domingo, 21 de abril de 2013

O Edifício feio no meio da visão do céu



“ Um chá pra curar essa azia
Um bom chá pra curar essa azia
Todas as ciências de baixa tecnologia
Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina
Pra gente ver por entre os prédios e nós
Pra gente ver o que sobrou do céu”
(O Rappa – canção “O que sobrou do céu”)


I
A nuvem do céu nem brilha, perdida no sono da madrugada, observa de cima o caos intempestivo da cidade. Um estrondo no meio da madrugada, respiração ofegante. Estão lá várias pessoas mortas que ninguém mais vai conhecer.
(Porque sim, esse narrador sabe que a pessoa só é considerada indivíduo para sociedade se tiver um conjunto de números que recebe o nome carinhoso de RG. Torna-se também uma pessoa física quando também possui outro conjunto de números chamado de CPF. No final das contas, esse narrador não é uma pessoa de duas pernas, ele é um conjunto de números).
E como um conjunto de números, não consigo falar de um ser invisível, porque a menina negra com a boneca da mão, correndo descalça pelas ruas, que acabou de morrer agora. Ela não é nem um indivíduo, a garotinha não é ninguém, é só o resto de toda a barbárie. A menina que morreu baleada, sequer vai ter uma notícia na televisão. Mortes de mulheres negras são banalidades que não dão notícia. Afinal, além de criança, ela não tem RG, nem CPF, a menina negra não é um individuo para o Estado. Essa criança não é ninguém. Como eu, o narrador,  posso achar que tenho esse direito de onisciência sobre os outros? Como posso contar a história dessa menininha?
Acho que só é possível se eu contar uma outra história em paralelo. Tinha um garoto de onze anos que sempre roubava a boneca dessa menininha e lhe provocava com muita crueldade. Certa vez, ambos correram longe, fugindo dos olhos dos adultos.
Lá, de longe, a menina enxergava um edifício. Uma arquitetura exuberante e gigantesca que enxergava os dois com arrogância. O cheiro que atravessava o ar vinha do rio Pinheiros, sentia de longe uma feiura que submergia no ar da cidade, pairava nas conversas e poluía os diálogos. A menina disse ao garoto: “isso é o prédio mais feio que já vi na minha vida”. O menino respondeu: “meu pai trabalha aí como faxineiro”. Os dois trocaram olhares, ele perguntou: “e o seu? Ele trabalha?”. Os olhos do menino mudaram para uma expressão de maldade: “ah é, teu pai não trabalha, você nem tem pai, você é uma menina feia e estranha”
Distante da brincadeira perversa, estava a mãe do garoto. Ela estava desesperada procurando esse menino pelas ruas. Finalmente, achou-o e gritou por ele: “Pedro! Pedro! Vem cá, agora!”. A menina que estava chupando o polegar, enxergou os dois de longe, deu um sinal de despedida ao menino. Pedro não respondeu, a mãe dele tinha cochichado ao ouvido que ele não deveria brincar com esse tipo de criatura.
A menina olhava agora as nuvens e o prédio, sondava o seu íntimo e disse: “nunca vi algo tão grande e tão feio ao mesmo tempo”.

II
Um desempregado andava no meio da estrada. Ele tinha o mesmo sobrenome que o seu filho Pedro, se chamava Pereira. Esperava o ônibus para voltar em casa, sem perspectivas para um futuro e sem noção de como faria para resolver as coisas hoje. Pedro escutou os passos do pai entrando em casa, sentou no colo dele e percebeu um olhar diferente. No rosto, uma expressão de angústia, o homem olhou para mulher e disse: “eu estou com medo”.
A porta fechou na cara da criança. Pedro só escutou os gritos, não entendeu nada, chorou miudinho, sentiu saudades da menina que brincava hoje de manhã. Aquela garota que a mamãe tinha chamado de criatura suja e porca, dizendo que não tinha a nossa cor. A mesma menina que ele também foi malvado, mas era brincadeira de criança, não era nada. Ela nem vai sentir. Olhou para lua, percebeu que o negro fazia parte do céu escuro, o ar fedia; porém, também dava para sentir melhor a brisa de vento nas bochechas. Pedro viu o prédio, lembrou-se da voz da garotinha e repetiu: “que prédio mais horroroso!”.
No dia seguinte, Pedro assistia a uma notícia de televisão. Havia uma dúvida colocada no jornal da manhã, o pai dele chegou e disse:
- mas tem que colocar. Tem que resolver isso no tiro, a violência só resolve assim. Colocando esses marmanjos pelados com frio e com fome em frente ao muro e metralhando todos eles. Aí, quero ver, se esses vão ter coragem de matar, estuprar e roubar trabalhador como a gente.

