“Parece de súbito compreender, sem se
explicar no entanto, porque nos últimos tempos sua inquietação crescera como um
corpo de menina que pressente sufocada a puberdade” (LISPECTOR, Clarice. O Lustre. Rio de Janeiro: Rocco, p. 256)
I
Quando
eu olho pro palco, me pergunto: será mesmo que é o ator que atua ou será que
ele imita a minha vida banal? Essa vida banal que não questiono, deixo que me
leve para algum lugar, essa vida que não chega ser um melodrama norte-americano
com final feliz. Algo qualquer. Existe algo que me impulsiona viver, mas não
tem nada a ver com fingimento, é só algo grandioso, é algo que desbrava a vida
e me faz não querer apenas existir.
Não
sei bem por que sempre gostei da figura do ator. Na minha infância,
perguntava-me com uma coragem maior que de um adulto, frontalmente, sem
escapatória. O que é um ator? O espelho nunca me respondeu, os poetas sempre
rodeavam a pergunta com explanações, os intelectuais, nas suas teorias frias,
se esqueceram de explicar-me que na prática a teoria é diferente. Ah, como ninguém
me respondeu, não me atrevi a tentar um rascunho de resposta.
Na
primeira vez, quando eu fiz os ensaios para uma vida que a criança não tinha
mais espaços. Tive que abandonar a atriz que guardava no peito, para elaborar
uma vida de espetáculos e falsos discursos. Larguei a atuação, para atuar
intensamente numa vida que não se parecia com a minha. Virei uma atriz em tempo
integral. Nessa primeira vez, nunca me pareceu que a força teatral fosse
absurdamente poderosa (não estou falando em transcendências), estou falando de
vida real. O mundo é um lugar de fingidores, de falsos humanos e marcas tão bem
definidas. Sempre me educaram para ser adulta, nunca me educaram para ser sem
máscaras, sem personagens, carne viva, um ser humano comum.
Não
sei se eu senti um arrebentamento de angústia ou de tristeza. O gosto de ambas
é bem parecido. Quando eu olho pro palco, não vejo transcendência artística,
vejo um ser qualquer, querendo ser ele mesmo. Vejo algo parecido com o que eu
devia ser, algo que não é eu, mas curiosamente, deveria ser. Quando eu olho pro
palco, o ator exagera os meus defeitos, mas também realiza os meus desejos. Não
é divino, é real. Tão real quanto o valor que o dinheiro tem nessa sociedade.
II
Abandonar
a ficção fez que o mundo se abrisse aos meus pés, a percepção se mostrou mais
eficaz sobre o que a realidade poderia parecer. Nada era o que a minha
imaginação queria acreditar, lá na pontinha do coração ainda rezava o otimismo
norte-americano dos happys ends. O sonho de ver a tragédia da gigante indústria
cultural U.S.A caindo; ao mesmo tempo, um pouquinho desse veneno vendido para
todos nós, um pouco desse desejo de sucesso. Um pouco da alegria eufórica,
imbecil, ridícula. Quem nunca desejou um beijo na chuva, um príncipe de cabelos
loiros, sexo selvagem em plena segunda-feira até dormir de cansaço.
Sonho
que me engoliram goela abaixo. Luto todo dia para tirar esse sonho de mim. Para
fazer um novo sonho, criar um novo modelo de desejo, porque uma parte de mim é
humana, a outra é animal. Sou feita inteira de desejos, de repulsas e traumas.
Não posso tirar de mim. Tirar a minha vontade de desejar é tirar o que poderia desbravar
um novo sonho, uma nova vida. Ao invés de tanta perfeição, queria mostrar o que
não é perfeito. Queria mostrar o sonho virado no avesso.
A
realidade não se parece com as palavras bonitas da Bíblia, nem com as
palavras cruéis dos senhores que tanto a leem e se esquecem de mostrar as passagens perversas nesse livro. Como se o
mal também não fizesse parte de mim, como se o bem fosse tão poderoso a ponto
de não precisar do oposto para manter-se vivo. Que adianta tanta metafísica? O
mundo não é um sonho.
III
Eu,
como plateia, olhando um ator atuar. Assumindo a minha posição plena de público.
Enxergo um ator e tento pensar como ele: “nesse momento, a virada cênica é
aquele movimento. Aquele ali está puxando o ponto de vista, jogou a bola pro
outro. A luz está ajudando a manter a estrutura da narração. Apagou. Agora, é
minha deixa. Não posso esquecer de pegar o copo, não posso, não posso e preciso
olhar para plateia. O foco é meu.”
Ele
é o signo de mim. Nem sei se o ator se identifica tanto comigo, deveria, ele
faz isso para mim que sou a plateia. A responsabilidade é dele de transmitir um
ponto de vista, é preciso saber que ele não é ele. Eu como plateia também não
sou eu. Estamos todos atuando conjuntamente. No teatro que vai além do teatro.
Nessa
peça, eu vou continuar atuando. Atuarei como plateia, mas também como eu mesmo
diante do mundo. Nesse mundo que me apresentaram como um sonho quando criança,
mas, ao pisar os pés na realidade, se mostrou avesso a tanta metafísica. Não
sei se sou eu que enxergo o mundo de cabeça pra baixo ou se mundo já estava
assim e me apresentaram um buraco da fechadura meio quebrado, meio 3D, que
tinha umas fotos bonitas. Quando abri a porta, quando arrombei ela inteira no
chão, deixei-a em pedacinhos diante dos meus pés, percebi: o ator sou eu,
aquele que está no palco é só um signo de mim.
IV
O
ator não sabe que ele é mais verdadeiro fingindo do que eu tentando falar a
verdade. Eu também não tinha ideia que eu, como plateia, me encontro mais do
que fingindo seguir as regras do mundo que me colocaram antes do meu
nascimento. A empatia que eu tenho com
esse ator é que nós dois fingimos viver, mas são fingimentos diferentes. O meu
depende da minha vida inteira, enquanto ele depende somente aqueles cinco
minutos de cena.
Ele
não sabe, mas para o ator se tornar minimamente real, precisa tanto de mim mais
do que eu preciso dele. Isso é tarefa para quem está disposto ser intenso a
vida inteira, não tarefa para quem está disposto ser apenas um existente de
sonhos contrabandeados dos Estados Unidos. Não pensa que a intensidade se compra
em farmácia, ela está onde menos espera. Naqueles detalhes que não se percebe
no primeiro olhar e existindo numa caixinha de ferramentas, como plateia ou
como ator, não fará notar os detalhes que rodeia o seu mundo.
No
dia que perceber esses detalhes estampados no seu nariz, a felicidade vai te
dar uma tristeza tão grande de existir. Não por que o mundo é bonito, mas
porque o mundo é real. A realidade é tudo fruto da imaginação dos humanos. O
ator é só a barata de Kafka mais moderna, mas ele anda em todos os lugares, o
palco só mostra o que a gente esqueceu de ver todos os dias.
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