“ Um chá pra
curar essa azia
Um bom chá pra
curar essa azia
Todas as
ciências de baixa tecnologia
Todas as cores
escondidas nas nuvens da rotina
Pra gente ver
por entre os prédios e nós
Pra gente ver o
que sobrou do céu”
(O Rappa –
canção “O que sobrou do céu”)
I
A
nuvem do céu nem brilha, perdida no sono da madrugada, observa de cima o caos intempestivo
da cidade. Um estrondo no meio da madrugada, respiração ofegante. Estão lá
várias pessoas mortas que ninguém mais vai conhecer.
(Porque
sim, esse narrador sabe que a pessoa só é considerada indivíduo para sociedade se
tiver um conjunto de números que recebe o nome carinhoso de RG. Torna-se também
uma pessoa física quando também possui outro conjunto de números chamado de CPF.
No final das contas, esse narrador não é uma pessoa de duas pernas, ele é um
conjunto de números).
E
como um conjunto de números, não consigo falar de um ser invisível, porque a
menina negra com a boneca da mão, correndo descalça pelas ruas, que acabou de
morrer agora. Ela não é nem um indivíduo, a garotinha não é ninguém, é só o
resto de toda a barbárie. A menina que morreu baleada, sequer vai ter uma
notícia na televisão. Mortes de mulheres negras são banalidades que não dão
notícia. Afinal, além de criança, ela não tem RG, nem CPF, a menina negra não é
um individuo para o Estado. Essa criança não é ninguém. Como eu, o narrador, posso achar que tenho esse direito de
onisciência sobre os outros? Como posso contar a história dessa menininha?
Acho
que só é possível se eu contar uma outra história em paralelo. Tinha um garoto
de onze anos que sempre roubava a boneca dessa menininha e lhe provocava com
muita crueldade. Certa vez, ambos correram longe, fugindo dos olhos dos
adultos.
Lá,
de longe, a menina enxergava um edifício. Uma arquitetura exuberante e
gigantesca que enxergava os dois com arrogância. O cheiro que atravessava o ar
vinha do rio Pinheiros, sentia de longe uma feiura que submergia no ar da
cidade, pairava nas conversas e poluía os diálogos. A menina disse ao garoto: “isso
é o prédio mais feio que já vi na minha vida”. O menino respondeu: “meu pai
trabalha aí como faxineiro”. Os dois trocaram olhares, ele perguntou: “e o seu?
Ele trabalha?”. Os olhos do menino mudaram para uma expressão de maldade: “ah
é, teu pai não trabalha, você nem tem pai, você é uma menina feia e estranha”
Distante
da brincadeira perversa, estava a mãe do garoto. Ela estava desesperada
procurando esse menino pelas ruas. Finalmente, achou-o e gritou por ele: “Pedro!
Pedro! Vem cá, agora!”. A menina que estava chupando o polegar, enxergou os
dois de longe, deu um sinal de despedida ao menino. Pedro não respondeu, a mãe
dele tinha cochichado ao ouvido que ele não deveria brincar com esse tipo de
criatura.
A
menina olhava agora as nuvens e o prédio, sondava o seu íntimo e disse: “nunca
vi algo tão grande e tão feio ao mesmo tempo”.
II
Um
desempregado andava no meio da estrada. Ele tinha o mesmo sobrenome que o seu
filho Pedro, se chamava Pereira. Esperava o ônibus para voltar em casa, sem
perspectivas para um futuro e sem noção de como faria para resolver as coisas hoje.
Pedro escutou os passos do pai entrando em casa, sentou no colo dele e percebeu
um olhar diferente. No rosto, uma expressão de angústia, o homem olhou para
mulher e disse: “eu estou com medo”.
A
porta fechou na cara da criança. Pedro só escutou os gritos, não entendeu nada,
chorou miudinho, sentiu saudades da menina que brincava hoje de manhã. Aquela
garota que a mamãe tinha chamado de criatura suja e porca, dizendo que não tinha a nossa
cor. A mesma menina que ele também foi malvado, mas era brincadeira de criança,
não era nada. Ela nem vai sentir. Olhou para lua, percebeu que o negro fazia
parte do céu escuro, o ar fedia; porém, também dava para sentir melhor a
brisa de vento nas bochechas. Pedro viu o prédio, lembrou-se da voz da
garotinha e repetiu: “que prédio mais horroroso!”.
