aí incluiria as aprendizagens do Ensino Médio. (Mas essa ideia fica para depois).

Mais ou menos, as lembranças mais marcantes nesses textos estão localizadas entre a quinta série até a oitava série. Me propus a escrever dezesseis aprendizagens que eu tive sobre a minha educação amorosa na escola. Há mais, porém é impossível escrever tudo, nem sempre sabemos filtrar tudo que ficou em nós. Existe muita ficção no meio desses textos também. A memória é arbitrária, inventa as coisas de acordo com a nossa maneira parcial de enxergar o mundo e (re)interpretá-lo. Essa é imagem que eu tenho da escola, mas se perguntassem para Alice, por exemplo, tenho certeza que ela teria outra história para contar.

Daniel foi se afastando de mim. Eu fui me afastando das meninas da tribo e dos meninos da minha rua. Assim, minha descoberta do mundo implicou no abandono de uma tribo para definir os meus sentimentos e medos. Mesmo assim, é curioso! Durante dois ou três anos, escrevi  várias vezes no meu diário do Ensino Fundamental que o meu sonho era ter uma turma de amigos que eu pudesse me sentir acolhida e ser aceita. (Consegui essa turma no Ensino Médio, mas essa história fica para depois).

Alice sempre costumava me dizer que quando eu beijasse na boca de um menino, não poderia deixá-lo passar a mão na minha bunda. Eu dou muita risada, quando me recordo desse ensinamento tão sério de minha querida Alice. Na adolescência, que acreditamos nessas coisas, um beijo na boca pode ser só um simples beijo, sem segundas intenções. Talvez, acreditemos nisso, porque alguns dos meninos que beijamos na escola, também estão beijando pela primeira vez. Na verdade, é tudo uma bobagem. Imagina só que a nossa maior preocupação, quando beijávamos um menino na boca era não deixar passar a mão na bunda. Mal imaginávamos que esse era o menor dos nossos problemas, porque não sabíamos as maravilhas de uma menstruação atrasada, ainda não tínhamos ideia desse conhecimento, dessa neura e o que ela pode acarretar para uma semana.  

Nesse episódio, vou contar o último primeiro beijo que eu recebi, quando estava na escola. Último, porque foi a surpresa dos últimos momentos que estudei numa escola pública. Primeiro beijo, porque sempre quando me perguntam do meu primeiro beijo, eu conto essa história.

Décima quinta lição - o último beijo na boca 

Era uma quarta-feira, seria aula de química. Cabulei aula sem pensar duas vezes, marquei um encontro com um menino que conhecia do curso de violão. Ele tinha um nome engraçado, era chamado Robério. Ele tinha cabelo ruivo, era negro, alto demais e tinha dezoito anos. Saímos para tomar sorvete e conversarmos sobre música. 

As meninas da tribo nem imaginavam que eu estava cabulando aulas; muito menos, imaginavam a história do Robério. Nunca contei para elas, passei a saber menos da vida amorosa de cada uma e isso era recíproco. Cada dia mais, elas sabiam menos de mim. 

Quando cheguei na pracinha da Tiradentes, eu o vi me esperando. Robério estava lindo, tinha uma cabelo vermelho fantástico. O vento amassava a sua camiseta preta. Era uma camiseta da banda Capital Inicial. Eu olhei-lho e pensei: mas nunca que ia ficar com um menino bonito desses. Fui crente que ia encontrar um amigo e tomaríamos um sorvete inocente, na esperança do tempo passar rápido para chegar em casa na hora da saída. 

Não conhecia a autora Ángeles Mastretta na minha adolescência, mas ela disse uma das frases mais importantes da minha vida, no livro Mal de Amores, que me apropriei para explicar coisas que parecem tão inexplicáveis: não esperava encontrar-se com alguém daquele jeito, tinha previsto dar com um gringo de espírito indiferente, e outra vez, teve que reconhecer a verdade numa das frases de Milagros: a vida foi feita para nos desconcertar

Robério me desconcertou. Passeamos lado a lado, eu estava descomprometida com as possibilidades de viver um romance adolescente. Não imaginava nem que, a essa altura, poderia conseguir um beijo na boca sem a ajuda das meninas da tribo para empurrar garotos que sobravam.

- você gosta de Capital Inicial? - ele perguntou
- ah, gosto sim, eu sei tocar Tudo que vai, - eu disse

Ele sorriu e tirou o meu cabelo dos meus olhos. Eu disse:

- não sei fazer solos de guitarra 
- ah, tem que estudar bastante, eu consigo fazer um dos Guns and Roses 

Eu preferia tocar tears in heaven, de Eric Clapton, do que tocar qualquer música de Guns and Roses. Porém, eu balancei a cabeça, concordando com a dificuldade de tocar os solos dessa banda. A cada momento que meus cabelos cobriam os meus olhos, Robério afastava os fios de cabelo dos meus olhos. 

- poxa, você tem um sorriso lindo! - disse 
- ah, obrigada - eu respondi

Fiquei sem jeito com elogio. Nunca havia sido elogiada gratuitamente. O vento ficou muito forte, as horas passaram muito rápido. Caminhamos até o ponto de ônibus. Nós precisávamos pegar conduções diferentes. O ônibus dele foi o primeiro que passou. 

- ei, você não vai pegar esse aí? - perguntei
- ah, depois passa outro, tô sem pressa - ele disse 
- ah, então, tudo bem

Ficou um silêncio constrangedor. O meu ônibus não costumava demorar para passar. Naquele dia, ele demorou mais para chegar. Olhava o Robério. Cabelos ruivos, sorriso safado, camiseta amassada, um leve crescimento de barba no queixo e uma voz rouca inesquecível. Me calei contemplando-o. Ele percebeu que eu estava calada demais, percebeu que eu estava olhando demais. Fiquei sem jeito, mudei o meu foco e passei a olhar os dedos dos meus pés. 

- que foi? - ele disse
- ah, nada, eu preciso comprar tênis novos 
- ah, estão bons
- é, mas já tá furado, olha só - levantei o pé para mostrar 

Ele riu. Aí, aconteceu o inesperado. Meus cabelos cobriram o meu rosto, ele sempre afastava-lhos. Porém, dessa vez, não foram os meus olhos descobertos, alguns fios de cabelo cobriram a minha boca. Foi um gesto delicado, Robério tirou os fios de cabelo, descobrindo a minha boca. Naturalmente, uma coisa levou a outra, ele descobriu a minha boca, ficamos lábio a lábio,  deu um beijo de leve, como se pedisse permissão para entrar, eu deixei entrar e, em troca, nos beijamos. 

Foi um longo beijo gelado, dele guardei o cheiro forte de colônia. Ele amassou os meus cabelos, eu segurei forte a sua camiseta. Foi tão natural que, ao acabar o beijo, fiquei sem graça. Como é que eu tinha feito aquilo? Como é que eu respirei? Como é que vou olhar para esse moço depois? Robério permaneceu sólido, olhando-me inquieto e perdido. Riu para disfarçar. 

De longe, vi o meu ônibus chegar. Dei outro beijo nele e entrei no ônibus. Ele se despediu de mim com as mãos. Pela janela do ônibus, me afastando desse moço bonito, vendo-o ficar pequenininho. Senti uma alegria estonteante que quase senti vontade de chorar. Minhas mãos tremiam muito. Dias seguintes, Robério tinha desaparecido do curso de violão, nunca mais o vi. 

Acho que era para ele dar esse beijo e ir embora sem explicações. Acho que foi uma surpresa da vida para me mostrar que ainda estava muito cedo para desacreditar. Acho que foi um desconcertamento efêmero mais fantástico que guardei na minha adolescência. Acho que foi o meu último primeiro beijo inocente que dei em alguém. Acho que foi uma experiência curta que valeu mais a pena do que muitas outras que tinha ouvido. Não interessa o que eu acho, o importante é o que fica. O que ficou para mim de Robério, foi o seu gesto efêmero e delicado que calou-me por segundos. 

A vida é muito malandra mesmo.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Educação Amorosa: aula de matemática

Estamos encaminhando para o final. Mas, não podia terminar essa série sem falar da professora mais marcante do Ensino Fundamental, a professora de matemática Maria Antonieta. Eu estou falando de todas as formas de amor, inclusive daquela que foi fundamental para mim na Escola (apesar de tudo), o amor que eu tinha pelos estudos.

