Sex and City e Anos incríveis eram seriados que passavam na televisão, cheguei a assistir aos dois. O segundo, eu tinha paixão, não gostava de perder nenhum episódio na TV Cultura; já o primeiro seriado, que passava na Gazeta, eu tinha um sentimento ambíguo; me diverti muito, rindo das confusões das quatro jovens moradoras de Nova York, seus desejos amorosos e os seus relacionamentos conturbados; mas era um sentimento de leveza e repulsa ao mesmo tempo. Algo nesse seriado nova-iorquino me incomodava intimamente.
Cresci com esses dois imaginários cênicos na minha cabeça. A respeito da imaginação musical, escutava Nirvana todos os dias, sonhava crescer, tocar guitarra, fazer uma banda de rock grunge e ser poetisa. Esses desejos foram misturados mais tarde com outro sonho intenso, que me consumiu inteira, o desejo de ser uma atriz de cinema famosa. Até então, nunca tinha assistido a uma peça de teatro, não tinha muitas referências das diferenças de linguagens entre esses dois veículos de comunicação.
A coincidência desses dois seriados é que ambos tratavam da mesma questão: jovens ou adolescentes crescendo numa cidade grande em pleno auge de 1980. Eu sempre desejei narrar uma história desse jeito; talvez, as minhas experiências, não porque a minha história é digna de fazer um filme ou escrever um livro, (porque, todos pensam assim que as suas histórias pessoais são dignas de escrever um livro; porém, eu penso o contrário, acho que a história de uma galinha é mais interessante do que a minha) . Ao contrário, a minha história é insignificante para você, caro leitor, mas a história que me atravessa, também se encontra com outras histórias. Contar a minha história poderia ser um modo de narrar essa geração, (agora, soou ambicioso!), através de alguém que, realmente, viveu e sentiu o imaginário árduo das gerações anteriores e o peso denso dos tempos extremos que ainda sondam as nossas cabeças.
Os nossos ídolos morreram jovens. O suicídio foi o ato revolucionário que inaugurou 1990. Fizemos dos suicidas e depressivos nossos maiores ídolos, ao invés de oferecermos um apoio mais efetivo. Acho que esse é maior indício da nossa sociedade doente, fazemos do sofrimento dos outros um produto de sucesso.
Por isso, falar da minha adolescência significa falar do meu tempo, é maneira que eu achei para discutir o nosso mal estar de estimação. Então, continuando a série da educação amorosa ou aprendizagens de violência que tive na escola. Hoje, vou contar o caso do meu primeiro beijo. A história dessa narradora é a menos importante, o assunto amor é uma desculpa para falar outras coisas.
Oitava lição: O caso do primeiro beijo
Conversava muito com a minha prima através do msn sobre namorados, ficantes e meninos que eu só podia desejar de longe. Ela, um dia, me perguntou se eu tinha beijado na boca uma vez, eu disse que sim, mas que o beijo não tinha sido como imaginava na minha cabeça. Meu primeiro beijo foi um pedido que eu fiz ao Caio, (o ficante de Miranda), estava irritada de não saber e de ser tão cobrada para conhecer o beijo na boca, então, me aproximei de Caio e falei: me empurra pra qualquer garoto, hoje eu vou beijar na boca.
Caio me olhou, assustado, não entendendo essa decisão repentina que eu havia tomado. Eu continuei firme com a minha decisão, estava querendo resolver essa minha falta de conhecimento sobre beijos na boca, seria, então, um teste empírico, quase uma necessidade científica. Caio me perguntou:
- alguém na cabeça? - ele disse
- não, ninguém, você não tem nenhum amigo pra me apresentar ?- eu perguntei
- ah! Eu acho que eu tenho um
Para variar, estávamos numa outra aula vaga. Caio saiu da sala de aula, procurando alguém que tivesse algum interesse em mim. Quando eu fiz esse pedido, logo, me arrependi imediatamente, notei que a última pessoa que poderia contribuir para acabar com a minha curiosidade, não era o Caio e, muito menos, alguma das meninas da tribo. Miranda se aproximou de Caio, deu-lhe um beijo na boca e ambos disseram:
- tem o Edu
- mas, o Edu, eu não quero - disse
O Edu era uma figura atrapalhada, muito magrela, nada atraente e com quem não tinha nenhuma intimidade. Me arrependi amargamente, eu quase disse que era melhor deixar essa história de lado, era uma loucura da minha cabeça. Entretanto, a minha curiosidade foi mais intensa do que a passagem do tempo.
Caio insistiu:
- se você não ficar com o Edu, você não fica com mais ninguém, Bruna
- e foi você que pediu - reiterou Miranda, - você vai deixar essa oportunidade passar?
