quarta-feira, 3 de abril de 2013

A descoberta do leitor

O leitor e o público

Ampliar o conceito de leitura para além da palavra escrita é o primeiro passo para uma relação mais complexa com a crítica de arte. Ficção e realidade possuem uma proximidade quase gêmea, não sei até que ponto elas se confundem ou entrelaçam numa nova realidade. A realidade que fica no entre, no limiar do mundo. Naquela realidade que é bastante parecida com a matéria dos sonhos, do desejo e da distração no meio do caos de São Paulo.
Ler o mundo é encontrar um pouco de nós, naquele fundo da gente mesmo que nos esquecemos de bagunçar e limpar de novo. Desarrumando e arrumando o que há de escondido até encontrar algo mais sujo. Mais turvo. Sempre há aquela sujeira que a vassoura não chega? A página do livro que você não consegue virar? O segredo mais secreto que nem para você mesmo consegue contar? Ler é, sobretudo, desbancar esses lugares, é viajar no impenetrável.
Impenetrável. Não sei até que ponto essa palavra boa. Toda obra é aberta para colocar os seus pensamentos e experiências de mundo. Tudo é um convite para se viver mais, a arte não é um convite para se viver menos. A leitura é um espaço onde o mundo é pequeno, a imaginação é enorme para caminhar sozinha no deserto da língua escrita.
Nunca relacionamos a escrita sozinha e autônoma do mundo (antes, o primeiro contato com a língua e a linguagem foi com a fala. Ou ainda melhor. Foi com a boca, o tato e o corpo sem equilíbrio, ainda bebê). Sempre no meio de toda leitura, pensamos nos últimos acontecimentos do cotidiano, nos sonhos que não realizamos. Nos segredos que, provavelmente, nem as pessoas mais íntimas conhecem de você. Ler é uma atitude que vai para além do livro, para além da peça de teatro, para além do filme assistido. Ler é uma atitude que precisa também ser voltada a descoberta do leitor como sujeito. Uma consciência ativa do mundo.

Procedimentos de leitura com texto escrito                                                               
A atividade de leitura requer duas práticas que são trabalhadas diferentemente e que se complementam: 1º) a compreensão é a prática de reconhecimento das estruturas e da materialidade linguística do texto; 2º) a interpretação é a prática que resulta naturalmente da prática de compreensão. Antes de perguntar o que significa uma estrutura e preencher as lacunas do texto não notadas pelo escritor, o leitor precisa compreender a materialidade textual. E então, a partir do conhecimento de mundo do leitor-sujeito[1], a potencialidade de significados do texto vem à tona. A interpretação é a prática de trazer os significados do texto ao mundo.
O leitor também é um produtor de significados. Essa atividade não é simples para explicar, pode-se fazer um paralelo com a atividade de investigação policial. Imagina um detetive que se depara com um ato de assassinato. O caso é o seguinte: uma cozinha. Um homem de trinta e oito anos, deitado no chão, a cabeça ensanguentada com a faca perfurando o cérebro. Ao entrar no cenário do crime, a primeira impressão do detetive é um grande choque; porém, um bom detetive não pode cair na armadilha do primeiro impacto (do espanto somente!), ele precisa selecionar algum fato importante, analisar, entender o funcionamento das coisas, ativar conhecimentos gerais e elaborar hipóteses. Um detetive não pode inventar dados que não existem na cena do crime, pois pode ser fatal na descoberta do assassino. Ele poderá acusar um inocente.

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem e etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas” [ VILLAÇA & ELIAS, 2008, p.12]

No caso de um crime, a interação não só se restringe entre o assassino e o detetive.  A investigação policial trabalha com três dimensões que operam funções diferentes: a relação entre O MUNDO DO DETETIVE- O CENÁRIO DO CRIME- O MUNDO DO SUSPEITO(S) DO ASSASSINATO.  A produção do(s) sentido(s) do texto leva em consideração a interação entre leitor-sujeito/ texto/escritor-sujeito. Desse modo, o autor quando pretende escrever um texto, sempre visa o leitor. O texto não possui vida se não tiver esse contato entre sujeitos, a atividade de leitura possui alcance políticos e sociais, porque envolve a sociedade e o mundo. Pressupõe relação entre sujeitos e material linguístico (acima de tudo, mesmo sendo uma atividade solitária. Ler é um exercício da imaginação). O escritor trabalha com a criação do leitor-modelo que, basicamente, é produto da estrutura e da geometria de uma obra de arte, fornecidos por sinais que o texto oferece. As sinalizações textuais do material linguístico indicam o funcionamento da estrutura, o leitor pratica a compreensão, o ato de reconhecer, quando mergulha no material, ele caminha e toma as decisões de acordo com os dados fornecidos da estrutura, dialogando com o texto. Interpretar é a última atividade da leitura.
Assim como o detetive, não se deve abalar com o impacto do homem morto e falar o óbvio: a faca atravessando a cabeça. Isso é uma informação dada por qualquer espectador leigo. A leitura é uma atividade de descoberta que exige perspicácia no momento de elaboração das perguntas. No ato de assassinato, a última pergunta que deve ser feita é: “quem é o assassino?”. Antes disso, o detetive se debruça na observação da disponibilidade dos elementos postos no cenário do crime. Ele precisa fazer outra pergunta: “como é que o homem de vinte e oito anos morreu?”.
Ler exige uma atividade dupla, a de reconhecimento e a de interpretação da estrutura.  É uma atividade que trabalha com a relação entre sujeitos-material, portanto, não é separada do mundo e também não é deslocada do universo material linguístico que o texto propõe. O leitor precisa de perspicácia no momento que mergulha no material e, para isso, cria estratégias e procedimentos para a apropriação do texto. Dialogar com o autor, criticar, inferir, elaborar hipóteses, antecipar, recuar e validar informações são exemplos de procedimentos de leitura. O leitor também é criador, pois a tarefa de produzir sentidos para o material é dada através dessa interação.