Sempre ouvi de professores de teatro, que eu tive, a seguinte frase: "teatro é uma merda, então é bom ter tesão pra fazer". Da professora de matemática, eu aprendi outras coisas, entre muitas, a ter persistência e paciência. Faço questão de contar a vocês um episódio marcante.

Décima quarta lição - nota baixa em matemática 


Um dos meus contos preferidos de Clarice Lispector é Os desastres de Sofia, porque me identificava muito com a descrição de Sofia. Clarice descreve a personagem condutora da narrativa como alguém que tinha tendência para o mal, uma criação desastrada de Deus. Sofia é "como um talo de begônia". Begônia é uma flor miúda que costuma nascer em conjunto, são flores graciosas e belas demais, o talo é muito forte e grosso, mas não é nada atraente. As begônias parecem pérolas da natureza, prendidas por uma monstruosidade e feiura que são os seus talos. 

Não há uma descrição mais perfeita do que essa para dizer o que eu sentia nesse momento da minha vida. Me sentia como um talo de begônia, uma criação desastrada de Deus, uma brincadeira de péssimo gosto que esse Deus inventou. Os desastres de Sofia narra uma relação entre um professor de português e uma aluna. Sofia narra os acontecimentos da infância, já na fase adulta, quando ela descobre que o professor de português mais marcante na sua vida havia morrido. 

Recentemente, minha mãe se encontrou com essa professora de matemática. Ela já é uma senhora aposentada. Fiquei muito feliz com a notícia, perguntei como ela estava. Minha mãe disse que ela estava bem, informou que eu estava fazendo graduação em Letras e, (pasmem!), Maria Antonieta respondeu que eu devia ter feito matemática, porque eu fui uma grande aluna.

Dei risada com essa notícia. Dias seguintes, não soube da Professora Maria Antonieta. A lembrança que eu tenho das aulas de matemática é que eram as únicas aulas respeitadas pelos alunos. Quando a senhora Maria Antonieta entrava em sala de aula, o silêncio era monumental. A professora de matemática não precisava fazer esforço nenhum para conseguir a atenção dos alunos, não precisava gritar. Eu morria de medo da professora Maria Antonieta. 

Além de morrer de medo, não tinha mesmo facilidade com os números. A primeira prova que fizemos com Maria Antonieta, eu tirei dois e fiquei muito triste. Ela tinha uma técnica interessante para passar prova, mandava-nos cortar uma folha do caderno ao meio e pedia que nós respondêssemos duas perguntas no máximo. Ela sempre dizia: não é quantidade, é qualidade; se vocês não conseguem responder uma, vocês não vão responder dez problemas de matemática

As meninas da tribo eram alunas medianas, tiravam até cinco. Miranda conseguiu tirar a nota seis na primeira prova que fizemos com Maria Antonieta, ela detestava no fundo da alma essa professora. Eu sentia medo, estava triste, fiquei com vergonha de mostrar a minha nota baixa. Escondi a prova no fundo do meu caderno. 

A professora Maria Antonieta passava pelos corredores, sempre olhava para mim com autoridade. Eu cumprimentava e andava até a Sala de Aula com a cabeça baixa. Um dia, ela passou por mim, deu um sorriso tranquilo, eu fiquei com a cabeça baixa. Alice era a minha melhor amiga das meninas tribo, ainda falávamos às vezes, constantemente, dizia que precisávamos estudar matemática. 

Eu me esforcei muito para aprender matemática, tinha mesmo muita dificuldade. Alice estudava comigo, quando sentia vontade. Às vezes, ela tentava fugir das brincadeiras insuportáveis da turma do Caio, por incrível que pareça, Alice se escondia comigo, quando queria fugir. Eu não andava mais com tribos. Ela falava o tempo inteiro do Doce de Leite. Eu estudava equações de primeiro e segundo grau. 

Depois de tanto estudar matemática, consegui encontrar prazer nos números. Eu até conseguia me divertir com os números e os problemas de matemática. Conversava demais sobre matemática com Kevin e Rafael, (hoje, já não me lembro mais de nada, além do raciocínio) . No dia da minha segunda prova de matemática, fiz a avaliação tranquilamente. Entretanto, eu esquecera de escrever o meu nome.  A professora Maria Antonieta não aceitava de jeito nenhum provas sem nome, ela já tinha avisado que reprovaria aluno, se isso acontecesse. Afinal, prova é documento, não pode esquecer de assinar nome em provas. 

Dias seguinte, já tinha aceitado a minha condição de reprovada em matemática. Estava triste, mas não tinha muito o que fazer. Então, a professora Maria Antonieta chegou na sala de aula, sentou na cadeira, abriu o diário de classe e começou a discursar sobre as avaliações que os alunos fizeram. 

- bem, gente, tem duas avaliações aqui na sala que estão sem nome - ela disse, - isso é um problema. Porque o único nove que tem aqui, é uma avaliação sem assinatura. Vocês sabem qual é a minha política de provas, não é? Mas, vou abrir uma exceção. 

Ela mostrou as duas provas. A primeira prova tinha nota oito e meio; a segunda prova tinha nota nove. A única nota nove da sala de aula era a nota da minha avaliação, quando eu a vi, fiquei apavorada e senti raiva da minha distração. 

- é o seguinte - Maria Antonieta explicou -, os dois alunos aqui dessa turma que esqueceu de colocar o nome da prova, eu quero que vocês se apresentem e venham aqui até a minha mesa 

Os dois alunos eram eu e o Kevin, (meu amigo negro que jogava Yu Gih Oh comigo). Nos aproximamos lentamente da mesa da professora de matemática. Eu senti que a respiração de Kevin ia sumir, por outro lado, a minha ia explodir. Estava muito nervosa, as minhas mãos tremiam descontroladamente. Chegamos próximo da figura monumental e silenciosa de Maria Antonieta. 

- quero que vocês tiram par ou ímpar para ver quem vai pegar primeiro a prova de vocês - ela disse

Kevin estava sem ar, levou-lhe a mão direita até as costas. Eu observei e repeti o mesmo gesto. Contamos até três, foram os minutos mais longos da minha vida. Um, dois e três. Kevin tinha pedido par, eu tinha pedido ímpar. Eu perdi o jogo. (Jogo é jogo!). 

- ótimo, Kevin, qual é a sua prova? - Maria Antonieta perguntou
- é essa aqui! - ele disse apontando 

Era a prova que tinha a nota oito e meio. Kevin, assustado, pegou a prova, mas, antes de ir, a professor de matemática fez um comentário:

- se eu fosse você, pegaria a prova com nota nove, já que ela está sem nome 

Kevin riu e fez o caminho épico até a sua carteira. Eu ia colocar as mãos na minha prova, quando a professora Maria Antonieta disse:

- essa prova é sua, Bruna? - ela perguntou
- é sim, professora - ela disse
- na próxima vez, não esqueça de assinar o nome 
- tá bom, professora 

Ela me deu um sorriso tranquilo. Eu senti carinho e amor por aquele sorriso, com as mãos trêmulas e atrapalhadas, peguei a prova, sorri de volta e sentei até a minha carteira. Passei a amá-la e respeitá-la, porque teve a capacidade de jogar no lixo suas próprias regras para aumentar a confiança de dois alunos. Não é questão de ser um grande professor, com uma grande bagagem teórica, é questão de olhar ao próximo e dar um sorriso tranquilo, mesmo assumindo a posição mais alta da hierarquia. A professora de matemática, desde aquele dia, tinha deixado de ser um monstro inacessível para ser um simples pessoa que lecionava matemática. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Educação Amorosa: Daniel

Eu gostava de sair cedo da escola, porque eu podia brincar com os meninos da minha rua. Em casa, eu ainda jogava futebol. Na escola, eu não podia jogar, porque a quadra era dos meninos. Na realidade, esse foi minha rotina por quatro anos. Torcer para sair cedo da escola, brincar até tarde e ouvir minha mãe preocupada para não chegar muito tarde, porque eu estava brincando na rua. 

