Mariana
sabia muito pouco sobre filosofia, literatura e política. Cada dia mais, ela
tinha uma sensação que ficava mais perdida, afundada em livros e informações
jornalísticas expostas na internet. A jovem estudante de filosofia, interessada
por assuntos difíceis e por alemães, rabiscava palavras, duas ou três, para
escrever no final de cada página do diário, como um sinal de fracasso, que não
entendia o mundo, não entendia a arte, não entendia ela mesma. Ela fracassava na
sua ambição de interpretar os passos dessa sociedade que fazia parte como mais
uma anônima.
Atenta
e delicada, Mariana fixava os olhos na folha de papel e assoprava o lápis, este
objeto fazia um movimento de vai e vem. O lápis indo e vindo, indo e vindo, até
cair no chão. (Lembrete: os sons miúdos aumentam de tamanho, quando há uma
pessoa atenta para ouvir). Ela caminhou até a janela e viu uma lua soberba,
brilhando, no céu vazio e sem estrelas de São Paulo. O vento acariciava seus
pensamentos, eles, pouco a pouco, adormeciam.
Com
tantos piolhos existenciais, restaram apenas uma reflexão. A lua estava
minguante. Mariana acreditava que essa era a lua das bruxas; ela criava um
pensamento, uma ilusão que pudesse acreditar. Tempos atrás, a jovem estudante
tinha perdido a crença com as religiões para sempre. Por isso, sentiu
necessidade de criar algo que fugisse de sua imaginação terrena, alimentando o
seu lado infantil, adornando suas fantasias impossíveis. A lua era a sua maior
invenção.
Mariana
escreveu: “ (...) a lua minguante é a verdadeira lua das bruxas, é a lua dos
intervalos. É a lua que está entre a fase nova e a fase cheia. São nos
intervalos que a gente se transforma, é no limiar que as coisas, pouco a pouco,
viram. O devir. Aliás, palavras bonitas
essas, né: 'devir, etéreo'; um dia um rapaz que namorei me disse que a palavra
que combinava comigo era o verbo flanar,
(quando Felipe falou isso, eu achei de uma delicadeza!...); lendo um
romance encontrei a palavra irremissível misturada com as frases, foi como
encontrar um amor, apaixonei-me imediatamente. Não sei nem se estou escrevendo
coisa com coisa, acho que não, provavelmente não, estou escrevendo palavras
desconexas e inventando fatos. Eu estou assim, por exemplo, minguante”.
Dois
minutos, em desassossego, ela olhou inconformada para própria caligrafia, olhando
a janela, engolindo o lápis na boca; questionou-se sobre o futuro e, nesse
momento, o presente se distraiu e virou um passado inconsistente. Pensou: “o
que vou escrever? O que vou escrever?”. Sentiu vontade de jogar o diário no
lixo, sentiu-se enojada com todas essas palavras. Era uma mulher infantil e
impotente, só sabia tagarelar e tagarelar sobre as coisas que não conhecia.
Quando criança, um tio, bagunçando seus longos cabelos cacheados, disse a ela:
“você tem uma cara de menina mentirosa”. Mariana riu, afinal, o seu tio bêbado
que paquerava meninas de dez anos e ensinava como beijar na boca, estava certo.
Era uma menina mentirosa, hoje, era uma mulher mentirosa. Às vezes, mentia
tanto que acreditava nas próprias coisas que contava, como se fossem histórias reais,
sentiam elas como verdadeiras e vividas com toda a intensidade que enfurecia
seu peito. Mariana densava a sua vida com enredos inexistentes.
Pensou
e falou baixinho como se conversasse com espíritos: “o que eu vou escrever?”