Era uma oportunidade, duvidava que acontecesse uma possibilidade de uma oportunidade tão gratuita como essa aparecer de novo. Eu pensei que mesmo ele não sendo atraente para mim, não sendo alguém que eu tivesse alguma intimidade, sendo feio, atrapalhado e desajeitado. Era uma oportunidade de duas pessoas feias e desajustadas de resolver algo que era preciso fazer. Decidi que ia ser o meu primeiro beijo na boca.
- tudo bem, eu fico com ele - arrependida, eu continuei firme com a minha decisão. Afinal, era a única oportunidade que eu teria na minha vida de beijar alguém, eu não ia ter outras oportunidades como essa, não podia deixar escapar. (Releva a minha falta de prática, leitores, eu tinha uma noção de tempo muito limitada).
- então, você vai ficar com Edu na hora do intervalo, tudo bem? - perguntou Caio
Eu hesitei com a cabeça. Miranda insistiu:
- tudo bem? - a pergunta tinha o tom imperativo
- tudo bem - eu respondi
Deu a hora do intervalo. A próxima aula era de química, a professora de química costumava dormir em cima da mesa, não passava matéria e nos deixava muito livres. Eu procurei me esconder, porém, não podia me esconder na biblioteca; o lugar de encontro para beijos secretos era sempre lá. Foi a primeira vez que senti o desejo de cabular aula, fiquei preocupada, tentando desviar de algum conhecido na escola. Caio e Miranda encontram-me e levaram-me até o Eduardo, como se eu fosse uma fugitiva em ação.
A única vez que eu tinha conversado com esse menino, foi numa quinta-feira que perguntei o seu nome e ele me disse baixinho: eu me chamo Eduardo. Foi muito gentil comigo, tratou-me com todo o respeito do mundo, era um menino tímido que escondia o rosto com boné. Era um menino feio, atrapalhado com as mãos e muito magro. Naquele momento, quando eu o vi, pareceu que ele tinha sido sugado inteiro por sua magreza por causa do espanto e da ansiedade. As paredes estavam monumentais, tudo era maior do que parecia. Eu não podia sair correndo, tinha que fazer, estava lá, eu que tinha pedido.
Mas, fiquei paralisada. Edu estava tão assustado que virou uma vara de pau. Ficamos rosto a rosto, não nos enxergamos de perto. Caio empurrou Edu até a minha direção; eu dei um pulinho para trás. Miranda me empurrou até a direção oposta. Edu e eu ficamos sem jeito nos observando, não lembro exatamente quem tomou a atitude. O que eu me recordo é que foi igual tomar remédio ruim, fechei os olhos e beijei. Durou menos de um minuto, quando terminamos o beijo. Edu saiu correndo, como se tivesse feito algo errado. Eu fiquei parada olhando as paredes brancas e enormes que me observava.
Caio correu atrás de Edu, chutando a bunda do menino. Fiquei triste, subi devagar as escadas. Miranda já subira antes. Na sala de aula, elas estavam rindo da minha atitude, todos já sabiam do acontecimento; eu era o assunto. Me arrependi e senti desejo de chorar. Na esperança de não ouvir mais comentários, sentei próximo da Alice, ela me perguntou:
- você beijou na boca?
- beijei - rindo
- quem foi o menino?
- o menino que o Caio arrastou
- quem é?
- é o Edu
- mas como ele é, Bruna?
- ah! Ele é da 7C, é um menino magro, muito quieto. Você não conhece?
- não conheço
Ela assoou o nariz e eu sentei silenciosa. Era aula de química, escrevi o meu primeiro poema anti-amor. Desejei que, no dia seguinte, as pessoas me esquecessem. (Não lembro se foi bem isso que aconteceu, na verdade, estou contando as coisas através do meu olhar parcial das coisas, a memória filtra os episódios). Nesse dia, senti vontade de desaparecer. Na realidade, eu era uma menina muito covarde, bastante banal e medíocre, desconfiava demais da minha intuição e sempre entrava numas situações desconfortáveis para mim. Ao lado de pessoas que não pareciam minhas amigas, fiquei com vergonha da minha incapacidade de correr atrás dos meus desejos, fiquei com vergonha da minha dependência dos outros e da minha carência. Fiquei com vontade de sumir.
Nos dias que se sucederam, aonde quer que eu andava, escutava risinhos debochados, conversas intelectualizantes sobre ficar com meninos feios e piadas desnecessárias. Fui tentar jogar futebol, uma menina começou a debochar das minhas pernas, então, eu fiquei brava e quis bater nela. Ela riu, puxou os meus cabelos e disse: não vou bater em você, baba ovo, você fica aí que você já tá marcada. Fiquei muito brava, sentindo medo. As meninas da tribo ignoravam essa minha sensação de mal estar, elas tinham coisas mais importantes para sentir, como por exemplo, o desejo de serem amadas. Nunca mais pedi ao Caio alguém para beijar e nunca mais pedi nada para as meninas da tribo. Eu virei um cadeado, passei a ser a plateia delas.
Me calei.