Adolescentes são maus, as crianças também. Esses meninos da minha rua eram estudantes da escola particular. Eu ficava com inveja deles, pensando que a minha educação estava manca. Eles também, às vezes, me olhavam com resignação, como se eu fosse uma menina pobrezinha, uma coitada. Mesmo assim, eu brincava com esses meninos, porque eu gostava de jogar futebol. 

Há uma frase de Nelson Rodrigues que eu gosto. Ela diz mais ou menos assim: os jovens têm os mesmos defeitos que os adultos, só que mais um, a imaturidade. Nelson Rodrigues aconselhava aos jovens que eles envelhecessem. Caetano Veloso aconselhava aos jovens que rejuvenescessem. Se eu pudesse aconselhar alguém para alguma coisa, aconselharia que vivessem apenas; sendo jovem ou velho, a vida ainda tem a capacidade de nos surpreender. 

Descobrira que podia cabular aulas às vezes para lidar melhor com a escola. Inclusive, aprendi a andar em São Paulo, cabulando aula. Mas, sempre voltava para casa; eu nunca peguei uma bicicleta e viajei pela América Latina, como Che Guevara. Quando eu voltava para casa, encontrava os meninos da minha rua, um desses meninos era chamado Daniel. 

Décima Terceira Lição - sobre apaixonites


Daniel era um menino alto, um pouco atrapalhado com a sua altura, o cabelo dele era de abóbora. Gostava de estudar, tinha uma voz gostosa de ouvir, andava com os meninos da rua e era meu vizinho. Ele era da vila de trás, eu era da vila da frente. Os meninos da minha rua falava muito bem dele, mas também me parecia que ele não pertencia ao grupo dos meninos. Na realidade, houve uma identificação imediata com Daniel, porque eu sentia que ele era um desajustado igual a mim. 

Eu menti para as meninas dizendo que tinha ficado com ele. Depois, ridiculamente, passei a chamá-lo de viado, quando ele me dispensou. Entretanto, Daniel foi a figura masculina que mais me trouxe coisas boas, nunca tivemos nada, apenas muitos momentos marcantes. Para as meninas, é mais fácil dispensar os garotos, é mais elegante. Porém, quando uma menina é rejeitada, pode parecer uma tragédia grega. Isso possui uma relação direta à linguagem esquizofrênica de sedução que aprendemos na escola. As meninas não sabem ser dispensadas, os meninos não podem dispensar.

De qualquer modo, penso que não poderia falar de educação amorosa sem citar a figura de Daniel. Até hoje, eu não sei se eu me interessei por ele, porque as meninas da tribo queriam que eu me interessasse por alguém ou se eu me interessei por ele, porque houve momentos que, realmente, fiquei encantada. Dizem que a paixão é uma doença que dura três dias e passa. Nesse caso, poderia dizer o momento exato que me apaixonei. 

Era uma quinta-feira, nós costumávamos descer juntos até o teatro e subirmos até minha casa para comer pipoca. Daniel estava brigado com os meninos da rua, tinha chorado comigo e disse que não queria mais conversar com nenhum deles. Não tinha entendido o motivo da briga, sabia que os meninos da rua podiam ser bem malvados. 

- a gente podemos comer pipoca - eu disse
- não é a gente, - Daniel explicou-me didaticamente, - o certo é "nós podemos comer pipoca" 

Daniel tinha mania de corrigir o meu português, tinha mania de professor Pasquale, gostava de explicar tudo de acordo com o seu ponto de vista. Isso me deixava furiosa, sempre sentia que eu era uma burra perto dele. Curiosamente, eu entrei no curso de Letras. Sem dúvida, eu hoje ficaria muito nervosa se eu visse algum sabichão corrigindo a fala das outras pessoas.

-  tá bom, vamo comer pipoca - disse 
- vamos sim! - rindo 

Entramos na minha casa. Passávamos horas juntos, conversando sobre coisas banais, besteiras e falando mal dos meninos da minha rua. Daniel tinha um senso de humor incrível, mesmo tendo essa terrível mania de corrigir o meu português, ele sabia como ninguém suscitar o meu riso. Em casa, as brigas entre meus pais estavam intensas. Daniel me alegrava sem pedir, me protegia, quando os meninos da rua faziam maldades. Ele foi um irmão mais velho que eu desejava ter. De tudo, a coisa que mais sinto saudades da minha adolescência, era essa amizade inocente que eu tinha com Daniel. Confesso que era uma coisa boa. 

- você não vai falar mais com meninos? - perguntei 
- não, não quero mais ver o Rique - Daniel disse, - ele é um idiota 
- bom, isso é verdade, ele é um idiota 

Rimos. 

- veja só, Bruna, essa pipoca - disse
- que que tem?
- você vê apenas uma pipoca? 
- não, isso é um dinossauro

Ele mudou a expressão do rosto, fez o gestual de um dinossauro. Eu dei gargalhada. 

- e isso aqui é uma pipoca? - perguntei 
- não, isso é um cachorro - Daniel disse

Eu imitei um cachorro, ele riu. Foi assim, ficamos procurando rostos e animais nas pipocas para imitar. Passávamos horas fazendo isso, rindo de nós mesmos; quando eu ficava sozinha com Daniel, não me sentia deslocada, era uma sensação maravilhosa. Quando terminamos de comer pipoca, saímos para brincar na vila. 

- vamo correr atrás dos pombos? - perguntei 
- eu corro mais rápido que você - ele disse

Nós corremos atrás dos pombos, ele ganhou a corrida. Então, quando acabamos de correr, eu comecei a pular com uma perna só. Daniel começou a fazer voltas com seu próprio corpo, procurando um rabo, talvez, para acariciar as suas orelhas. 

- duvido que você rode até um milhão de vezes? - Daniel me desafiou 

Eu adorava desafios, por isso, eu disse:

- eu rodo até um trilhão de vezes

Rodamos até ficar enjoados, sentamos no chão. Ficamos rosto a rosto, rindo demais. Foi aí que pensei: até que ele tinha um sorriso bonito, eu é que nunca tinha reparado. 

- você tá tonta também? - perguntou 
- eu tô vendo quatro pombos ou dois? - perguntei 

Naquele dia, o que demos um a outro, foi um olhar e nada mais. Começou a chover, nos molhamos um pouco, ele entrou na minha casa. Não sei se é uma imaginação na minha cabeça, (a memória também nos trapaceia), não sei se eu inventei essa memória. Sei apenas que Daniel me deu olhar profundo que nunca mais recebi ao longo da minha vida. Eu dei também esse mesmo olhar. Talvez, era um olhar de despedida, porque esse dia foi o último dia que brincamos juntos. 

Daniel me beijou no rosto e foi embora. 

domingo, 23 de novembro de 2014

Educação Amorosa: a vela profissional

Ao lado das meninas da tribo, eu fui uma vela profissional na escola. Uma vela tão presente na vida das meninas que pude criar um método, elaborar uma teoria e explicar para qualquer um que desejar técnicas para ser uma vela profissional. 

Durante o Ensino Fundamental, eu acreditava que seria impossível beijar na boca de uma pessoa, ficar com um menino e namorar. Passei anos, criando e elaborando métodos para ser invisível, assim procurando modos de ser mais aceita na tribo. Me esqueci completamente desses relatos. Caramba! Eu preciso mesmo escrever sobre os momentos mais marcantes da minha vida amorosa. 

Eu tinha esquecido de escrever esses relatos, não podia terminar Educação Amorosa sem essas narrativas. É até cômico. Vou voltar aos momentos que antecedem a minha aceitação total de deslocamento. Vou contar minhas experiências de vela profissional, os pensamentos que fizeram parte desse momento. 


Décima segunda lição - método para ser vela 

Quando Miranda começou a namorar Caio, eu não pensei nada, fiquei mesmo muito feliz por ela. Mas, confesso que, de todas essas felicidades, eu dispensaria a minha experiência de vela que eu tive quase dois anos com essa colega de escola. Eu era uma vela tão próxima e tão cultivada que o casal não deveria esquecer de mim no dia do aniversário de namoro. 

