No
centro do universo, não existe o homem, nem os animais. No centro do universo,
existe a dúvida. Deitado na cama, o
artista sonha com seus piores anseios e seus mais terríveis medos. No centro da
cama, se escuta um grito de desespero. Esse grito é de humano, perdido e
sufocado com os seus sentimentos selvagens que não consegue se livrar
inteiramente. Na dúvida, o humano se alimenta e se diferencia das coisas, o
mundo ganha significados a partir do momento que ele aprende a falar a palavra "talvez".
Na
infância, um bailarino tinha dado de presente um livro A Carta ao Pai (Kafka), uma
dose cavalar de pessimismo antes do surgimento da vida adulta. A criança nunca
conheceu esse bailarino, a não ser por cartas. Numa dessas antigas cartas,
havia palavras carinhosas que dizia e aconselhava a permanência pela criação
artística. Esse pequeno artista se lembrou em sonho de uma frase preeminente
dos conselhos centrais de Rilke ao um jovem poeta: “Antes de criar, desista totalmente
da sua criação. Quer ser escritor, então desista de escrever”.
Aprendendo,
desde cedo, a conviver com o pessimismo que lhe ensinaram e lhe deram de
presente como uma espécie de carinho. Não havia dúvidas sobre o que era e
estava se tornando. Em sonho, assustado com tanta consciência, repetia em
pesadelos palavras que o assustava (Deus meu, eram reais, como eram reais!): eu
não sou nada, sou menos que um inseto, menos que um animal, não consigo ser
realmente nada, nem um ser banal. Ao menos o ser banal, possui o pensamento
prático, agirá de acordo com uma escala, terá sucesso profissional, amoroso e
amigos que lhe serão fiéis. Eu serei menos que a banalidade. Serei uma sobra
dos artistas.
Esse pesadelo nascia em um contexto que o jovem artista precisava tomar uma decisão. Não era Édipo, não
chegava ter a coragem de uma Ofélia e não era a barbárie que precisava ser
extirpada no mundo, não era a Medeia. O artista que sonhava nesse sonho era
apenas o resto da modernidade que pouco conhecia, a sua porca imitação e a
certeza gasta de que as utopias já tinham virado ressacas. Não era nada, era só
a imitação do humano que não conseguia ser banal.
No
sonho, o jovem artista estava preso por barbantes finos, camadas de
barbantes que tapavam a sua boca, o seu nariz e os seus ouvidos. O único que
estava livre dos barbantes era o par de olhos. A sensação era de solidão, falta
de ar e tristeza amarga, havia camadas e camadas finas de opressão que prendia o indivíduo. Os
barbantes eram finos, até era possível livrar-se deles, mas eram muitos
barbantes, vários que enrolavam o corpo do jovem artista. Diante dessa sensação
de falta de ar, o artista via as pessoas que tinham um vínculo afetivo muito
intenso se afastarem definitivamente da vida dele, vivendo a vida feliz
distante do mundo de solidão e opressão que o jovem vivia. Ele até gritava, tentando desesperadamente comunicar a dor de tantas camadas de
barbantes enrolando o seu corpo, mas era impossível, a voz ficava abafada. A
lágrima caía tímida no rosto da criança e sumia lenta no corpo aprisionado.
Entre
a vontade de ser artista e a vontade de ser feliz, há um abismo monstruoso. Em
um dos episódios do livro Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector), a
criança Joana faz uma pergunta desconcertante a sua professora: “Ô Professora,
ser feliz serve pra quê?”. A professora não entende a pergunta, então a criança
repete: “Pra que serve ser feliz?”. Não sabendo responder essa despretensiosa
questão, a professora foge e diz que a Joana deverá responder isso quando tiver
a idade adulta.
O
sonho dessa criança era ser herói. Pobre criança, a modernidade esvaziou a
ideia de herói a partir do momento que os militantes políticos da Ditadura
Militar deixaram de ser pessoas e se transformaram em mitos para a juventude de
1990. O mito é toda a maquiagem da barbárie. Afinal, ser mito serve pra quê?
Ser feliz serve pra quê? Ser artista serve pra quê? Sonhar serve pra quê? De
que serve todas as coisas que colocaram na minha cabeça? De que serve um
livro do Kafka? De quer serve esse pesadelo do qual tem tanto medo? O
sonho dessa criança era poder sonhar de novo. Mas o que restou do sonho do
sonho? Restou apenas o vazio.
Posso
falar dos militantes políticos que sofreram a tortura de 1970, dizer o quanto
eu não conheço eles. Entretanto, posso também discutir uma tortura hoje. Uma
tortura diferente e mais silenciosa, como toda a tortura não se fala e evita a discussão dela entre os amigos, a família e o namorado. Essa
tortura é antiga, ela nasceu desde escravidão, criou raízes na apatia da Classe
Média e hoje em dia é passada de pai para filho como uma espécie de cultural
brasileira. O nome dessa tortura se chama sucesso a qualquer custo, vencer e
sobreviver em cima do outro. Consumir o outro, destruir a cultura do outro,
acabar com a linguagem do outro, estuprar o outro, não permitir que o outro
prevaleça e só permitir que o meu ego prevaleça na história, o meu EU é mais importante
que tudo nessa vida.