O Leitor Apaixonado

O único conselho que se pode dar com a leitura é o seguinte. Nunca perca o ânimo e nem o deslumbramento com os livros. Apaixonar-se é o grande segredo da arte, afetar-se com o mundo do outro e sentir-se parte de algo maior. Talvez, uma tradição. Talvez, uma causa política. Talvez, o mundo. Percebam que eu só disse: talvez. Não confirmei e nem neguei nada. Cada um tem o seu caminho intelectual, alguns seguem mais exageradamente e com mais selvas no meio do caminho, outros vão direto para o paraíso. Não existe caminho melhor ou pior, apenas rumos diferentes.
Entrar numa peça de teatro ou assistir um filme com o rosto de um homem que já consumiu tudo que existiu e não consegue mais achar nenhuma centelha de vida em mais nada: nenhuma conversa, música, teatro, filme ou pessoas.  É deprimente. O mundo não pode ser composto por críticos literários frios que apenas reconhecem as estruturas literárias e categorizam em linhas de pensamentos da Arte, da Filosofia ou da Literatura. Ler é desbravar o mundo.
Por isso, faço um apelo a todos os artistas, críticos literários, amantes de arte e intelectuais. Aprendam a ficar leigos novamente, esqueçam todo o conhecimento diante de um espetáculo teatral ou livro novo. Vivam esse momento apenas como leitor apaixonado, sem análises, críticas ou teorias alheias. Apaixona-se deveria ser a primeira regra para um crítico de arte, afinal ler é afundar-se no mundo do outro.
Não entre na obra alheia com tédio como se conhecesse tudo. Ler é um passeio no bosque, parafraseando Umberto Eco, caminhe sem pressa nas selvas do universo do outro. Descobre o que não te agrada e redescobre caminhos para encontrar o que havia perdido como ser humano. A consciência ativa de leitura é só uma maneira de aproximar o leitor-sujeito daquilo que ele não consegue separa-se inteiramente que é o mundo. Isso não se pode entrar calmo, distraído e entediado, não faça caretas blazés no meio de uma cena nova, aprende a surpreender-se de novo como um leigo que nunca viu um filme, uma peça ou avião. A leitura é o melhor remédio para curar egoísmos e ignorância.
A atividade de leitura é uma prática que deve ser ensinada antes da leitura de um livro. Ler é perceber o mundo. Abrir a cabeça para as relações que existem nele, os espaço que estão distribuídos na sociedade. Fazer a leitura de algo é aprender a ouvir melhor, cheirar melhor, tocar melhor e enxergar melhor. Não é todo mundo que percebe que o momento de “agora” e “aqui” é único, o presente é um tempo intransferível, não por que é transcendental e efêmero. Na realidade, o tempo presente é intransferível, porque é interpretado e contado de várias maneiras, o ponto de vista determina a visão do momento vivido. Ler também é uma aprendizagem de respeitar as diferenças formas de interpretação da realidade.
O leitor apaixonado nem sempre será aquele que vai demonstrar e explicar os mecanismos de uma estrutura literária ou dramatúrgica. Ao contrário, às vezes, não apresentará tudo de um livro, só vai selecionar aquilo que lhe interessa como leitor destacando como algo mais belo e perfeito que já foi feito. O apaixonado não é sinônimo de leitor culto. Mas, pode acabar sendo sinônimo de leitor crítico.

Conclusão

Ler é uma atividade complexa que implica uma série de procedimentos e relações implícitas para o entendimento de um material. O leitor é também um sujeito da interação que cria significados e traz o seu mundo para lidar com os símbolos de uma obra de arte. Ler é muito mais do que lidar com um material linguístico, também é lidar com algo que vai além da arte. É lidar com a realidade, sabendo que ela possui muitos pontos de vistas e que, portanto, passa a ser tão complexa.

Indicações Bibliográficas:

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Escrita, Leitura, Dialogicidade in Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. (Org.) Beth Brait. 2 edição revista. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, pp. 265-273.
KOCH, Ingedore Villaça e ELIAS, Vanda Maria. Leitura e sentido in: Ler e compreender: os sentidos do texto. 2 edição. 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 9-37.

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[1]  BRANDÃO, Helena H. Nagamine, 2005.
* Esse ensaio não possui subsídios para se aprofundar mais nas questões teóricas de linguística textual, não tem intenção de ser acadêmico. O produto dessa reflexão foi feito por um leitor também apaixonado, há excessos de apaixonamentos. 

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