sábado, 6 de abril de 2013

Espelho III: a consciência e a ilusão do mundo



 Tudo que eu conhecia em mim ganhava volume como massa de bolo que coloca fermento e cresce. O sabor do bolo era amargo, a floresta negra que sondava o meu ventre, insurgia em mim sentimentos perigosos como o medo de ficar grávida, o desejo por todos os homens do mundo e o gosto do inferno. Estava em processo, me transformando pouco a pouco em uma criatura inventada, eu seria o que eles queriam uma mulher.” (Espelho I, 2006)[1]

“O tempo foge das minhas mãos. Envelheci alguns séculos essa semana, mas esqueci de contar para os mais velhos. Apago a luz, fecho a porta do banheiro. O espelho nunca muda, permanece espelho.” (Espelho II: Sobre o tempo e a memória, 2010)[2]

“Quem sabe eu ainda
Sou uma garotinha
Esperando o ônibus
Da escola, sozinha
Cansada com minhas
Meias três quartos
Rezando baixo
Pelos cantos
Por ser uma menina má” (Cazuza. Malandragem)[3]

I

Esperando o ônibus azul. Ansiosa para dar o horário. Eu penso em tudo que eu vivi e que não vivi igualmente, sem desproporção. Fico muito ansiosa, com uma leve sensação de que a minha vida não valeu a pena ou que a minha vida é muito boa. Sonho com sexo, amor, Cuba, Paris, penso seriamente nas minhas tias e na falta de grana. Cadê o ônibus? Ainda não chegou. Puta! Que vontade de arranjar um namoradinho essa semana, só pra levar no papo.
Ao entrar no ônibus, procuro seriamente algum lugar próximo da janela. Detesto ouvir música se não for para ver a paisagem passando na minha visão míope de São Paulo, (cidade de baita mau gosto que odeio amando profundamente. Os melhores anos da minha vida foram todos aqui, os piores também. Cidade de contradições exageradas que se aprende desde criança). Coloco na primeira música que aparecer na rádio 89,7 F.M.. Vejo os matos, os casebres, as favelas, os prédios, o shopping, os caminhões, a chuva e o trânsito da Dutra temperamental. Vou ficar parada. São duas horas; vou chegar atrasada e só me resta ouvir essa música até o final para não entediar.
Lembro-me de todos os meus amores, amigos e sonhos que passaram na minha vida; percebo que a minha vida não foi tão mal. Ao mesmo tempo, sinto como eu sou carente de futuro, fantasias e desejos; concluo que a minha vida é de uma pobreza subjetiva suprema. Sinto vontade de desistir de tudo inteiramente, me jogar no carro em movimento. Mas uma voz interior relembra que a minha juventude não pode ser perdida por tão pouco, há muito para se viver. A minha vida é uma linha tênue entre morte e vida o tempo inteiro, não esqueço que um dia a minha beleza e carisma vão desaparecer. Eu não pretendo ser um mito de vinte e sete anos, estou preparada em virar eu própria no avesso e transfigurar-me na mulher mais feia, gorda, velha e mau humorada do mundo. Mitos possuem a responsabilidade da morte, não aguentaria esse peso, não queria virar museu para os intelectulóides blazés.
Olho para Dutra, não estou em movimento, é o ônibus que se movimenta por mim. O espelho do ônibus (que na verdade é a janela do ônibus), meio ofusco e perdido no espaço, reflete a minha imagem. Sou uma cópia mal feita do passado dos meus avós. Fico desconcertada, eu me sinto tão bela, mesmo com o cabelo despenteado, os olhos cansados e maltratados pelo dia de ontem, os sonhos adormecidos na gaveta. Será que as duas décadas nesse mundo de milhões de anos têm surtido em mim algum efeito bom? Desisto inteiramente de fazer perguntas difíceis para não enlouquecer.
(Regras perversas básicas para sobreviver no mundo terráqueo: ser feliz, ser duro consigo mesma psicologicamente, ser espontâneo, ser engraçado, ser erudito, ser falso, etc, etc e etc. Eu tento desesperadamente colocar alguma máscara social dessas para aliviar minha angústia, mas não diminui. Só aumenta). De repente, cai a ficha. Não consigo mais ver utilidades de tantas máscaras e símbolos para esconder quem realmente gosto de ser. Aí, me assusto com a descoberta tosca, fixo o meu olhar na imagem em movimento do espelho ruim.
Nunca seria uma mulher realizada. O meu tempo é irregular, mas os meus olhos são de hoje. Meus cabelos, meus sonhos e minha vida são as coisas que posso fazer hoje. Nem sempre as pessoas do passado vão guiar todos os seus passos no presente, o tempo é um presente intransferível para cada um. O tempo é a experiência amorosa mais completa, de liberdade e de opressão, temos o poder dele em nossas mãos quando aprendemos tomar as nossas decisões, mas também somos reféns das escolhas de outros e, às vezes, nem sabemos reconhecer onde somos prisioneiros da História. Crescer nunca foi uma tarefa fácil para ninguém. Não, definitivamente, como diria Sofia (de Clarice Lispector), não era por maldade que eu não estudava, era porque eu só tinha tempo para crescer, descobrir e redescobrir o mundo dos outros, meu e do cachorro do vizinho.