No
dia seguinte, Pedro assistia a uma notícia de televisão. Havia uma dúvida colocada
no jornal da manhã, o pai dele chegou e disse:
-
mas tem que colocar. Tem que resolver isso no tiro, a violência só resolve
assim. Colocando esses marmanjos pelados com frio e com fome em frente ao muro
e metralhando todos eles. Aí, quero ver, se esses vão ter coragem de matar,
estuprar e roubar trabalhador como a gente.
III
A
menina no começo. Aquela que o narrador disse que não saberia contar a história
dela, pois ela não existe. Eu reitero algumas informações: a garota não tem RG,
nem CPF, nem mãe e nem pai, nem conta no banco, só uma boneca que achou na rua
e um corpo para andar. A menina corre descalça pelas ruas, com alguns regalos
de roupas protegendo o corpo dos restos de nudez, que não tem ainda vestígios
de mulher. Essa menina olha o mesmo prédio, enquanto passa um homem, passa dois, um
carro bem gigante passa rápido, atropelando todo mundo que está na frente. A
rua é estreita, a menina quase cai no chão e se machuca.
A
menina sente vontade de chorar, mas esquece do choro olhando o céu, o sol ilumina
seus olhos. O prédio mascara o azul do céu, impedindo a visão ampla das nuvens
que observam a menina andar. Ela não sabe o que vai acontecer daqui alguns
minutos, senta então na beirada da calçada e continua olhando o prédio. Repete
a frase: “nunca vi um prédio tão feio”.
De
longe, o homem que vende cachorro quente, conversando no boteco e tomando cafezinho
com seu Irineu, vê uns homens fardados. Esse homem é trabalhador, vende
cachorro-quente na rua, tem RG e CPF, mas possui uma outra coisa, possui malandragem.
De longe, ele pressente e pensa na cabeça: “esses coxinha aqui, vai dá merda!”.
Os
policiais se aproximam de uma molecada, a menina negra olhava esses moleques
brincando na rua. Mas, naquele momento, ela estava distraída com a visão
arrogante do prédio feio que tanto se exibia. A menina estava tão deslumbrada
com a arquitetura horrorosa dessa cidade que não percebeu o primeiro tiro,
sentiu apenas uma mão pegando o seu braço esquerdo e falando alto: “corre! Corre!”.
Essa mão era do homem trabalhador que eu contei, aquele que tinha um RG, ele
era chamado Antônio, mas tinha o apelido de “Tingo”, esse narrador não sabe dizer por que desse apelido, apenas sabe dizer que era assim o nome que as pessoas
do boteco conheciam na vizinhança. A menina conseguiu fugir alguns metros da
confusão, Tingo morreu protegendo a menina sem nome, mas, logo em seguida, uma
bala matou a criança pelas costas. Uma bala assassinou um corpo. Esse tiro foi
dado por outro homem, chamado Henrique, menino branco de vinte e dois anos, que
tinha uma conta bancária e era o orgulho da família, porque tinha passado no
Concurso Público, seria um investigador policial e mudaria de cidade. Foi o Henrique que deu o tiro. Ele era um
indivíduo para sociedade, porque tinha um RG e um CPF, o tiro foi dado por um
homem adulto, que era também um conjunto de números como esse narrador. Matou
um corpo. A bala matou ninguém.
IV
No
dia seguinte, Pedro olhava o Edifício, enquanto tomava o seu café da manhã e
ouvia as brigas dos seus pais. O noticiário dizia de uma ação que tinha
acontecido próximo das redondezas do Edifício. Henrique segurava a boneca
daquela menina que tinha brincado na rua. A mãe se aproximava do garoto Pedro e lhe
oferecia café com leite. O pai assistia ao noticiário na sala de casa.
-
olha só, é assim que resolve as coisas, matando bandido. Agora sim, agora sim
-
viu, amor, com que tipo de gente você tava brincando
-
para de falar essas coisas, esse menino não é nem gente ainda, quando ele
crescer e virar gente, ele vai entender tudinho que a gente faz. A gente só faz
pra proteger ele.
Pedro
olhava o Edifício, lambia os beiços e não conseguia perceber as nuvens do céu.
Esse narrador sabe que esse menino vai crescer e se tornar gente, vai possuir
um RG, um CPF, uma Conta Bancária, melhorar a situação financeira da família e
se responsabilizar pelo indivíduo que se tornou. Quando esse menino crescer vai
ser um conjunto de números.
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