Um corte macio por um
metal esquecido
a minha pele é separada
em duas
(Talvez, a arma branca
estava escondida em uma caixa de sapatos. Estou sendo irônico! É só uma piada)
Caixa de sapatos e suas tranqueiras é
o verdadeiro mundo das maravilhas. Alice poderia muito bem se perder dentro de
uma caixa de sapatos.
Ela preferiu ficar perdida nos seus
subterrâneos oníricos. Todos nós! Todos nós! O que eu sonhei ontem à noite?
A faca suga palavras impossíveis.
Esqueci qual era o nome da minha mãe. Um fantasma me impediu que eu fosse
completar meu último ato. Não que eu acreditasse em fantasmas, nunca acreditei.
Sou ateu; mas, sempre costumo esquecer a palavra que antecede o “adeus”. Aaaah!
Um corte suave que desfigura lentamente meus braços e pernas. Eu esqueci,
talvez, as palavras impossíveis em uma dessas caixas de sapatos, elas poderiam
entrar na ferida que eu mesma criei, simplesmente, pelo prazer de criar
machucados. Qual era o nome do irmão que minha mãe abortou? Qual era o nome do
filho que eu ia ter com Maria? Qual era mesmo o nome dos meus pais? O sangue
escorre quente, a faca alisa sua passagem como um tapete cinza, a coloração
vermelha ilumina a frieza do metal. As palavras escorrem sem nomes, elas são
pequenos sons caminhando na multidão indiscriminada do silêncio.
Um metal anônimo perdido no meio de
monte de tranqueiras. Ao lado de listas banais e notas fiscais, a faca espera a
palavra certa. O momento oportuno, para deixar de ser anônima, o metal anônimo
deixará de ser uma tranqueira cega e esquecida dentro de um caixa de sapatos
para virar uma faca de um suicida. O mundo costuma aplaudir os deprimidos e os
drogados, facas de suicidas ganham fotos na primeira página de revistas
famosas. Sugando palavras indizíveis, o sangue acalenta a frieza do ato. O
tédio sucumbe, eu sinto prazer pelos meus machucados. Palavras que não são ditas,
são doenças escondidas. O fantasma é a
fotografia que guardei dentro da caixa de sapatos.
A foto de uma pessoa que eu recortei
com uma tesoura. Na verdade, existe apenas o contorno dessa pessoa. A fotografia
é a imagem da ausência, é o alimento da minha imaginação. Afinal, o que é a
memória do que um lugar onde o passado recebe o auxílio da criatividade e da
imaginação. Não me recordo sequer da voz dessa pessoa, sou um homem que
preferiu esquecer os nomes que fizeram parte da minha história. Os nomes só
servem para atrapalhar. (Eu falo demais, falo demais, quero me calar).
A suavidade de um corte profundo na
minha garganta aquietando qualquer possibilidade de produzir mais sons. Poderia
enfiar essa faca manchada dentro da minha boca, eu paro assim de produzir sons.
Inventar doenças também é parte das minhas atividades favoritas, eu me formei
em medicina, porque era apaixonado por doenças infectuosas. Faço de mim mesmo a
minha melhor cobaia, - óh! Cacete! Como dói inventar feridas. Qual era o nome? Qual era o nome? A faca suga
as palavras que me restam, não consigo mais produzir vogais, produzo pequenas
vibrantes e bilabiais. Me reconheço como um bebê. Choro devagar, não há nenhum
som reproduzido por mim, apenas a imagem sonora que ganha formas diante da
multidão de silêncios dentro do sótão. A caixa de sapato grita: “A faca está
cheia de história! A faca é a história”.
Cortei devagar minhas cordas vocais,
destruí cada uma delas como um violão. É meio surreal, como é possível se
manter vivo depois de cortar a garganta? Depois de perder tanto sangue? A faca
grita: “ eu virei uma tagarela! Todos vão perguntar sobre você, o que eu vou
falar? O que eu vou dizer?” Eu só consigo enxergar vagamente o desespero
verborrágico das coisas, sinto pena, choro devagar. A fotografia diz: “ você
pode me recortar, mas a sua imaginação sempre estará viva. A memória não vai
deixar de existir”. O fantasma ainda está vivo, a faca de suicida terá a sua
fama. Eu morro como um personagem literário, como morreu Édipo Rei. Eu sou
ninguém.
A caixa de sapatos grita: “ele
morreu! Ele morreu!”.
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