Caio e Miranda eram dois namoradinhos, terrivelmente apaixonados, curiosos por experimentar os segredos do sexo e do amor. Eu, que sempre descia com o casal de namoradinhos, ficava de vela. O que é uma vela? Vela é um objeto nas igrejas que serve como adorno. No relacionamento de Miranda e Caio, o qual eu vi desenvolver, crescer e acabar, foi tão intenso e tão mágico que qualquer escritor mamão com açúcar adoraria escrever, a minha participação, entre os dois, era um papel de coadjuvante, eu era um adorno que eles precisavam inserir no cenário. 

Miranda costumava discutir os assuntos sérios de namoro com Aninha, às vezes, ela discutia comigo, mas era muito raro. Confesso que eu ficava brava, a vontade que eu tinha de dizer era que eu estava lá o tempo inteiro, falando com os pais dela, acompanhando pacientemente os seus beijos demorados com Caio, ouvindo os seus suspiros longos, esperando e esperando. Nunca cobrei isso dela, eu não conseguiria cobrar mais atenção dela também, eu era muito covarde, mas tenho que admitir que ficou dentro de mim uma sensação de ingratidão por muito tempo. 

- Bruna, fica aqui tá, vou lá com Caio e se você ver alguma coisa avisa pra gente, tudo bem?
- tudo bem! - eu disse 

A primeira regra para ser vela é ser invisível, a segunda regra fundamental é ter paciência. Aliás, ter paciência é, realmente, a regra máxima para ser uma grande vela, porque os amantes nunca vão "se pegar" rapidinho. O tempo para os apaixonados é relativo. Eu procurava mexer com os meus pés, cantar música, ver as nuvens e etc; porém, sempre quando eu olhava o relógio, os cinco minutinhos de Miranda e Caio se expandiam milagrosamente. 

Eu chegava próximo deles, estavam no clima tão quente que eu não atrapalhei. Então, quando dava a hora, que não correspondiam ao cinco minutos exatos, me aproximava e dizia:

- Miranda, vamo? 

Eu precisava dizer com tom de autoridade. Miranda respeitava. Caio beijava as orelhas e as bochechas de Miranda, se despedindo apaixonadamente. Quando descíamos a rua Amaral Gama, Caio olhava, encantado, os andares de Miranda com uma postura soberba. (Tudo bem! Vamos perdoar os pombinhos, quando nos apaixonamos até os clichês mais idiotas, da noite para o dia, ficam bonitos). 

Houve um dia que eu briguei com a Miranda sobre essa história de ficar de vela o tempo inteiro, ela podia deixar a minha participação coadjuvante de lado às vezes. Foi a nossa primeira briga feia, depois de cinco minutos, voltamos a conversar. Mesmo eu não sendo parte da tribo das meninas, confesso que gostava muito de Miranda, ela foi uma boa amiga, não fazia piadinhas desnecessárias e era muito engraçada também. Principalmente, quando estávamos sozinhas. 

Depois desses dois anos de vela, posso dizer que nós deveríamos parar de escrever histórias de amor. Deveríamos escrever histórias sobre as velas. Na escola, as festas de namoro deveriam premiar as velas profissionais. Pois, são elas que acompanham a urgência dos relacionamentos amorosos da adolescência, escondem as histórias dos pais, criam a paciência para aguentar casais jovens de apaixonados. Entretanto, as velas das histórias de amor mamão com açúcar são completamente esquecidas nessas narrativas.  

Para vocês, caros leitores, que são velas profissionais também. Eu não esqueci de vocês. Alguns vivem o primeiro amor na escola. Outros vivem uma experiência de sexo e drogas na escola. Muitos outros podem contar experiências significativas de aprendizagem intelectual. Mas ninguém conta as narrativas solitárias das velas profissionais. Eu não esqueci de nós, meus leitores, eu vou escrever também sobre as pessoas que viveram a experiência fantástica de acompanhar os namoros dos outros. 

Nós, as velas profissionais, descobrimos que mexer os pés é uma ótima maneira de passar o tempo. Ficar sozinho com dois casais de namorados apaixonados pode ser uma experiência terrível, porém, facilmente quebrável depois de uma leve dose de humor matinal, (por exemplo, digam: vocês aí, porque não vão pro motel?), essa tática sempre funciona, principalmente, quando o clima está para dois e não para três. Descobrimos que aprender a ouvir o silêncio é uma questão de necessidade, não de cultura. Descobrimos que contar elefantinhos é sempre uma tarefa árdua e fundamental. Cada vela, elabora a sua própria tática, a sua própria estratégia e seu modo de ação. Todas as velas são adoráveis!

Naquele dia, eu contei elefantinhos azuis no céu, esperando e esperando os beijos demorados entre Caio e Miranda. O tempo é relativo para os apaixonados. Mas, para uma vela profissional, o tempo é longo e eterno demais. Imagino que a eternidade deve ser tão chata tal como esperar beijos demorados de casais apaixonados. Deve ser assim o céu, pessoas se beijando sem sexo, eu olhando para cada uma delas, tocando harpa eternamente e sentindo inveja de não ser beijada também.

Romeu e Julieta, por exemplo, quem foi a vela de Romeu e Julieta? Tenho certeza que, nesses três dias de namoro do casal mais famoso da literatura ocidental, havia uma vela que esperava os longos beijos demorados e as declarações de amor mais ridículas. Ah sim! Claro, a vela profissional ganhava para isso, era a Ama. Aliás, foi a Ama quem ajudou Julieta elaborar os planos de fuga, arrumar um remédio que mentiria a morte dela e casar escondido com Romeu. Por que nós esquecemos das ações de Ama? Ela foi fundamental para o casal viver a narrativa de morte, mais famosa da literatura.

Eu olhei de longe os beijos demorados entre Caio e Miranda. Já estava no número quinhentos de elefantinho azul, cansada de mexer os pés. Ah! Paciência é fundamental, fundamental! Minhas caras velas, é preciso pensar em outra coisas. Por exemplo, como era o nome daquela música?

- estava à toa na vida
o meu amor me chamou
pra ver a banda passar
cantando coisas de amor - cantei

Repeti o mesmo verso, sutilmente, mais alto.

- estava à toa na vida
o meu amor me chamou
pra ver a banda passar
cantando coisas de amor

Repeti ainda mais alto.

- estava à toa na vida
o meu amor me chamou
pra ver a banda passar
cantando.... coisas... de... AmoR

Caio percebeu a minha impaciência. Me aproximei dos dois e disse:

- e aí? Podemos ir, já tá tarde, não? - perguntei
- ah, desculpa, Bruna, esqueci de você, vamo sim

Caio puxou-a pela cintura. Deu-lhe um beijo de cinema. Eu segurei o fichário de Miranda, esperando os longos e intermináveis minutos de beijos apaixonados.

- eu te amo, Miranda - disse Caio
- ah, eu também te amo, seu bobo - disse Miranda

Finalmente, descemos a rua. Caio sempre fazia aquela postura de homem do filme Casablanca.  Eu ficava ainda mais silenciosa, sentia que não deveria estar inserida nessas cenas.

- ah, você viu que lindo! - ela disse, - ele disse que me ama! Bruna, ele disse que me ama!
- é, eu vi sim, Miranda

Não preciso dizer que ela passou o dia falando com detalhes todos os beijos demorados e intermináveis que Caio lhe dava. Eu percebia que a boca dela se mexia, era um movimento constante, de abrir e fechar da boca, o som saía da boca. Miranda falava, eu que não escutava. Pois, estava distraída tentando lembrar os versos da canção de Chico Buarque, como é que eu tinha esquecido a música inteira, ia tocá-la no próximo domingo. Falei baixinho:

- o velho fraco se esqueceu do cansaço
- que foi, Bruna?
- que foi o que?
- que você disse?
- eu disse que o fedelho do Caio não se cansou de beijar você hoje, não é?
- ah! Você viu! Ah que lindo que é ele!
- é, sim! Quase não deixou você voltar pra casa
- pois é, é que ele é demais, Bruna, blá blá blá blá blá

Ah! Meus duendes verdes, me proteja sempre da breguice insuportável de se apaixonar pela primeira vez. Amém!

sábado, 22 de novembro de 2014

Educação amorosa: cabulando aula

Eu estava ouvindo as músicas que mais marcaram a minha vida. Sem dúvida, Nirvana foi uma banda de animais; mesmo assim, foram as músicas de Nirvana que filtraram a minha adolescência. Marcou minha fúria. Kurt Cobain cantava mal, na verdade, ele gritava. Essa banda não tinha nenhum refinamento musical, mas tinha o grito de ódio que precisávamos externar:

who knows? Not me 
We never lost control 
you´re face to face 
with man who sold the world

Nós todos morreremos sozinhos, vagando milhões e milhões de montanhas, procurando e procurando. Quem sabe até fazer amizade com o homem que vendeu o mundo? Não é um má ideia cultivar amizades assim. Kurt Cobain, você era um animal, ainda bem que gravou essa canção de Bowie. Ainda bem que os poetas fazem profecias sobre o mundo pós-apocalíptico. Pena que achamos que a poesia é perda de tempo. Pena! 