-
você podia escrever sobre a vida misteriosa das baratas. – Mariana sentiu um
cheiro de cigarro, não virou-se, imediatamente, para enxergar quem era, esperou
a voz feminina terminar o raciocínio - Apesar que -- (a voz feminina hesitou) --as
baratas já estão ficando fora de moda. Escreve sobre as galinhas, escreve sobre
elas fugindo assustadas para não virarem comida na janta. Escreve como as galinhas
conquistaram a falsa liberdade
-
já fizeram um conto sobre isso
-
já fizeram?
-
sim, o nome é “Uma galinha”
-
escreva sobre o ovo, então, - Mariana virou-se devagar e enxergou a mulher que
falava com língua presa; sentiu nervoso e, assustada, a jovem estudante ficou
em silêncio. A escritora, fumando, continuou o raciocínio, falava como uma
estrangeira – sabe, menina, eu nunca consegui entender o ovo. Uma vez, eu escrevi
um conto sobre o ovo. Juro! É o meu maior mistério, é o único conto que eu não
entendo
-
eu li – gaguejava – eu li – Mariana gaguejava
e tentava esconder o nervosismo do impacto – eu li eu li eu li
-
você leu? – Clarice (a escritora de língua presa) perguntou.
-
eu li esse conto na adolescência, foi o primeiro conto que eu li seu, foi esse
conto que me atraiu pro seu mundo. Eu fui seduzida pelas palavras, pareceu
feitiço, sei lá, bruxaria
Clarice
riu. Ela tragava um cigarro, sentou-se na cadeira de balanço e viu a folha
rabiscada com algumas palavras.
-
você quer ser escritora?
-
acho que eu quero
-
achar não é o mesmo que ter certeza, – Clarice fumou - você sabe que eu nunca quis ser escritora. Eu
sempre fui amadora. Amo escrever, quando eu não escrevo é porque estou morta
-
uma vez eu falei essa frase pro meu primo, Clarice... Posso te chamar assim?
-
pode
-
eu falei isso pro meu primo. Sabe. Sobre esse negócio de ser amador, sabe, ele
riu da minha cara. Disse que não há só amor nessa palavra, também há a palavra
dor. Ele disse pra mim que eu era uma garota engraçada, porque não rimava amor
com dor, mas gostava da palavra amador por conta dessa interpretação
etimológica
Clarice
tinha mudado a expressão do rosto, não ria, mas também não ficou nervosa com a
observação. A escritora colocou os óculos, fumou.
-
seu primo tem senso de humor. Mas não sei por que as pessoas riem com coisas
que não são engraçadas? Amor e dor não são coisas engraçadas. Você, menina,
sabe das consequências disso tudo?
-
disso o que?
-
quando você tinha 16 anos, menina, um velho falou pra você que literatura não
se faz com bons sentimentos. Você, sem dúvida, pensou sobre essa frase, não?
Você tem um péssimo gosto de pensar sobre as coisas, sabia. E tem outro gosto
terrível, nada elegante da sua parte, você faz perguntas demais
-
eu tenho medo. Clarice, eu acho que sou covarde. Você sempre teve uma ironia
trágica nos seus textos, principalmente, A hora da estrela, aquele livro é
foda. Desculpa o palavrão. Mas, enfim, sei lá, Clarice, você sabia usar o que
tinha, eu acho que eu não sei, eu acho que eu sou uma covarde. Sou muito
covarde, uma impostora, talvez
-
você tem tempo pra aprender a densar seus defeitos. Menina, você tem noção das
consequências da frase do velho?
-
literatura não se faz com boas intenções?
-
isso!Você sabe o que tá falando ou fala isso da boca pra fora?
Mariana
calou-se, ela fixou os olhos no movimento dos braços, era outro vai-vem. O
braço ia e voltava; toda volta, Clarice tragava saboreando a fumaça. Os olhos
da escritora eram mais penetrantes de perto. A jovem estudante ficou paralisada
e hipnotizada com a visão de mulher que assombrou a sua vida inteira.
-
você não sabe, né? Eu também não sabia quando eu tinha a sua idade? Quantos
anos você tem?