Entretanto,
o “Eu” é, ao mesmo tempo, a grande perdição, pois ele é supervalorizado. O
sucesso será representado nas últimas instâncias e com toda a euforia que se
pode ter depois da embriaguez; mas o fracasso será o fim de mim, será a
permissão que eu precisava para poder tirar a minha própria vida. O “ego” é
aprisionado com as responsabilidades e os venenos da “ideologia do sucesso” de
todos os dias, agraciado com o sentimento de apatia, apimentado com o
afastamento gradativo de sentimentos fundamentais do humano que o caracterizam
como um ser. Os barbantes finos de todos os dias enclausuram o ser e descaracterizam-lhe
cada dia mais de sua figura humana, afastando de tudo que um dia foi
importante.
Posso
falar do genocídio dos negros, da intolerância de classes sociais mais pobres
em Universidades públicas brasileiras, da ascensão social de migrantes
brasileiros nordestinos e de direitos humanos para o movimento político LGBT,
da violência contra as mulheres fora dos movimentos políticos e dentro de
lugares mais eruditos. Posso falar de violência. E, sobretudo, posso falar dos
militantes políticos que morreram e a História Oficial apagou dos seus
arquivos, do mesmo jeito que querem apagar o negro e o migrante nordestino na
construção de São Paulo, na língua portuguesa e na História de todos nós. Posso
falar de tudo isso, admitindo que é impossível, é humanamente impossível falar
do outro. Só sei falar de mim. Mesmo assim, falo da pior tortura, daquela que é
silenciosa, que a gente não se apercebe, surge mais frequentemente nos sonhos.
A
tortura que me faz fechar os olhos pela manhã. Coloco os fones de ouvido no
metrô e finjo não perceber que estou no lugar lotado, aprisionado com todos os
outros homens e mulheres ao meu lado, finjo que não sou um burro de carga também, querendo sucesso profissional, desejando ser uma artista de cinema. Essa
tortura que aprisiona os meus sentimentos mais bonitos e verdadeiros de um ser
humano, faz com que eu negue o meu tempo de aprendizagem e desrespeite o outro
em nome de créditos bancários. Essa cultura brasileira do eu que me ensinaram o
valor da indiferença e da apatia, valores que eu assimilei e sou intimamente
aprisionada. Também tortura o negro, a mulher, o militante político, o petista
e o psdbista. Essa tortura recebe outro nome pelos psicanalistas, ela se chama
Depressão.
O
abismo entre ser artista e ser humano é maior do que muitos conseguem imaginar.
Uma coisa é se tornar patrimônio cultural, negando qualquer vestígio de
aprisionamento que a sociedade colocou na sua mentalidade e no seu coração.
Outra coisa, bem diferente, é assumir que a figura do humano estará para sempre
enclausurada nas suas obras de arte, sendo impossível fugir da pergunta
crucial: e se não fosse eu? E se eu fosse o outro? O sentimento de impotência é tão
grande diante dessa questão, corta a garganta, agrava os sentidos. Os olhos
estão para sempre olhando as ruínas do presente do passado. Restam as lágrimas
de sangue e fúria. Nenhum artista consegue fugir inteiramente de suas prisões.
Nenhum.
O
“talvez” advém de um infinito de possibilidades. Na tentativa fugaz, de um ser
diante de outro ser , se questionar e dizer: mas, então, e se eu vivesse no seu
lugar? E se eu tivesse em outro tempo? E se fosse de outro jeito? Diante de
milhares de possibilidades, a criança que não sabe a diferença da palavra “foi”
para a palavra “era”, ela que não é confundida ainda com a doença da memória.
Está presa em outro âmbito, ela aprende observando os adultos e imitando a
realidade através das possibilidades da brincadeira, joga com o talvez, sempre
que colocam obstáculos e problemas. O “talvez” nasce espontaneamente, quando
fala com as autoridades: “mas, ô mãe, eu posso brincar com clipes da caneta já
que eu não tenho o carrinho daquele jeito?”. O “talvez” mais tarde fica
impregnado de tempo e memória, os brinquedos só mudam de formas.
Enquanto
o artista, aquele do início adoentado porque é da espécie humana, sonha agora
pesadelos, não consegue mais cultivar sonhos. O que resta do talvez de um
artista? Entre o abismo da arte e da vida, qual é a melhor escolha? Entre o eu
e o mundo, qual é a melhor decisão? Entre ser artista e ser um ser banal, qual
é a melhor escolha? Às vezes, a dúvida é tanta que o jovem artista pensa que um dia será
encontrado morto com a cabeça transfigurada em interrogações. Se um dia deixar
uma obra de arte será esse o legado que deixará ao seu público. Ele deixará a
dúvida.
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