Rock n' Roll é um grito de ódio. É a recusa dos refinamentos musicais, é a certeza de que o mundo não pode mais produzir poesias depois de tantas guerras, sangue, mortes e torturas. O mundo só pode produzir gritos de indignação, só pode produzir o lixo cultural. Rock n' Roll é mais do que uma música, é o símbolo da decadência de uma época. Nós que temos manias de modernidade, temos fascínio pelos feios, péssimos e repugnantes. 

There is no future, como diz o punk, there is no future

Quando eu penso nessas coisas, lembro das minhas caminhadas para fugir da escola. Apesar de todas essas palavras intensas, o máximo que eu costumava fazer era cabular aula para ficar no Shopping. Fazer o quê? Isso aqui não é um livro de Henry Miller que você, meu caro leitor, vai encontrar cenas  quentes de sexo, drogas e música. Esse texto é mais modesto, eu tenho uma vida mais cretina. 

Décima primeira lição - cabulando aula 

Era sexta-feira, tinha acordado sem vontade de levantar da cama. Tomei café com leite, comi pão com manteiga, troquei o meu pijama pelo uniforme da escola, amarrei o meu cabelo e fui até a Escola. Chegando lá, os meninos estavam fumando cigarros, as meninas da tribo estavam conversando sobre os meninos. Kevin estava quieto, sentado na escada, esperando o portão abrir. Rafael jogando Yu Gih Oh, também esperando o portão abrir. 

Eu pensei que não podia estar tudo igual. Não era possível que as coisas se repetissem tanto, tudo estava exatamente no mesmo lugar. Eu falei para Rafael:

- vamo cabular aula? - perguntei
- a gente não pode, Bruna, a gente tem aula hoje, esqueceu?
- será que a gente vai ter aula mesmo? Ou a gente vai ter centenas de aulas vagas, incluindo professoras que dormem na sala de aula? Porque se for assim, qual é o problema de cabular aula? 
- eu não vou fazer isso, não, - disse o Kevin
- vocês querem assistir aula? - perguntei

Os dois balançaram cabeça, mencionando que não. 

- então, gente, a gente nunca fez isso, vamo fazer? - disse, - olha, eu não estou com vontade de assistir aula hoje, quero cabular e vou, querem ir comigo? 
- não, Bruna, não vou fazer isso não - disse Rafael - é errado 
 - tudo bem, não quer fazer, não faça - disse, - e você, Kevin, vai entrar?

Kevin pareceu indeciso, então, disse:

- eu não sei, minha mãe não vai gostar disso
- tudo bem, então, vão assistir aula, eu não vou entrar. Depois, vocês me falam como foi o dia de vocês. Eu pareço aqui na hora da saída depois 
- tudo bem! - os dois disseram 

Esperei o portão fechar. Era um portão cinza, minúsculo, que fechava dramaticamente nas nossas caras, se nós não chegássemos na hora certa. Quando esse portão fechou, pensei que estava livre, foi um sentimento imediato de libertação. Depois, eu pensei: mas e agora? Que eu vou fazer até meio dia?

Debaixo de uma árvore, pensei que as meninas da tribo, talvez, não sofressem com essa sensação de vazio, quando elas cabulavam aula, porque, afinal, elas nunca cabulavam sem uma tribo para acompanhar.  A culpa foi minha, eu que inventei de cabular aula sem tribos. Senti tristeza, talvez, eu era a errada na história, tinha dito à elas que sabia ficar sozinha. Entretanto, a primeira vez que cabulava aula sem tribos, o resultado disso foi sentir desespero, porque eu não sabia como me divertir sozinha. 

Me afastei das redondezas da escola, caminhei até o mercadinho próximo, tomei água e fui embora. Caminhei até a rua Alfredo Pujol, olhei os velhinhos desanimados e fui embora. Caminhei até o Center Norte e lá, não fiz nada até às dez e meia. Fiquei olhando as vitrines, lendo os livros da Livraria Saraiva, contando as horas para dar o horário da saída. 

Quando me cansei de ficar na Livraria Saraiva, caminhei até um banco e fiquei sentada. Pensando nas possibilidades da minha mãe descobrir que eu não tinha ido para escola hoje. Fiz um levantamento do que ela poderia fazer comigo: 1) dar uma bronca inesquecível; 2) não deixar assistir televisão; 3) me proibir de sair na rua pra brincar com os meninos. Fiquei apavorada com essas possibilidades, mas já era muito tarde para arrependimentos. Não ia conseguir entrar na escola, depois das sete. 

Cinco minutos depois, quando eu me distraí, apareceu um menino pedindo a minha coca-cola. Eu estava comendo salgadinhos com coca-cola. Esse menino parecia ser muito pobre,  por isso, ele me pediu e eu não consegui negar, oferecendo. Dei a minha coca-cola para tomar um gole, mas esse menino pobre acabou roubando o meu refrigerante e me deixando apenas com o resto de salgadinhos. Não era possível que alguém roubasse de mim uma coca-cola. Nada nessa vida para mim, é impossível, acho que as pessoas devem pensar: nossa que menininha delicada e pequena, deve ser fácil assaltar ela.  (Pior que é fácil me assaltar! Vamos relevar, esse menino roubou, porque devia estar com sede ou com fome, afinal, até meninos pobres querem tomar coca-cola). 

Nada demais aconteceu, fiquei olhando as nuvens depois. Contando os números dos degraus da escada, pensando que não deveria ter cabulado aula. 

Finalmente, deu horário de voltar para escola. Olhei o Kevin e Rafael, estavam sentados me esperando, as meninas da tribo já tinham ido embora, não as vi. Perguntei o que tinha acontecido na escola nessa manhã que faltara. Eles foram categóricos: não aconteceu nada, Bruna, nada. Kevin estava com olhar tristonho, senti que desejava não ter ido à escola pela manhã; Rafael estava com uma expressão cansada, também não queria ter acordado. Me despedi dos dois e fui embora para minha casa. 

Quando voltei, sentei no sofá e assisti ao desenho animado Tom e Jerry. Minha mãe perguntou como tinha sido a escola. Eu respondi:

- hoje, foi o melhor dia, mãe - disse

Eu estava rindo do Tom, enquanto era enganado por Jerry.  

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Educação amorosa: o tédio

Aceitar o deslocamento foi a coisa mais difícil que fiz na escola. Mesmo percebendo a impossibilidade de pertencer à tribo das meninas, ficava com a esperança de um dia fazer parte; elas sentirem amor por mim. 

Quando eu já não me importava mais andar junto com elas. A Alice me disse que Aninha estava achando que eu tinha ficado legal. Fiquei curiosa, quer dizer que antes, eu não era legal, era uma menina chata? Deve ser, afinal, eu não era da turma. 

Andar sem tribo era mais difícil, às vezes, eu tinha vontade de contar as minhas impressões de desenhos animados, filmes e desabafar com alguém a respeito das brigas que havia em casa entre meus pais. Ficar sozinha era dolorido, sentia que ia perdendo o sorriso, quando chegava próximo da escola. Nas aulas vagas, nem pensava duas vezes, me escondia na biblioteca. 

Virei amigo de um menino negro que não tinha tribo também, chamado Kevin. Na realidade, conversávamos sobre equação do 2º grau e equação do 1º grau. Às vezes, trocávamos figurinhas do Yu Gi Oh. O menino gay, que era chamado Rafael, também conversava comigo na escola. Falávamos sobre a novela Betty, a feia. Os risinhos debochados e as piadinhas desnecessárias ainda existiam, principalmente, porque eu andava com esses meninos. 

