domingo, 10 de março de 2013

A história desinteressante da morte de Marcos


1
Desenrolando dentro de mim alguma tentativa de alegria. Busquei tanto a liberdade de escolha, resvalei no mais fundo de mim um sonho que me engolia inteiro. Sou uma tentativa frustrada do mito que criei em torno de mim. Não sou nem metade da pessoa que eu gostaria de ser. A minha realidade tem mais tédio, minha argúcia angustia. Procuro cigarros.
Fumo.
Leio Baudelaire, estou cada dia mais entregue aos prazeres da pequena burguesia. Minhas contradições me levaram a melancolia profunda. Descobri esses dias que eu tenho uma doença, não contei pra minha família ainda. Quero que todos pensem que sou saudável. Às vezes, pela manhã, sentindo o cheiro de suor nas minhas mãos, penso em suicídio, mas acho besteira. É frescura de quem tem tempo pra sentir melancolia. Crises existenciais, normalmente, são para burgueses.
Fumo.
Como é que é subjetividade de pobre? Pobre (preto, favelado e sujo) não pode ter existência, não pode duvidar a sua alma? Não pode exercitar o pensamento? Como seria a Odisséia de um menino de pés descalçados, sujo de barro vermelho? Como seria um rapaz fazendo líricas do seu time do coração no botequim da esquina de Guarulhos? Não seria uma espécie de poemas perdidos da oralidade do povo. Essa Paulicéia que sempre abrangeu o mau gosto. É, como diria o Zé, a energia de Sampa é ruim porque tem um rio de bosta que atravessa a capital, falta a praia.
(É, mano, quem tá acostumado com mau gosto, o inferno é fichinha!).

2
A figura de um cachorro chamou-me a minha atenção. Os dois olhos pretos fixamente parados flertando com um osso de galinha jogado no lixo, espalhado no asfalto. Ele me parecia tão concentrado, mas tão serenamente feliz. Acho que estou ficando meio louco.
Ontem, Diego me ligou, perguntou se eu ia dormir na casa dele. Eu perguntei: a sua mulher vai estar aí? Ele me respondeu: não, pode vim! Ah... Diego é um desses babacas que sempre é bom pra guardar como reserva, saca? Senão pra transar, ao menos, pra fumar algumas verdinhas. Eu queria era mesmo ser uma cadelinha. Mano, já tô pensando umas paradas aí que não estão ligando umas com as outras. Acho que estou ficando meio louco.
Esse cachorro quase abriu um sorriso de sacana pra cima de mim. Ele tá tirando uma com a minha cara, só pode ser. Seria engraçado se eu matasse ele, queria ver se esse animal continuaria sorrindo pra cima dos homens.  O animal pensa que é mais feliz que toda a humanidade. Vou jogar algo nele.

3
Saí correndo. Acho que matei aquele cachorro.
Não importa. Um cão é sempre um cão.
 O homem é um ser irracionalmente racional.

4
Mano, advérbios é foda! – só consigo pensar nisso, enquanto transo com Diego. Acho que vou desistir de ser escritor.
Ei Marcos, cê tá bem? – perguntou Diego
Mano, - respirei longamente -, estou naqueles dias sabe. Matei um cachorro hoje, vindo pra sua casa.
Marcos olhou pra mim com um ar de tanta normalidade. Peguei o baseado, fumei e ele falou:
Matar um cachorro! – tossiu – por que?
eu tava com muito ódio – coçando a barba – da felicidade e da inocência do cão. Aí, pra me resolver, mano, peguei a garrafa de cerveja que eu tava tomando e joguei em cima dele. Só acertei na cabeça, vi um pouco de sangue jorrando e saí correndo. Um cão é um cão, ninguém vai sentir falta dele
mas – disse Diego – é só por isso que está longe hoje?
- Diego. Sou um merda, não tenho nada, não sou nada e tenho dentro de mim toda a babaquice e idiotice da humanidade. A burguesia tanto fez que conseguiu me viciar com seus valores, sou um deles, sou uma máscara de mim mesmo. Sabe qual é a pior lógica disso tudo?
- é a essa falta de nexo nisso tudo?
- Não é não. É justamente a lógica disso tudo. Aquele cão merecia morrer, porque eu quis.
- o que você vai fazer?
- nada

5
Não tive coragem de cometer suicídio.

6
Passei naquela rua de novo. Vi o animal deitado no asfalto, a cabeça toda ensanguentada. As pessoas passavam por cima do animal e não viam, pisoteavam e se pudessem até sambariam em cima do cão. É muito bom sorrir das desgraças alheias. Confesso que também fiquei com um gosto de alegria na boca. O cão estava morto e humilhado. Eu quase senti que a vida era boa.
Acho que acabei morrendo no dia seguinte. Não me recordo a data. Também não interessa muito, a vala que eu fui sepultado foi de indigente. Morri como um animal, ninguém sabia o meu nome. Fui morto, na verdade, me mataram, por que? Eu não lembro. Acho que eu estava lá, sendo eu mesmo e morri. 

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