quinta-feira, 21 de março de 2013

O caderninho de amigos de Toninho


Um dia, ele soube. Sentado sobre a pedra, entendeu toda a sua vida por um átimo de segundos.

Assovio.

Antônio procurou Maurício, não encontrou, descobriu que estava morando no Chile; abandonou então a vontade de revê-lo. Ele tentou encontrar Gina, mas descobriu que tinha morrido atropelada por um Pálio preto. Na antiga casa de Santo Amaro, onde ele morava, tentou encontrar a antiga professora de matemática, mas nunca a encontrou, lembrou apenas do perfume, muito forte que ela tinha, sentiu uma saudade intensa. Quando a sua mãe morreu aos 90 anos, Toninho pensou que nunca mais veria ninguém no mundo. Passou a morar numa casinha longe da cidade.
Lá, procurou a última pessoa amada da sua lista, o seu tio chamado Zé; andou, andou e andou. Caminhava caminhos diferentes e desconhecidos. Cansou tanto, não tinha ninguém para conversar às seis da tarde. (Antônio sempre tinha alguém pra conversar às seis da tarde, numa época distante que ele ainda podia atuar com a inocência séria de uma criança brincando. Toninho era um moço envelhecido, olhos curvos e sadios, um sonhador. “Mas os tempos estão difíceis para os sonhadores” [ frase do filme Fabuloso Destino de Amélie Poulain]. Ele sempre tinha alguém para conversar às seis da tarde,  por isso passou a ter hábitos estranhos, ainda quando morava na cidade, passara a conversar com desconhecidos nos pontos de ônibus. Ouvia as histórias de homens e mulheres, pensando: ainda vou escrever as histórias de todas as pessoas do mundo, será a maior declaração de amor que já existiu na Terra). Vou escrever um romance e colocarei na dedicatória: “ para todos os meus amigos”. 
Andando, encontrou Odisseu. Ele voltava com as pernas turvas, procurava algum lugar para morar naquela cidadezinha. Trinta anos que os dois não se viam mais, Toninho viu que ele estava mais bonito, mesmo estando mais cansado, teve vontade de dizer: “bom dia!”. Um passou pelo outro, não se cumprimentaram, trocaram olhares. Dormiu um tanto atormentado, passou por um amigo sem dizer o quanto ele amou e significou. A solidão abateu os seus ouvidos.

Procurava, então, no dia seguinte, o seu tio Zé. Às seis da tarde, ainda era o pior horário do dia. Ficou sabendo que Lilian se enforcou numa sexta-feira, sem deixar um bilhete de despedida. Maria morreu de câncer. A sensação de falta soprava a sua nuca, conversou certa tarde com um velhinho solitário e ele falou:
- que você procura rapaz?
- amigos
- e por que não acha eles?
- porque o tempo andou matando a vontade de ter mais tempo com eles
- Rapaz, o tempo é sempre inimigo de nossa vontade, brigar com ele é pior, é inútil preencher esse vazio que o mundo te abriu. Todos nós somos sozinhos
O velhinho cantou uma canção em outra língua para ele. Toninho sentiu vontade de chorar, dormiu com menos tristeza, desesperançado, quase tinha desistido de encontrar o seu tio Zé.

Numa tarde de domingo, recebeu uma carta. Descobriu que Margarida morreu em um acidente aéreo. Era outra menina que estava na lista de amigos. Uma menina, linda de olhos azuis, que pintava quadros verdadeiros e sensuais, adorava representar os prédios frios da cidade, não sentia necessidade de flores, gostava de cachorros.
Toninho olhou o seu caderninho de amigos. Rabiscou em vermelho, apagando outro nome naquele caderno, guardando apenas no coração outra lembrança de abrigo no mundo. A angústia é uma pulga que morde a carne devagarzinho, coça tanto e machuca a pele até deixar a carne exposta de tanta coceira. Fixou os olhos no teto branco.
Decidiu criar uma galinha de areia. Os dedos molhados de água criava a escultura de galinha no meio da praia. Saiu uma galinha torta, olhos melados de tristeza e solidão, nem era uma escultura bonita. Toninho só sabia mesmo escrever, nem conseguia ser um grande escritor, era só um escritorzinho anônimo. Olhou a escultura, sentou na pedra e respirou um ar diferente dos outros dias. Foi para casa, dormiu à noite toda.
A escultura de galinha continuava firme no dia seguinte. Sentiu esperanças de continuar o caminho. Andou. Encontrou o sítio do tio Zé, chegando lá, perguntou ao um menino:
- onde está o seu Zé?
- Ah! O senhor tá procurando ele?
- sim
- Dona Maria! Ô Dona Maria!
Dona Maria era uma velhinha simpática, olhos cansados, carregava um balde de roupa na cabeça.
- que que foi menino?
- esse senhor aí tá procurando o seu Zé
- ah é! Entra, quer um café? Vem cá, vou passar um agora – disse a Dona Maria
Toninho entrou desconfiado. Não sabia o que podia acontecer.
- cê foi alguma coisa dele?
- era amigo, não, na verdade, eu sou sobrinho dele
- ah! Que açúcar?
- sim
Toninho enxergou a casa simples, louças simples e um sol firme sobre a cabeça de todos. Quase esqueceu da sensação de sentir o calor na cidade grande, era um calor que fazia mal, era muito poluído. Ele diminuíra diante de tanta beleza simples, sentia um ser sem cultura; cidade grande estraga o sotaque; estraga o amor.
- você é de onde?
- sou de São Paulo. Senhora, o seu Zé vai demorar pra chegar?
A caneca quebrou subitamente. Migalhas sobrevoavam o chão. Ela olhou com espanto, uma voz silenciosa de choro saiu de sua boca. Ele não sabia como reagir, continuo parado, esperando a palavra decisiva.
- senhor, el..e...mor-r-r-r...êuuuu...(pausa) a-nnnnno pas....sa-do
Silêncio assombroso. O vento assoprou, dando a última palavra entre os dois.

A escultura de galinha perdeu dois fios de areia. Toninho voltou para casa, não conseguiu chorar, rabiscou outro nome de amigo no caderninho. Sentiu muito frio. Não dormiu, quando acordou já era seis da tarde. O pior horário do dia! Foi caminhar na praia, procurou a sua escultura. Mas não achou, ela tinha sumido com vento. Sentou no lugar onde antes era da galinha que criou. A areia perpassava os dedos, era tão fina, o vento assoprava sua nuca. 
Naquele dia, Toninho respirou pela última vez, nunca escreveu um livro. Diziam as pessoas que ele estava muito doente, era uma doença maldita que tinha machucado todo o seu sistema imunológico. Mas, na realidade, ele se foi, porque queria encontrar os seus amigos em outro lugar. (Esse narrador gosta de imaginar que a busca de Toninho não terminou. Toninho virou vento).  

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