Às vezes, os amigos de Caio brincavam falando: eh, Rafael, agora você achou uma namorada, viu. Eu ficava nervosa, mas, de certa maneira, já tinha acostumado ouvir imbecilidades daquela turma. Assim, passaram os dias, aprendendo que eu era um número de matrícula e vivendo o tédio. 

Décima lição - vivendo o tédio 

Como não fazia mais questão de conversar com as meninas da tribo. Não fiquei sabendo do desenvolvimento amoroso de cada uma delas, ia para escola fingir que estudava, contando nos dedos para as aulas acabarem e ir embora. Principalmente, nas quintas-feiras, porque eu tinha começado a fazer curso de teatro. Era o dia que me dava mais alegrias. 

Mas, não era quinta-feira, era mais uma temorosa e difícil segunda-feira. Pelo menos, estava calor. Nas segundas-feiras, eram as aulas de educação física. Os meninos eram os donos da quadra, as meninas ociosas olhavam os meninos jogarem futebol.  A escola parecia eterna, já tinha decorado os sons monótonos do futebol dos meninos, o tom dos risos debochados e os olhares eternos das meninas ociosas nas escadas. As nuvens não estavam bonitas para observar, contava os números de tijolos que tinha no muro à frente. Contava e recontava, esperando a escola acabar.

Gustavo era o menino novo, já tinha encontrado uma turma, sentou-se próximo de mim. Parecia que esperava alguém, não perguntei, continuei contando e recontando os números de tijolos. 

- sabe o que é isso? - perguntou Gustavo, mostrando algo na carteira

Eram camisinhas. (Não é que eu não sabia o que eram camisinhas. Minha mãe nunca teve cerimônia para discutir sexo comigo, mas eu nunca tinha tocado nelas). Gustavo mostrou-me, como se contasse um segredo de Estado, fiquei curiosa. 

- pra que você tá carregando elas na carteira? - perguntei 

- pra fazer balão - ele riu

Eu ri também e disse:

- quando eu tinha seis anos, eu encontrei sem querer uma camisinha na carteira do meu primo
- e aí?
- aí, eu perguntei pra ele o que era aquilo? Ele me disse que eram chicletes. Então, eu fiquei com vontade de mascar um.Aí, eu pedi um pra ele, né

Gustavo riu, como se eu tivesse contando uma piada.

- você tá brincando, não?
- não, na infância, acreditei que isso era um chiclete. Aí, sabe que aconteceu depois que pedi um chiclete pra ele?
- ele riu de você?
- também! Ele me disse que isso era um chiclete de adulto que eu só podia comer depois dos meus trinta anos 

Gustavo riu. Eu nunca tinha feito um menino rir na minha vida. Senti prazer pelo riso verdadeiro. Ele era um menino com dentes tortos, alto demais, atrapalhado demais para sua altura, desconjuntado. Naquele dia, eu achei, pela primeira vez, alguma beleza entre os meninos da escola. Gustavo tinha uma energia contagiante, as meninas eram maluquinhas para ficar com ele. Entendi logo o motivo, era um rapaz encantador. O que eu dava risada apenas era quando elas diziam que Gustavo era o menino mais bonito da escola. A vontade que eu tinha era dizer: bom, depois, sou eu quem não sabe escolher meninos

Pedro, amigo de Caio, aproximou-se. Gustavo estava me contando sobre a escola particular que tinha sido expulso, as diferenças entre estudar aqui e lá, os amigos que tinha deixado e etc. Quando Pedro chegou perto de nós, ele contou uma piada desnecessária: você gosta mesmo de homem, Gu, tá perto do Tévez. Eu me calei, senti ódio e me afastei imediatamente da presença de Gustavo. 

Voltei a contar e recontar tijolos, sentindo vontade de chorar e engolindo o choro para não sentir vergonha. Gustavo tinha guardado as camisinhas, olhou-me fraternalmente, esperou que Pedro se distraísse. Fiquei curiosa com a atitude, olhei a cena. Gustavo pegou um balão branco, encheu com a boca e soltou próximo do ouvido de Pedro. 

Pedro pulou assutado e gritou: mas, o que é isso? 
Gustavo disse: é a camisinha que usei ontem! 

Gustavo deu gargalhadas, piscou o seu olho direito para mim. Eu ri muito e voltei a recontar e contar tijolos. Começou a chover, a Educação Física acabou de repente. Me senti vingada, subi até a sala de aula. Naquele dia, eu gostei de Gustavo. Nunca mais conversamos. Ele passou a ficar com a Mariana da outra sala, que andava com a Joyce, (uma moça que quase me bateu um dia). 

No dia seguinte, havia burburinhos que Gustavo estava fazendo sexo oral atrás do muro da escola com uma menina que não era a Mariana. Sempre quando ele passava perto de mim, soltava os seus dentes tortos e me abraçava com o sorriso. Ele ficou mal visto pelos professores e pelas meninas da tribo também. Eu, desde aquele dia, guardei o seu olhar fraterno e a proteção que ele me dera sem pedir. 

Foi a única vez que conversamos. Dias depois desse acontecimento, o mundo estava exatamente onde tinha que estar. Eu usava uniformes, caminhava até a escola, esperava o tempo da escola acabar, deitava o meu rosto entre os meus braços, contava as minhas impressões sobre os capítulos da novela para Rafael, trocava figurinhas com Kevin, estudava equações do primeiro grau. Contava e recontava tijolos. O clímax da minha vida era a hora da saída. 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Educação Amorosa: o aniversário e as alianças

Serei sincera com vocês, nunca me imaginei casando com alguém. Era mais fácil me imaginar tocando numa banda de rock, deslocada no mundo, do que me imaginar com um homem para toda a vida. Na realidade, isso sempre me assustou muito, ficar com a mesma pessoa até a hora da minha morte.

As meninas da tribo sonhavam o tempo inteiro com o casamento e alianças. Fico me perguntando se era um desejo real? Será? Na adolescência, criamos muitos acontecimentos na nossa cabeça, nem sempre eles vingam. No último episódio, contei o caso do meu primeiro beijo. Agora, eu vou contar o evento que fez, definitivamente, aceitar o meu deslocamento em relação às meninas. 

Nona Lição - o deslocamento 

Era um dia chuvoso, eram gotas finas que cobriam as nossas cabeças, eu escondia meu rosto com meus longos cabelos e apertava os meus braços para proteger-me do frio. As meninas da tribo ainda não tinham chegado na escola, sentei-me na primeira carteira, observei a professora de química entrar e deitar em cima da mesa, sonolenta. 

Desenhei Pikachus e corpos femininos no meu caderno, esperando passar o tempo. Alice foi a primeira das meninas que chegou, sentou-se ao meu lado, não puxou nenhuma conversa. Com vontade de matar o tédio, eu tentei iniciar uma conversa:

- Alice, eu tenho uma coisa pra te contar: ontem, eu estava jogando futebol com os meninos

Alice me ignorou, estava entretida com os seus fios de cabelo e eu estava explicando os detalhes do último gol maravilhoso que havia dado contra os meninos da minha rua. De repente, Miranda e Aninha chegaram, sentaram-se ao lado de Alice. Eu fiquei com o rosto de encontro à elas. Alice estava com um péssimo humor, Miranda parecia radiante, Aninha estava igual aos outros dias. 

- eu não sei o que eu vou fazer, ele está me ignorando totalmente - disse Alice 
- ele quem? - eu perguntei 
- o menino que eu estou ficando - disse Alice 
- você está ficando com um garoto? - perguntei 
- você não sabia, Bruna? - perguntou Miranda
- não

Eu estava enganada, a Alice não era a única de péssimo humor aquele dia. As três estavam entristecidas, eu que estava comum. 

