sábado, 13 de abril de 2013

Tagarelice


1

Na minha infância, uns vinte anos atrás, me chamavam de pentelha e tagarela, sempre recebi advertências de professores em casa, dizendo pra minha mãe que eu era terrível, não parava quieta. Não era muito entendida das palavras, não sabia o que significava a palavra “tagarela”. Mas a primeira definição de tagarela que conheci era: “alguém que falava pelos cotovelos”.
O que convenhamos é absolutamente estranho. Cotovelos não têm boca. Como andava sempre com os meninos, (porque não gostava de brincadeiras de meninas, eram muito paradas e entediantes).  Os meus professores sempre chamavam a minha atenção:
- ei menina, fica quieta...
Sempre chamavam a minha mãe.
- a sua filha não tem jeito, é uma pentelhinha!

2

Um certo dia, a professora recitou um poema que tinha uma palavra estranha aos meus ouvidos. Era uma palavra curiosamente bela, com som magnífico e que parecia um perfume de longe. A palavra era “inefável”. Eu fiquei curiosa, interrompi a aula e perguntei:
- inefável? Ô psora, o que é inefável?
- é algo que não se pode dizer
- ué, então diz,
Manias de coisas proibidas! Fiquei querendo saber o que não se podia dizer do Inefável, mas a professora me olhou com um rosto medonho e fui levada para Diretoria. Em casa, tinha uma advertência bem grande: “ A sua filha precisa aprender a se comportar e não fazer mais perguntas indecentes!” . 
- que pergunta indecente você fez, Pipa?
- eu perguntei o que era inefável?
- filha que palavra é essa?
- então, a professora falou que não se pode dizer. Então eu disse, ué então diz. Mamãe, a minha curiosidade aumenta quando as coisas não se podem dizer. Mãe, o que não pode dizer do inefável?
- filha, vai pro quarto!
- por que?
- você é muito perguntadeira!

3

Perguntadeira é sinônimo de tagarela? Afinal de contas, o que não se pode dizer do Inefável? E se for uma daquelas coisas de adulto, gente grande, sabe! Os adultos são cheio dessas pilhas, tudo pra eles ou é coisa de muito muito ruim ou coisa de muito muito boa, o limiar das coisas não existe. O talvez, entre os adultos, é estado proibido.

Afinal, não se pode falar do inefável, por que ele é feio?  Tipo, o monstro do lago. O que há de estranho nessa palavra? Puxa, uma palavra tão bonita esconde uma coisa feia, igual o lago da minha casa! (Eu preciso fazer uma pausa para explicar o monstro do lago. Na frente da minha casa, tem um lago bonito que a gente sempre brinca nele. Um dia era quase noite, a minha tia tentou tirar a gente de lá (eu e a turminha!). Então, ninguém quis sair, até que ela nos convenceu que, a partir das sete horas, o monstro do lago ficava lá para comer criancinhas. É engraçado! Que depois mais tarde. Eu tinha dezoito já, fui tomar banho lá e não encontrei nenhum monstro do lago, já tinha passado das sete). 
Quanto ao inefável, acho que não dormi à noite, pensando nessa palavra, pensei procurar ela no dicionário. Mudei rapidamente de ideia. Uma palavra tão bonita não deveria estar nos dicionários, já que é feia para os adultos, pois, com certeza, o dicionário foi ideia dos adultos, – porque grande parte deles não têm imaginação, precisam dos alicerces dos outros para achar uma forma bonita, não conseguem olhar o mundo com inocência, precisam intelectualizar tudo, gostam do CERTO e do ERRADO. Essa palavra para mim está no campo do talvez, por isso não vai ser feia para mim, ela é bonita porque eu não a conheço.  Quando se tem uma fôrma de bolo, a gente pode preencher com recheio que quiser, minha madrinha vivia falando isso. No vazio, sempre aparece o novo, é só não ter medo do erro. Nessa idade, a gente aprende algumas coisas. As perguntas nunca são inteiramente respondidas pelos homens grandes. 


4

Com dezesseis anos, li um livro de Bruna Landim, “Do verbo ser irregular”, que explicava o termo “Tagarela”.  A autora citava Dostoiévski, um trecho do conto “O subsolo” que trazia o aspecto negativo desse termo: “Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como todos nós. Mas que fazer senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira”
Bruna Landim disse que, uma vez, percebeu a diferença entre gostar de um cara e não gostar. Gostava de um rapazinho, quando sentia vontade de conversar; não gostava do cara, quando sentia repentinamente o mutismo no seu coração. Ficava absolutamente fria, não emitia sequer um espirro.  Desse jeito, entendeu tudo que tinha que entender sobre linguagem, sendo tagarela quando criança e, absolutamente, muda e séria com alguns rapazes na juventude. Eu cito um trecho do romance dela: “A tagarelice é o uso da forma. O papeador sempre diz experiências em suas histórias, mesmo que elas sejam mentiras. Muitas vezes, o papeador é confundido com o tagarela. Mas quem não consegue notar a diferença disso, não consegue aproveitar a graça da poesia cotidiana. Existem tagarelas que não pronunciam sequer um espirro de resfriado. Tagarelice é fala vazia, é forma esvaziada de experiência”.
Eu entendi tudo, lendo essa definição. Desde criança, eu era uma poetisa, os adultos estavam educando, na verdade, para eu ser uma tagarela. Eu queria era ser uma papeadora, falava para entrar em contato com o mundo, às vezes perdia a conta das minhas palavras, erro de principiante, excessos comuns da inocência. Mas, a minha primeira experiência com as palavras foi sendo uma perguntadeira. Era minha forma primitiva de lidar com a linguagem. Ser perguntadeira era uma maneira de lidar com o som, espontaneamente lidava com o lado lúdico das palavras, as minhas experiências infantis, sempre nasciam com uma aparência surrealista. Coisas de crianças! Se a gente continuasse com essa cabeça, com tanto despudor, o Picasso ficaria de cabeça em pé. 

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