II

Meu olhar fixa exageradamente na figura da moça refletida no espelho que me espia. Não a reconheço imediatamente, fico também bastante apreensiva para não perder o ponto de ônibus que eu tenho que descer. Escuto músicas, sonho demais acordada e relembro a feijoada no Capão Redondo em pleno Domingo que tenho de ir, tenho uma festa de família lá. Não acredito muito em todas as verdades que me contam, gosto das mentiras, sou da tribo dos vagabundos, dos artistas e perdidos no mundo. Gosto de abraçar, beijar e amar. O importante na vida é dar amor, espalhar esse sentimento catatrófico pelo mundo e sonhar ainda com as coisas. O sonho é a única matéria de humano que existe em mim, fecho os olhos e deixo a minha imaginação voar, sem censura. Apenas, flutuo no mar da minha imaginação.
Gosto de imaginar o mundo como um grande recreio que as crianças brigam para não sair e não voltar para aula chata de matemática. Os olhos da moça que me espia com curiosidade, acabaram de mover-se,  o espelho ruim entorta um pouco a imagem. A moça parece um pouco confusa com tudo, anda como uma turista no mundo, esquece de perguntar os números de telefones dos homens que amou e transa com tanta facilidade com todos os desconhecidos.
Vou falar de signos para falar de mim. E falar de si mesmo é sempre muito complicado, o que você imagina que é na sua cabeça, não é o que os outros te veem. O poder da imaginação é tão incrível que a capacidade de criar pontos de vistas parte de si mesmo e da sua relação direta do corpo com o mundo. As pessoas podem enxergar como uma baixinha medíocre, mas não você. Na sua cabeça, olhando esse espelho ruim, sabendo o quanto está desarrumada e bicho grilo. A sua imaginação voa, o seu corpo tem mil metros de comprimentos, a sua fala, o seu rosto, tudo em você é mais gostoso. (E a Dutra continua parada).
Na janela, eu vejo cores, pessoas e lugares. Me esqueço que estou no mundo. Os olhos da moça do espelho, quase dormindo, espiam o jeito que eu remexo os meus cabelos. Não tenho a mínima ideia qual é o mundo que eu vivo, do mesmo jeito, que não confio nas imagens do espelho ruim no meio dos caminhos. O mundo parece tão belo nessa visão, porém, de perto, é só ilusão de espelhamento. Na janela, eu vejo o mundo passando, meio ilusório, sabendo que a minha miopia atrapalha na visão das coisas. Eu sempre fingi que enxergava bem as coisas, a moça do espelho ruim que me vigia, sorri descaradamente da minha falta de noção do mundo.
A minha consciência é esquizofrênica, tenho profundo delírios sobre o que é a realidade. Rezo todos os dias para conseguir ter mais malandragem na vida, pois isso é a única lição que vale a pena aprender. O resto é detalhe de erudição, não faz muita diferença os livros que eu leio, nem a faculdade que eu faço. Rezo, sonhando acordada, para sair dessa teia de opressão que cada dia me entrego mais, mais e mais. O tempo corre de assustado. Eu me sinto muito manca para acompanhar os meus colegas que já estão a três milhões de anos na minha frente, me sinto parada eternamente em um trânsito da Dutra. Sem poder sair, sem poder correr, andar a pé e vivenciar os lugares com a calma de que necessito.
Eu sou a moça do espelho ruim, tenho desejos imensos, manias estranhas de sonhar acordada quando não posso. Perco-me na minha irregularidade do verbo ser, não sei exatamente o quanto a ilusão do mundo se identifica comigo. Não posso vivenciar as coisas pela metade mais, o mundo me pede cada dia mais, não quero, não posso e vivo uma vida de medo todos os dias. Não queria sentir tanto medo do outro, porque é disso que sinto medo. É sempre da relação, por isso não me acho, porque não adianta viver no mundo sem o outro para mostrar os lugares desconhecidos. Tenho receio de que a moça do espelho descorda de mim, pois aprendi bem com a cultura do narcisismo. Amo eu mesmo com todas as forças que não consigo me imaginar fora de mim.
Mas estou aí. Diante de uma imagem ofusca e perdida, olhando-me para um espelho em movimento que reflete muito mal a minha vida, os meus anseios e medos. Estou diante de mim, mas ainda não consigo me encontrar. Acho que o mundo não me representa, eu mesmo não me represento. Sou o ator de mim mesmo.

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