- Bruna, você é muito lesada, mesmo - disse Miranda
- ela levou um fora do Doce de Leite - disse Aninha

Doce de Leite era o apelido do menino que Alice estava apaixonada. Eu nunca tinha visto esse menino, sabia que ele estudava à noite. Alice passava horas dos dias suspirando pelos cantos por causa dele. Demorei meses para perceber que Doce de Leite não era Doce de Leite, era, na verdade, o menino da Alice, porque, segundo ela, o menino tinha sabor de Doce de Leite. 

Eu perguntei:

- mas, você tá assim por causa desse garoto?
- ah! Bruna, não quero falar disso, tá bom, - disse Alice, - na verdade, não quero conversar hoje não 

As meninas ficaram silenciosas. Eu continuei olhando o rosto melancólico de Alice, pensei que podia tirar uma fotografia e guardar na minha mente. Na verdade, as três meninas da tribo estavam com olhares sofridos, me senti manca de novo, não entendi o que estava acontecendo. 

- tá tudo uma merda! - disse Miranda

Miranda me surpreendeu com essa declaração autêntica e sincera, principalmente, porque ela não era muito de falar "merda" ou palavrões. Logo, fui começando a entender o que sucedia, elas estavam com corações partidos, ao mesmo tempo, todas estavam vivendo uma decepção amorosa. Entendi que não poderia ajudar, calei-me e ouvi apenas. 

- eu ia casar com ele, gente! - disse Alice, - eu me imaginava casando com ele. Poxa! Ele me disse que me amava, aí vai e fica com  as outras 

Aninha abraçou-a e disse:

- eu também ia casar com ele 

- pois é, - disse Miranda

As três se abraçaram, acolhendo uma a outra. A Aninha era quem estava mais irritada, logo, ela me perguntou:

- e você, Bruna?
- que que tem eu?
- não tem nada pra dizer pra gente
- éééééh! Eu sei lá 

Aninha apertou os olhos, eu fiquei olhando as nuvens. Então, disse a primeira coisa que me apareceu na cabeça:

- olha, eu também levei pé na bunda, também tô triste 

Então, elas me abraçaram, acolhendo. Acredito que pessoas tristes gostam ainda mais de pessoas infelizes, atraem essa espécie de energia. A tristeza é viciante, porque também íntegra, eu fingi que estava triste para estar ao lado delas. Mas, me senti um pouco idiota, abracei-as mesmo assim e disse:

- sei lá, gente! Vai passar, né
- como vai passar, Bruna? Eu não quero que você fale isso, eu quero que fale o que eu quero ouvir - disse Alice
- Alice, você vai casar e ter filhos com ele, vai dá tudo certo no final, - eu disse, dando-lhe papelzinhos para enxugar as lágrimas. Releva, caro leitor, apaixonados aceitam com mais facilidade mentiras que são bonitas e infundadas. Apaixonados são meio estúpidos mesmo, é uma doença. 

- a gente vai casar tudo com os nossos homens, - disse Aninha, - e vamos todas morar juntas. Eu vou ser madrinha da sua filha Miranda, você vai morar com a gente Alice e vai ser que nem a Mônica de Friends

De novo, a imaginação já estava posta, eu não entrava nessa rede de significados. Eu forcei e disse:

- eu posso aparecer de vez em quando na casa de vocês ou não?
- claro - disse Miranda

Miranda disse sinceramente. Alice não mudou a sua expressão facial, quando Miranda disse que eu podia entrar nessa brincadeira de faz de conta também. 

- você também vai casar, Bruna - disse Miranda
- e ter filhos, ficar rica e famosa - disse Alice, finalmente rindo

As três se abraçaram, acolhendo uma a outra. Eu observei e senti que podia fotografar esse momento na minha mente. Alice deu a ordem para entrar no abraço também, eu abracei somente Miranda. Senti que, de fato, não pertencia ao universo de significados que elas tinham. Entretanto, senti que, mesmo assim, poderia amá-las. 

Era o meu aniversário de 15 anos, estava muito feliz. Miranda, que nascemos no mesmo mês, que recordou e pediu desculpas. 

- ah! Bruna, hoje você faz aniversário! 
- sim!
- quantos anos? - perguntou Alice
- 15 anos 

Miranda me deu uma blusa de presente. Alice deu um abraço caloroso e desejou muitas alegrias. Aninha não fez insinuações indelicadas. Mesmo vendo as três tristes, eu senti muita felicidade, senti que eu podia amá-las daquela forma mesmo. Com todas as diferenças, dúvidas e medos, eu senti que elas eram mais vulneráveis do que imaginava. As três meninas da tribo não estavam mais arrogantes, desfilando nos corredores da escola com seus belos corpos, elas também choravam. 

- hoje, vou devolver a aliança que Caio me deu - disse Miranda
- por que não fica com você? - perguntei 
- eu vou ficar com a aliança que lembra ele, Bruna - disse Miranda, - você tá louca?
- não é isso, bom, deixa pra lá, não quis te ofender 
- eu queria tanto ganhar uma aliança do Doce de Leite - disse Alice
- o Filipe disse que ia me dar uma aliança, mas terminamos antes - disse Aninha 

Elas eram capazes de ficar seis horas falando de alianças. Eu era capaz de ignorar seis horas e observar as cadeiras. 

- e o moço lá, o Daniel? - perguntou Alice
- eu sei lá, nunca mais vi ele - disse, - também, deixa assim 
- vocês ficaram, Bruna? - disse Miranda
- não
- vocês ficaram, né? - disse Alice
- não 
- ah! Vocês ficaram? - disse Aninha

Na terceira vez, não disse que sim, mas também não disse que não. Já que elas insistiram. 

- sim, eu fiquei com ele - menti descaradamente 
- e foi bom 
- ah! Foi sim, foi como atravessar a via láctea com barquinho rosa 

Já que a imaginação delas era exagerada para descrever beijos na boca, logo eu também tinha licença poética para inventar o que era o beijo na boca para mim. 

- ah! Imagina a gente se cansando ao mesmo tempo - disse Alice 
- eu não sei se eu quero me casar - eu disse 
- você fala isso agora, Bruna, - disse Alice
- talvez, mas eu sei que é agora que tô vivendo. E agora! Eu não sei se eu quero me casar - disse 

Nunca havia sido tão sincera com elas como nesse dia. As meninas da tribo continuaram sonhando os sonhos que desejavam; eu não entrava na brincadeira. Ao menos, não me importei com os olhos perplexos e observei as linhas das cadeiras detalhadamente. Eu estava feliz. Amava sem precisar ser amada por cada uma delas. 

Até hoje, lembro que poderia fotografar o abraço acolhedor que, entre elas, se davam. Mesmo não sendo a integrante desse Sex and City, sei encontrar amor, quando há condições de existência. Eu não era convidada para entrar nessa tribo, mas sentia amor apesar de tudo. Apesar de tudo. 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Educação amorosa: o caso do primeiro beijo e outras observações

Sex and City e Anos incríveis eram seriados que passavam na televisão, cheguei a assistir aos dois. O segundo, eu tinha paixão, não gostava de perder nenhum episódio na TV Cultura; já o primeiro seriado, que passava na Gazeta, eu tinha um sentimento ambíguo; me diverti muito, rindo das confusões das quatro jovens moradoras de Nova York, seus desejos amorosos e os seus relacionamentos conturbados; mas era um sentimento de leveza e repulsa ao mesmo tempo. Algo nesse seriado nova-iorquino me incomodava intimamente. 

Cresci com esses dois imaginários cênicos na minha cabeça. A respeito da imaginação musical, escutava Nirvana todos os dias, sonhava crescer, tocar guitarra, fazer uma banda de rock grunge e ser poetisa. Esses desejos foram misturados mais tarde com outro sonho intenso, que me consumiu inteira, o desejo de ser uma atriz de cinema famosa. Até então, nunca tinha assistido a uma peça de teatro, não tinha muitas referências das diferenças de linguagens entre esses dois veículos de comunicação.

A coincidência desses dois seriados é que ambos tratavam da mesma questão: jovens ou adolescentes crescendo numa cidade grande em pleno auge de 1980. Eu sempre desejei narrar uma história desse jeito; talvez, as minhas experiências, não porque a minha história é digna de fazer um filme ou escrever um livro, (porque, todos pensam assim que as suas histórias pessoais são dignas de escrever um livro; porém, eu penso o contrário, acho que a história de uma galinha é mais interessante do que a minha) . Ao contrário, a minha história é insignificante para você, caro leitor, mas a história que me atravessa, também se encontra com outras histórias. Contar a minha história poderia ser um modo de narrar essa geração, (agora, soou ambicioso!), através de alguém que, realmente, viveu e sentiu o imaginário árduo das gerações anteriores e o peso denso dos tempos extremos que ainda sondam as nossas cabeças.