-
20 anos
-
escrevi Perto do coração selvagem, era uma menina jovem que sentia demais
como você. Fiquei pasma comigo, quando eu escrevi A cidade sitiada, esse
livro, por resto de minha vida, eu serei agradecida por ele
-
mesmo você não sabendo das consequências de tudo, você escreveu?
-
escrevi, - Clarice mexeu os dedos, levantou-se, caminhou até a janela, - aaah!
A lua minguante. Isso é lua de bruxa, sabe quanto tempo a gente demora pra aprender
magia, menina?
-
não
-
o resto de nossas vidas, a gente morre por conta de feitiços
-
você foi covarde também, Clarice
-
Isso é uma acusação, anda querendo me contrariar, menina?
-
por que você não fez nada?
-
Eu fui impotente
-
você foi covarde, devia ter, sei lá, continuado, devia sei lá, ter escrito
sobre Hélio Pellegrino, sobre tortura, sobre violência e sobre as coisas que
afetavam o mundo na sua época. Por que você não escreveu coisas que tinha
sangue? Por que você preferiu escrever histórias de donas de casas e epifanias
cotidianas? Às vezes, eu me sinto tão perdida, às vezes, eu acho que dou razão
demais pros outros. As coisas que falam sobre você, te chamavam de alienada
-
nunca escrevi livros pros outros
-
o que você fazia? Por que você escrevia assim?
-
porque era o que tinha. Porque a gente não escreve pra mudar o mundo. Eu sei,
menina, eu sei que você tem sede de vingança, eu sei que você tem fome por
outras possibilidades. A vida não tem nada de original. Eu sei, sei mesmo que sente
desejo por surpresa, originalidade. Eu sei de tudo isso. Mas, você precisa
entender,
-
você fugiu, Clarice?
-
eu estava como você, perplexa com o mundo. Eu era uma mulher impotente, triste
e transtornada. Eu não entendia o que estava acontecendo, era minha santidade,
menina, não entender era o que preservava minha humanidade diante das coisas.
Não entender é tão vasto que ultrapassa qualquer entendimento
-
você não sabe como as coisas estão hoje. Como tudo está uma bagunça, como as
coisas estão ambíguas, como é difícil entender o mundo, as pessoas e a via
láctea. Eu não sei o que fazer. Eu fico perplexa
-
então, - Clarice encarou os olhos inquietos da jovem escritora -, menina, a
gente não vai alterar nada por conta desses textos. Não vai alterar nada.
-
isso não é conformismo, Clarice?
-
não acreditem nas almas boas que usam as minhas frases, no entanto eu nunca
tive a ambição de ser a bússola
-
então, por que a gente faz isso?
-
a gente escreve pra desabrochar, menina, pra desabrochar pra vida
As
mãos da Clarice flutuavam no ar. Mariana observava, hipnotizada, os movimentos
dos braços da escritora, escutava como uma apaixonada o som da língua presa
(que parecia uma voz de uma mulher estrangeira) daquela soberba e elegante
estrangeira do próprio país. Clarice desapareceu no minuto que Mariana piscou
os dois olhos. A jovem estudante tinha mania de perder o instante presente para
sempre, o tempo presente furtava-se e ela não sabia voltar. As coisas não eram
mais as mesmas. Olhando a lua minguante, Mariana começou a falar em voz alta:
-
eu escrevo pra me desabrochar, mas é possível desabrochar no mundo de entranhas
abertas, feridas não cicatrizadas e rostos banhado a sangue? Posso te ouvir, me
perguntando; você não quer ser parecida comigo? Eu respondo que não. Não acho
que quero ser parecida com alguém, não acho que quero ser inimitável sozinha.
Quero desabrochar, desabrochar pro mundo
Mariana
colocou a caneta na boca e continuo o raciocínio:
-
mas, sempre, à noite, as bruxas se encontram e fazem os teus feitiços. Sempre
anoitecendo.
só aprimorando a extensão da dor Bruninha... sempre na humilde...
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