III
A menina no começo. Aquela que o narrador disse que não saberia contar a história dela, pois ela não existe. Eu reitero algumas informações: a garota não tem RG, nem CPF, nem mãe e nem pai, nem conta no banco, só uma boneca que achou na rua e um corpo para andar. A menina corre descalça pelas ruas, com alguns regalos de roupas protegendo o corpo dos restos de nudez, que não tem ainda vestígios de mulher. Essa menina olha o mesmo prédio, enquanto passa um homem, passa dois, um carro bem gigante passa rápido, atropelando todo mundo que está na frente. A rua é estreita, a menina quase cai no chão e se machuca.
A menina sente vontade de chorar, mas esquece do choro olhando o céu, o sol ilumina seus olhos. O prédio mascara o azul do céu, impedindo a visão ampla das nuvens que observam a menina andar. Ela não sabe o que vai acontecer daqui alguns minutos, senta então na beirada da calçada e continua olhando o prédio. Repete a frase: “nunca vi um prédio tão feio”.
De longe, o homem que vende cachorro quente, conversando no boteco e tomando cafezinho com seu Irineu, vê uns homens fardados. Esse homem é trabalhador, vende cachorro-quente na rua, tem RG e CPF, mas possui uma outra coisa, possui malandragem. De longe, ele pressente e pensa na cabeça: “esses coxinha aqui, vai dá merda!”.
Os policiais se aproximam de uma molecada, a menina negra olhava esses moleques brincando na rua. Mas, naquele momento, ela estava distraída com a visão arrogante do prédio feio que tanto se exibia. A menina estava tão deslumbrada com a arquitetura horrorosa dessa cidade que não percebeu o primeiro tiro, sentiu apenas uma mão pegando o seu braço esquerdo e falando alto: “corre! Corre!”. Essa mão era do homem trabalhador que eu contei, aquele que tinha um RG, ele era chamado Antônio, mas tinha o apelido de “Tingo”, esse narrador não sabe dizer por que desse apelido, apenas sabe dizer que era assim o nome que as pessoas do boteco conheciam na vizinhança. A menina conseguiu fugir alguns metros da confusão, Tingo morreu protegendo a menina sem nome, mas, logo em seguida, uma bala matou a criança pelas costas. Uma bala assassinou um corpo. Esse tiro foi dado por outro homem, chamado Henrique, menino branco de vinte e dois anos, que tinha uma conta bancária e era o orgulho da família, porque tinha passado no Concurso Público, seria um investigador policial e mudaria de cidade.  Foi o Henrique que deu o tiro. Ele era um indivíduo para sociedade, porque tinha um RG e um CPF, o tiro foi dado por um homem adulto, que era também um conjunto de números como esse narrador. Matou um corpo. A bala matou ninguém.

IV
No dia seguinte, Pedro olhava o Edifício, enquanto tomava o seu café da manhã e ouvia as brigas dos seus pais. O noticiário dizia de uma ação que tinha acontecido próximo das redondezas do Edifício. Henrique segurava a boneca daquela menina que tinha brincado na rua. A mãe se aproximava do garoto Pedro e lhe oferecia café com leite. O pai assistia ao noticiário na sala de casa.
- olha só, é assim que resolve as coisas, matando bandido. Agora sim, agora sim
- viu, amor, com que tipo de gente você tava brincando
- para de falar essas coisas, esse menino não é nem gente ainda, quando ele crescer e virar gente, ele vai entender tudinho que a gente faz. A gente só faz pra proteger ele.
Pedro olhava o Edifício, lambia os beiços e não conseguia perceber as nuvens do céu. Esse narrador sabe que esse menino vai crescer e se tornar gente, vai possuir um RG, um CPF, uma Conta Bancária, melhorar a situação financeira da família e se responsabilizar pelo indivíduo que se tornou. Quando esse menino crescer vai ser um conjunto de números.



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