sábado, 20 de setembro de 2014

Vamos contar uma história de racismo

Eu não gosto de falar desse tema. Não é pela razão de que é um assunto muito polêmico e espinhoso. Não é isso. Temas polêmicos precisam e devem ser discutidos por pessoas que se interessam minimamente por estudos nas humanas e pela dignidade humana, (sem dúvida, também pelos artistas que, na minha opinião, pode se dar ao capricho de não precisar ter todas as fontes científicas e referências eruditas a respeito de tudo. O que eu quero dizer com isso.Um artista não necessariamente será um bom artista, porque ele é comunista, feminista, ateu ou gay. Ele vai ser bom artista se fizer uma boa arte. Simples assim. Mas, deixemos isso para outro assunto). 

Eu não gosto desse assunto, simplesmente, porque eu não sou a vítima direta do racismo e - digamos, usando uma expressão coloquial do português, - "eu não manjo dos paranauê teórico, entendeu?". Então, decidi escrever sobre esse assunto através de uma crônica. Afinal, elas (as crônicas) não necessariamente precisam ter um formato rígido, e não preciso me esforçar muito para checar informações, procurar referências e etc. Posso apenas contar uma história pessoal e comentar minhas impressões dela que eu tenho a respeito. 

O que me incomoda mais do preconceito, não é somente a violência física. Obviamente, ter a consciência da morte de milhares de negros em periferias e lugares marginais é bastante perturbador. Mas, sejamos sinceros, sem hipocrisia, por mais perturbador que isso seja, eu durmo tranquilamente à noite. Eu acordo, pego ônibus, escuto minha rádio F.M. no meu celular, vou para faculdade, escuto os professores doutores me jogarem teorias e livros goela abaixo e vivo muito bem. Obrigada. Nada acontece, para mim ao menos, já que não nasci com a cor negra estampada na minha pele. O que eu tenho é sangue negro, mas não tenho cor, por incrível que isso pareça, a cor negra é um traço de distinção social altamente relevante. 

Eu estudei em escolas públicas minha vida inteira. Estudei em três colégios diferentes, todos foram escolas estaduais. Sempre achei natural que as meninas negras fossem humilhadas pelos meninos bagunceiros, afinal, cabelo cacheado é feio. Essas verdades foram se apresentado prontas para mim. Não houve sequer nenhuma contestação de que, talvez, a ideia de cabelo cacheado ser feio fosse uma invenção social. Eu estudava em um colégio estadual chamado Frontino Guimarães, tinha uma menina na minha sala, que agora não vou recordar o nome dela, que era dentuça, tinha cabelos cacheados que sempre os deixava preso e era negra. Ela tinha um apelido "carinhoso" na sala de aula, os meninos bagunceiros chamavam essa menina negra de Dengue. Aliás, os meninos bagunceiros tinham a mania irritante de humilhar essa menina e outras meninas, aparentemente, isso sempre foi visto com muita naturalidade. Afinal, são somente meninos, eles podem fazer piadas com as meninas. É só brincadeira de criança. 

Passou alguns anos. Eu fui uma exceção dentre vários colegas que estudaram comigo, consegui entrar numa universidade pública. É difícil de explicar para as pessoas o que significa entrar numa universidade pública. Depois de alguns anos fazendo faculdade, percebe-se que essa realização é uma besteira total, que a sociedade seria melhor governada por golfinhos. Entretanto, quando eu estudava em uma escola estadual, quando não estava fazendo uma graduação, a entrada em uma universidade pública era uma espécie de paraíso. Achava mesmo que todas as minhas angústias seriam resolvidas imediatamente, encontrando pessoas estranhas como eu e, finalmente, tendo a possibilidade de ter voz. (Isso pode acontecer no paraíso, mas não acontece em uma universidade pública brasileira). 

A literatura tem uma influência profunda na imaginação das pessoas, nas ideias e, às vezes, nos costumes e nos hábitos das pessoas. O Brasil é um país que não tem uma tradição de grandes leitores, na escravidão, os leitores pertenciam as classe sociais mais privilegiadas. No livro " A formação da literatura brasileira", Antonio Candido explica que o leitor-modelo mais presente na formação do que hoje conhecemos como literatura, era, na sua grande maioria, mulheres brancas e homens brancos, eruditos e pequenos Brás Cubas. Homens que poderiam olhar no andar de cima, diante dos meros mortais, sentar sobre as costas de um negro e dá risadas debochadas sobre a natureza humana. Não pense que isso é pouco. 

Nas escolas estaduais, não se ensina filosofia direito, sociologia direito e muito menos ciência direito. Não pense que isso pouco.  Há pouco tempo, não havia, se eu não me engano, nem sociologia nas escolas, eu não tive sociologia na escola. E tive uma filosofia fragmentada, pouco trabalhada, pouco estudada. (Tive um excelente professor de filosofia, Márcio Palharini, mas, eram duas aulas,  de cinquenta minutos, e muitos de nós com dificuldade enormes de leitura e indisciplinados. Mesmo um excelente professor, como ele é, teria muita dificuldade em ensinar bem sua disciplina diante de um cenário desses).  Ciência, enfim, isso é uma piada. É melhor não comentar sobre esse assunto. Estudar numa escola pública ensina: 1) você não tem chance de entrar numa universidade pública; 2) você não tem chance de melhorar em matemática; 3) você não tem chance de ser alguém na vida; 4) você não tem chance de melhorar em redação; 5) você não tem chance. 

Você não tem chance 

Isso é um mantra. Os professores repetem isso o tempo inteiro, o crescimento da autoconfiança negativa é acompanhado com as palavras. Você não tem chance. Você não tem chance. Você não tem chance. Ao lado de algumas violências escolares comuns, a dose de apoio, por parte da instituição pública, é bastante negativa também. A conclusão é bem simples. A maioria dos alunos da rede pública estadual tem uma autoconfiança abaixo de zero, bastante difícil de ser reconstruída. Por isso, repito, é muito difícil explicar para as pessoas a sensação de entrar numa universidade pública. Depois de ouvir centenas de vezes, você não tem chance. Você não tem chance. 

Agora, vamos para história de racismo. As ideias ficam arraigadas na nossa imaginação. Não é mesmo? Quando entrei na faculdade, eu me senti muito feliz. Uma sensação única. Conheci diversos autores. E um dos autores que mais me marcou, era um homem chamado Milton Santos. Até então, eu só tinha ouvido falar, superficialmente, a respeito das ideias dele, mas não tinha visto nenhuma foto dele. 

Como sempre fui uma pessoa curiosa. Resolvi procurar no mundo mágico do Yotube alguma entrevista dele. Boom! A surpresa. Milton Santos é um negro? Como?  Eu fiquei surpreendida, não conhecia o autor mesmo. Fiquei surpresa com a possibilidade de um homem tão culto e erudito ser um homem negro. De repente, eu entendi. O mantra "você não tem chance" é mais internalizado na sociedade do que eu imaginava. 

O lado bom disso: eu, realmente, comecei a desconfiar das imagens prontas que eu sempre aprendi 
O lado ruim disso: o racismo é aprendido como algo natural, há muito nele em mim que não conheço. 

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