Caros
amigos,
Isso
aqui é uma autobiografia, e como toda (auto) biografia, ela pretende-se ser
mentirosa. Por isso, peço para que não acreditem em mim, duvide tudo. Inclusive,
duvide isso que eu falei agora, porque cada palavra minha é falsa. Somente essa
frase que acabei de inventar é verdadeira, a anterior é uma mentira da verdade
que inventei. Porque, meus queridos amigos, o tempo muda tanto, só disso eu
tenho certeza, o verbo ser é o único irregular.
Vocês
estão me entendendo? Eu não tenho certeza de nada. Sinto saudades apenas, não
sei nem explicar de que. Só sinto que houve um momento na minha vida que eu
acreditava que estava tudo bem, mas esse momento também é uma mentira bonita
que a minha memória inventou para continuar a labuta do meu cotidiano (veja
só!), mais feliz ou menos angustiada.
Sabe
como o tempo se materializa? Ele se materializa em corpo. Certa vez, andando
por São Paulo, revi uma amiga minha de escola, uma dessas que costumava almoçar
na minha casa, trocamos olhares, não sei nem se ela me viu. Eu a vi; olhei-a
profundamente e como doeu a consciência de que nunca mais a veria novamente.
Nunca mais estabeleceríamos contato de novo. O caminho dela sem querer tropeçou
com o meu, isso foi um acaso. Irrepetível.
Ela estava diferente, não conversamos, não vamos conversar jamais, ela
não é mais a minha amiga. Eu não a conheço. Nesse momento, tive a certeza clara
dos meus dias e do meu corpo, o tempo mudara brutalmente.
Me
deu uma tristeza nostálgica, fervorosa no olhar. Afinal, ainda não aprendi
dizer adeus. Não à minha amiga, aquela que encontrei no metrô e no caminho de
volta pra casa, que trocamos apenas olhares e que, jamais, conversaremos outra
vez. Dela, eu não sinto falta, sou egoísta demais para sentir falta do outro.
Eu sinto falta de mim. Rever um amigo, que outrora foi íntimo seu no passado, é
a certeza exata de que o tempo é selvagem suficiente para mudar com o seu
cotidiano, tirar os seus amigos, afastar de vez a sua inocência e virgindade
com algumas coisas da vida. O tempo é brutal, não porque é dinheiro, mas porque
é selvagem. O meu corpo é outro, meu modo de ver as coisas se transformou por
conta do desencontro que aconteceu. Por outro lado, me deu uma alegria plena,
pois descobri que era impossível o retorno do cotidiano de ontem, era possível agora
criar uma pessoa nova, um olhar novo e um ser humano melhor em mim. Aquela amiga
que se perdeu no meu caminho, ensinou-me a me encontrar como caminhante diante
do desencontro que nos encontrou casualmente. Passei a olhar a vida com novos
olhos, meu olhar hoje é tão efêmero.
Rever
um amigo íntimo do passado é a forma mais perfeita de materialização do tempo.
Certa vez, reencontrei outra amiga, essa eu tive uma briga. Queria nunca mais
vê-la de novo. Pensava que ela imaginava as coisas mais terríveis sobre minha
pessoa, mas nos reencontramos, desabafamos todos os excessos de adolescência
que ainda possuíamos nos nossos corações uma para outra. Distante de mundos,
aquela amizade que jurava ser eterna, passava não ser, não a conhecia. Ela não
me conheceria de novo. Éramos duas desconhecidas íntimas que um dia visitaram a
casa uma da outra, contaram segredos e sonharam juntas. Saudades apenas. Não
havia nada para fazer, eu só podia sentir impotência diante do tempo, o único
Deus infinito que, cada dia mais, me dava certeza da finitude da vida, mas não
por causa da morte, ao contrário, por conta da vida. A vida é entranhada de
acasos, desencontros e encontros, curiosamente, a falta de originalidade do meu
cotidiano era reafirmada com vários acasos. Todos os dias são iguais e não são.
Seis
anos depois, reencontrei outra amiga. Seis anos não são seis dias. Tive um
orgulho tão grande e uma alegria tão intensa de revê-la, havia uma mudança
brutal nos olhos, no corpo e na voz. Era outra pessoa, tinha se transformado em
mulher, desembestou na vida, ela era outra pessoa. Me deu vontade de contar
toda a minha vida do início ao fim, mas o presente me ensinara que as histórias
são sempre contadas através de fragmentos, a totalidade é sempre impossível.
Não era mais a mesma pessoa, tanto que eu me perguntei se era possível
continuar estabelecendo relações com esse novo ser humano diante dos meus
olhos. Eu estava impossível, não era mais a amiga dela, também era outra.
Éramos outras sendo as mesmas.
Caros
amigos, o tempo é violento. Revi também outros amigos, fiquei me perguntando
seriamente: será que eles sentem tanta falta de mim como eu sinto deles? Ou
será que é deles que sentem falta do mesmo jeito que eu sinto falta de mim?
Soube da morte de um menino de vinte anos, que tinha nascido em 1992, fiquei
com medo de morrer repentinamente. Me deu vontade de ligar para todos os meus
amigos, só para ouvir a voz deles. Não aprendi nada com o Drummond, não aprendi
nada com nada, não posso esperar nada deles. Não posso esperar nada de ninguém.
Só posso amar aqueles que são estranhos a mim, por isso eu amo esses desconhecidos íntimos que um dia eu chamei de amigos.
Fiquei com tanto medo de morrer, senti uma vontade de ser protegida por todos que um dia
me ensinaram a diferença entre um livro e o outro, me empurram pro primeiro beijo, brigariam comigo se eu me envolvesse com os canalhas que me envolvi, me apresentaram Moulin
Rouge, falaram que um dia tudo daria certo, me mostraram Bergman, me deram um
livro da Clarice Lispector e disseram para mim que o mundo só valia a pena se
as relações fossem feitas com generosidade e amor. Eu sinto medo de morrer, por
isso senti o impulso de pegar o telefone e falar com todos os meus amigos sobre
bobagens e coisas bonitas. Depois, me arrependi. Não liguei para todos os meus
amigos, percebi que na minha lista de telefones eu não tinha o número de
muitos, não tinha fotografias, não tinha sequer a lembrança do rosto de alguns,
me bastava alguns pequenos fragmentos que eu guardei na minha memória sobre
cada um dos meus amigos.
Por
isso, fiz uma lista, sabendo que a escrita é o pior recurso para guardar a
lembrança das coisas que aconteceram. Tentei escrever algo sobre todos eles.
Isso aqui é uma autobiografia que pretende ser autêntica, diante de minha
solidão, eu não vou poder mais daqui em diante dividir mais nada com vocês. Eu
vou deixar os meus rastros na memória de vocês, espero que alguns de vocês
lembrem o quanto eu fui verdadeira quando abraçava, quando eu disse uma mentira
para alegrar, quando eu contava trechos de textos que eu gostava, ria
alegremente ou mesmo quando eu ficava em silêncio ouvindo a história de vocês.
De vocês, eu só tenho sobras de mim; o mesmo vale o contrário. Só guardará de
mim, aquilo que a subjetividade de vocês, meus caros, gostar de recordar.
De
resto é só isso;
É
preciso viver a vida no apesar de.
(Clarice
Lispector)
Ass:
B.L.
bateu vontade quase agora,
ResponderExcluirsentir o cheiro canteiro,
da sala impenetrável lá fora,
dias rasgados compus cinzeiro,
parti e a cidade ficou atrás,
quando voltei, milhas desapareceram,
precisei gritar, chamar, acenar,
mas, ninguém estava,
mais por lá...