domingo, 31 de março de 2013

Os atores, a plateia e o teatro do mundo


“Parece de súbito compreender, sem se explicar no entanto, porque nos últimos tempos sua inquietação crescera como um corpo de menina que pressente sufocada a puberdade” (LISPECTOR, Clarice. O Lustre. Rio de Janeiro: Rocco, p. 256)




I

Quando eu olho pro palco, me pergunto: será mesmo que é o ator que atua ou será que ele imita a minha vida banal? Essa vida banal que não questiono, deixo que me leve para algum lugar, essa vida que não chega ser um melodrama norte-americano com final feliz. Algo qualquer. Existe algo que me impulsiona viver, mas não tem nada a ver com fingimento, é só algo grandioso, é algo que desbrava a vida e me faz não querer apenas existir.
Não sei bem por que sempre gostei da figura do ator. Na minha infância, perguntava-me com uma coragem maior que de um adulto, frontalmente, sem escapatória. O que é um ator? O espelho nunca me respondeu, os poetas sempre rodeavam a pergunta com explanações, os intelectuais, nas suas teorias frias, se esqueceram de explicar-me que na prática a teoria é diferente. Ah, como ninguém me respondeu, não me atrevi a tentar um rascunho de resposta.
Na primeira vez, quando eu fiz os ensaios para uma vida que a criança não tinha mais espaços. Tive que abandonar a atriz que guardava no peito, para elaborar uma vida de espetáculos e falsos discursos. Larguei a atuação, para atuar intensamente numa vida que não se parecia com a minha. Virei uma atriz em tempo integral. Nessa primeira vez, nunca me pareceu que a força teatral fosse absurdamente poderosa (não estou falando em transcendências), estou falando de vida real. O mundo é um lugar de fingidores, de falsos humanos e marcas tão bem definidas. Sempre me educaram para ser adulta, nunca me educaram para ser sem máscaras, sem personagens, carne viva, um ser humano comum.
Não sei se eu senti um arrebentamento de angústia ou de tristeza. O gosto de ambas é bem parecido. Quando eu olho pro palco, não vejo transcendência artística, vejo um ser qualquer, querendo ser ele mesmo. Vejo algo parecido com o que eu devia ser, algo que não é eu, mas curiosamente, deveria ser. Quando eu olho pro palco, o ator exagera os meus defeitos, mas também realiza os meus desejos. Não é divino, é real. Tão real quanto o valor que o dinheiro tem nessa sociedade.

II

Abandonar a ficção fez que o mundo se abrisse aos meus pés, a percepção se mostrou mais eficaz sobre o que a realidade poderia parecer. Nada era o que a minha imaginação queria acreditar, lá na pontinha do coração ainda rezava o otimismo norte-americano dos happys ends. O sonho de ver a tragédia da gigante indústria cultural U.S.A caindo; ao mesmo tempo, um pouquinho desse veneno vendido para todos nós, um pouco desse desejo de sucesso. Um pouco da alegria eufórica, imbecil, ridícula. Quem nunca desejou um beijo na chuva, um príncipe de cabelos loiros, sexo selvagem em plena segunda-feira até dormir de cansaço.
Sonho que me engoliram goela abaixo. Luto todo dia para tirar esse sonho de mim. Para fazer um novo sonho, criar um novo modelo de desejo, porque uma parte de mim é humana, a outra é animal. Sou feita inteira de desejos, de repulsas e traumas. Não posso tirar de mim. Tirar a minha vontade de desejar é tirar o que poderia desbravar um novo sonho, uma nova vida. Ao invés de tanta perfeição, queria mostrar o que não é perfeito. Queria mostrar o sonho virado no avesso.
A realidade não se parece com as palavras bonitas da Bíblia, nem com as palavras cruéis dos senhores que tanto a leem e se esquecem de mostrar as passagens perversas nesse livro. Como se o mal também não fizesse parte de mim, como se o bem fosse tão poderoso a ponto de não precisar do oposto para manter-se vivo. Que adianta tanta metafísica? O mundo não é um sonho.

III

Eu, como plateia, olhando um ator atuar. Assumindo a minha posição plena de público. Enxergo um ator e tento pensar como ele: “nesse momento, a virada cênica é aquele movimento. Aquele ali está puxando o ponto de vista, jogou a bola pro outro. A luz está ajudando a manter a estrutura da narração. Apagou. Agora, é minha deixa. Não posso esquecer de pegar o copo, não posso, não posso e preciso olhar para plateia. O foco é meu.”
Ele é o signo de mim. Nem sei se o ator se identifica tanto comigo, deveria, ele faz isso para mim que sou a plateia. A responsabilidade é dele de transmitir um ponto de vista, é preciso saber que ele não é ele. Eu como plateia também não sou eu. Estamos todos atuando conjuntamente. No teatro que vai além do teatro.
Nessa peça, eu vou continuar atuando. Atuarei como plateia, mas também como eu mesmo diante do mundo. Nesse mundo que me apresentaram como um sonho quando criança, mas, ao pisar os pés na realidade, se mostrou avesso a tanta metafísica. Não sei se sou eu que enxergo o mundo de cabeça pra baixo ou se mundo já estava assim e me apresentaram um buraco da fechadura meio quebrado, meio 3D, que tinha umas fotos bonitas. Quando abri a porta, quando arrombei ela inteira no chão, deixei-a em pedacinhos diante dos meus pés, percebi: o ator sou eu, aquele que está no palco é só um signo de mim.

IV

O ator não sabe que ele é mais verdadeiro fingindo do que eu tentando falar a verdade. Eu também não tinha ideia que eu, como plateia, me encontro mais do que fingindo seguir as regras do mundo que me colocaram antes do meu nascimento.  A empatia que eu tenho com esse ator é que nós dois fingimos viver, mas são fingimentos diferentes. O meu depende da minha vida inteira, enquanto ele depende somente aqueles cinco minutos de cena.
Ele não sabe, mas para o ator se tornar minimamente real, precisa tanto de mim mais do que eu preciso dele. Isso é tarefa para quem está disposto ser intenso a vida inteira, não tarefa para quem está disposto ser apenas um existente de sonhos contrabandeados dos Estados Unidos. Não pensa que a intensidade se compra em farmácia, ela está onde menos espera. Naqueles detalhes que não se percebe no primeiro olhar e existindo numa caixinha de ferramentas, como plateia ou como ator, não fará notar os detalhes que rodeia o seu mundo.
No dia que perceber esses detalhes estampados no seu nariz, a felicidade vai te dar uma tristeza tão grande de existir. Não por que o mundo é bonito, mas porque o mundo é real. A realidade é tudo fruto da imaginação dos humanos. O ator é só a barata de Kafka mais moderna, mas ele anda em todos os lugares, o palco só mostra o que a gente esqueceu de ver todos os dias. 

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