quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Cicatrizes

FONTE:

SMALL, David. Cicatrizes. Leya Cult, 2010.
CARROL, Lewis. Alice: Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Maria Luiza X. A. Borges. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010.





Esse quadrinho é uma autobiografia de David Small, autor e ilustrador desse livro. Ele vai expor alguns momentos dolorosos que viveu, enquanto morava com seus pais. Na infância, a personagem David teve um câncer na garganta que afetou a sua voz.

David anuncia que viver sem voz será absolutamente significativo para a formação da personalidade dele. No início, ele faz um levantamento das linguagens sonoras da família. A mãe se impõe com os sons dos pratos na pia. O irmão se impõe com o som da bateria. O pai, (se eu não me engano), se impõe com o som da máquina de Raio X (não tenho certeza). A linguagem de David, para chamar atenção das pessoas, era ficar doente.
Quase sempre, David tinha algum problema de saúde. O pai sempre fazia uma centena de exames com Raio X para verificar a causa e os desenvolvimentos da doença, esse procedimento era padrão. Entretanto, por conta da quantidade de raios ultravioletas numa criança, David acabou desenvolvendo um câncer. O quadrinho conta a origem das cicatrizes que ele tem no pescoço e como isso foi significativo para formar a sua mentalidade no universo adulto.
O quadrinho traz uma referência literária famosa. A personagem David é fascinada pelo universo de “Alice no país das maravilhas”. Isso é absolutamente relevante para o desenvolvimento do enredo e a formação de personagem desse quadrinho. Quando criança, David acredita que a Alice entra no universo das maravilhas, onde flores falam, animais desaparecem e etc, porque essa garotinha possui cabelos dourados. Por isso, ele coloca uma toalha amarela e brinca no quintal, fingindo que possui cabelos dourados para entrar no universo das maravilhas de Lewis Carroll.
David entra na juventude e faz uma terapia. E, finalmente, entraremos no que essa resenha gostaria de discutir. David faz terapia com um coelho. (Particularmente, preferia fazer terapia com um gato, já que é o meu personagem favorito desse livro. Porém, eu imagino que o gato não me deixaria mais calma e sim mais confusa. Ele diria: “depende bastante de para onde quer ir?, disse o gato (...) Então não importa que caminho tome (...) Contanto que eu chegue em algum lugar, Alice acrescentou à guisa de explicação. Oh, isso certamente vai conseguir, afirmou o Gato, desde que ande bastante” [CARROLL, 2010, p. 48] ).
Por que o coelho? Eu juro que fiquei pensando sobre isso. Fazer terapia com o coelho faz mais sentido do que fazer terapia com o gato. Afinal, os gatos são budistas e anarquistas, na verdade, eles confundem as pessoas a agir de acordo com o caos e contrário a moral vigente. Os felinos estimulam que as pessoas sejam malucas, pensem por si mesmo e inventem a sua própria ética. Esses animais fazem isso através de suas ações, sem precisar conversar muito. Não faz menor sentido fazer terapia com o gato, ele não está aí para apontar caminhos, e sim para observar os andares de quem passa por esses caminhos. De certa maneira, até conta quem passa por esses caminhos, até avisa para Alice que, por um caminho, a garotinha vai encontrar a Lebre de Março e, no outro caminho, vai encontrar o Chapeleiro Maluco. Mas, o Gato, jamais, vai dizer: “vá ver a Lebre de Março” ou “vá ver o Chapeleiro Maluco”.
O Coelho leva a Alice para os mundos subterrâneos de seus sonhos. Alice corre atrás desse animal, porque sente curiosidade com a figura que o Coelho expressa, correndo apressadamente, enquanto grita que está atrasado. É esse animal que leva a Alice para as suas lágrimas, para as suas experiências de diminuir e aumentar, para a Rainha de Copas, louca, para lebre de março e para o Gato. De certa maneira, somente o Coelho, levaria ao entendimento das relações familiares e íntimas que David possui com a sua família.
Assim, David se transforma completamente, depois do encontro com o Coelho. Porque, desse jeito, ele entra e consegue interpretar a sua atitude com seus pais, consegue entender o universo psicológico de tensões e indiferença que existe na sua família. E, portanto, entende que a tempestade e as lágrimas, mais cedo ou mais tarde, seriam inevitáveis na sua vida.  O Coelho é quem faz a Alice atravessar as portas da realidade para o mundo das maravilhas. Nesse caso, esse animal faz o mesmo com David, com a diferença, é que, nesse quadrinho, não há um mundo fantástico. 

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