Os nossos ídolos morreram jovens. O suicídio foi o ato revolucionário que inaugurou 1990. Fizemos dos suicidas e depressivos nossos maiores ídolos, ao invés de oferecermos um apoio mais efetivo. Acho que esse é maior indício da nossa sociedade doente, fazemos do sofrimento dos outros um produto de sucesso. 

Por isso, falar da minha adolescência significa falar do meu tempo, é maneira que eu achei para discutir o nosso mal estar de estimação. Então, continuando a série da educação amorosa ou aprendizagens de violência que tive na escola. Hoje, vou contar o caso do meu primeiro beijo. A história dessa narradora é a menos importante, o assunto amor é uma desculpa para falar outras coisas. 

Oitava lição: O caso do primeiro beijo 

Conversava muito com a minha prima através do msn sobre namorados, ficantes e meninos que eu só podia desejar de longe. Ela, um dia, me perguntou se eu tinha beijado na boca uma vez, eu disse que sim, mas que o beijo não tinha sido como imaginava na minha cabeça. Meu primeiro beijo foi um pedido que eu fiz ao Caio, (o ficante de Miranda), estava irritada de não saber e de ser tão cobrada para conhecer o beijo na boca, então, me aproximei de Caio e falei: me empurra pra qualquer garoto, hoje eu vou beijar na boca. 

Caio me olhou, assustado, não entendendo essa decisão repentina que eu havia tomado. Eu continuei firme com a minha decisão, estava querendo resolver essa minha falta de conhecimento sobre beijos na boca, seria, então, um teste empírico, quase uma necessidade científica. Caio me perguntou: 

- alguém na cabeça? - ele disse 
- não, ninguém, você não tem nenhum amigo pra me apresentar ?- eu perguntei 
- ah! Eu acho que eu tenho um 

Para variar, estávamos numa outra aula vaga. Caio saiu da sala de aula, procurando alguém que tivesse algum interesse em mim. Quando eu fiz esse pedido, logo, me arrependi imediatamente, notei que a última pessoa que poderia contribuir para acabar com a minha curiosidade, não era o Caio e, muito menos, alguma das meninas da tribo. Miranda se aproximou de Caio, deu-lhe um beijo na boca e ambos disseram:

- tem o Edu 
- mas, o Edu, eu não quero - disse 

O Edu era uma figura atrapalhada, muito magrela, nada atraente e com quem não tinha nenhuma intimidade. Me arrependi amargamente, eu quase disse que era melhor deixar essa história de lado, era uma loucura da minha cabeça. Entretanto, a minha curiosidade foi mais intensa do que a passagem do tempo. 

Caio insistiu:

- se você não ficar com o Edu, você não fica com mais ninguém, Bruna 
- e foi você que pediu - reiterou Miranda, - você vai deixar essa oportunidade passar? 

Era uma oportunidade, duvidava que acontecesse uma possibilidade de uma oportunidade tão gratuita como essa aparecer de novo. Eu pensei que mesmo ele não sendo atraente para mim, não sendo alguém que eu tivesse alguma intimidade, sendo feio, atrapalhado e desajeitado. Era uma oportunidade de duas pessoas feias e desajustadas de resolver algo que era preciso fazer. Decidi que ia ser o meu primeiro beijo na boca. 

- tudo bem, eu fico com ele - arrependida, eu continuei firme com a minha decisão. Afinal, era a única oportunidade que eu teria na minha vida de beijar alguém, eu não ia ter outras oportunidades como essa, não podia deixar escapar. (Releva a minha falta de prática, leitores, eu tinha uma noção de tempo muito limitada). 

- então, você vai ficar com Edu na hora do intervalo, tudo bem? - perguntou Caio

Eu hesitei com a cabeça. Miranda insistiu:

- tudo bem? -  a pergunta tinha o tom imperativo 
- tudo bem - eu respondi

Deu a hora do intervalo. A próxima aula era de química, a professora de química costumava dormir em cima da mesa, não passava matéria e nos deixava muito livres. Eu procurei me esconder, porém, não podia me esconder na biblioteca; o lugar de encontro para beijos secretos era sempre lá. Foi a primeira vez que senti o desejo de cabular aula, fiquei preocupada, tentando desviar de algum conhecido na escola. Caio e Miranda encontram-me e levaram-me até o Eduardo, como se eu fosse uma fugitiva em ação. 

A única vez que eu tinha conversado com esse menino, foi numa quinta-feira que perguntei o seu nome e ele me disse baixinho: eu me chamo Eduardo. Foi muito gentil comigo, tratou-me com todo o respeito do mundo, era um menino tímido que escondia o rosto com boné. Era um menino feio, atrapalhado com as mãos e muito magro. Naquele momento, quando eu o vi, pareceu que ele tinha sido sugado inteiro por sua magreza por causa do espanto e da ansiedade. As paredes estavam monumentais, tudo era maior do que parecia. Eu não podia sair correndo, tinha que fazer, estava lá, eu que tinha pedido. 

Mas, fiquei paralisada. Edu estava tão assustado que virou uma vara de pau. Ficamos rosto a rosto, não nos enxergamos de perto. Caio empurrou Edu até a minha direção; eu dei um pulinho para trás. Miranda me empurrou até a direção oposta. Edu e eu ficamos sem jeito nos observando, não lembro exatamente quem tomou a atitude. O que eu me recordo é que foi igual tomar remédio ruim, fechei os olhos e beijei. Durou menos de um minuto, quando terminamos o beijo. Edu saiu correndo, como se tivesse feito algo errado. Eu fiquei parada olhando as paredes brancas e enormes que me observava. 

Caio correu atrás de Edu, chutando a bunda do menino. Fiquei triste, subi devagar as escadas. Miranda já subira antes. Na sala de aula, elas estavam rindo da minha atitude, todos já sabiam do acontecimento; eu era o assunto. Me arrependi e senti desejo de chorar. Na esperança de não ouvir mais comentários, sentei próximo da Alice, ela me perguntou:

- você beijou na boca? 
- beijei - rindo
- quem foi o menino?
- o menino que o Caio arrastou 
- quem é?
- é o Edu
- mas como ele é, Bruna? 
- ah! Ele é da 7C, é um menino magro, muito quieto. Você não conhece?
- não conheço 

Ela assoou o nariz e eu sentei silenciosa. Era aula de química, escrevi o meu primeiro poema anti-amor. Desejei que, no dia seguinte, as pessoas me esquecessem. (Não lembro se foi bem isso que aconteceu, na verdade, estou contando as coisas através do meu olhar parcial das coisas, a memória filtra os episódios). Nesse dia, senti vontade de desaparecer. Na realidade, eu era uma menina muito covarde, bastante banal e medíocre, desconfiava demais da minha intuição e sempre entrava numas situações desconfortáveis para mim. Ao lado de pessoas que não pareciam minhas amigas, fiquei com vergonha da minha incapacidade de correr atrás dos meus desejos, fiquei com vergonha da minha dependência dos outros e da minha carência. Fiquei com vontade de sumir.

Nos dias que se sucederam, aonde quer que eu andava, escutava risinhos debochados, conversas intelectualizantes sobre ficar com meninos feios e piadas desnecessárias. Fui tentar jogar futebol, uma menina começou a debochar das minhas pernas, então, eu fiquei brava e quis bater nela. Ela riu, puxou os meus cabelos e disse: não vou bater em você, baba ovo, você fica aí que você já tá marcada. Fiquei muito brava, sentindo medo. As meninas da tribo ignoravam essa minha sensação de mal estar, elas tinham coisas mais importantes para sentir, como por exemplo, o desejo de serem amadas. Nunca mais pedi ao Caio alguém para beijar e nunca mais pedi nada para as meninas da tribo. Eu virei um cadeado, passei a ser a plateia delas.

Me calei.