segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Diário

Mariana sabia muito pouco sobre filosofia, literatura e política. Cada dia mais, ela tinha uma sensação que ficava mais perdida, afundada em livros e informações jornalísticas expostas na internet. A jovem estudante de filosofia, interessada por assuntos difíceis e por alemães, rabiscava palavras, duas ou três, para escrever no final de cada página do diário, como um sinal de fracasso, que não entendia o mundo, não entendia a arte, não entendia ela mesma. Ela fracassava na sua ambição de interpretar os passos dessa sociedade que fazia parte como mais uma anônima.
Atenta e delicada, Mariana fixava os olhos na folha de papel e assoprava o lápis, este objeto fazia um movimento de vai e vem. O lápis indo e vindo, indo e vindo, até cair no chão. (Lembrete: os sons miúdos aumentam de tamanho, quando há uma pessoa atenta para ouvir). Ela caminhou até a janela e viu uma lua soberba, brilhando, no céu vazio e sem estrelas de São Paulo. O vento acariciava seus pensamentos, eles, pouco a pouco, adormeciam.
Com tantos piolhos existenciais, restaram apenas uma reflexão. A lua estava minguante. Mariana acreditava que essa era a lua das bruxas; ela criava um pensamento, uma ilusão que pudesse acreditar. Tempos atrás, a jovem estudante tinha perdido a crença com as religiões para sempre. Por isso, sentiu necessidade de criar algo que fugisse de sua imaginação terrena, alimentando o seu lado infantil, adornando suas fantasias impossíveis. A lua era a sua maior invenção.
Mariana escreveu: “ (...) a lua minguante é a verdadeira lua das bruxas, é a lua dos intervalos. É a lua que está entre a fase nova e a fase cheia. São nos intervalos que a gente se transforma, é no limiar que as coisas, pouco a pouco, viram.  O devir. Aliás, palavras bonitas essas, né: 'devir, etéreo'; um dia um rapaz que namorei me disse que a palavra que combinava comigo era o verbo flanar,  (quando Felipe falou isso, eu achei de uma delicadeza!...); lendo um romance encontrei a palavra irremissível misturada com as frases, foi como encontrar um amor, apaixonei-me imediatamente. Não sei nem se estou escrevendo coisa com coisa, acho que não, provavelmente não, estou escrevendo palavras desconexas e inventando fatos. Eu estou assim, por exemplo, minguante”.
Dois minutos, em desassossego, ela olhou inconformada para própria caligrafia, olhando a janela, engolindo o lápis na boca; questionou-se sobre o futuro e, nesse momento, o presente se distraiu e virou um passado inconsistente. Pensou: “o que vou escrever? O que vou escrever?”. Sentiu vontade de jogar o diário no lixo, sentiu-se enojada com todas essas palavras. Era uma mulher infantil e impotente, só sabia tagarelar e tagarelar sobre as coisas que não conhecia. Quando criança, um tio, bagunçando seus longos cabelos cacheados, disse a ela: “você tem uma cara de menina mentirosa”. Mariana riu, afinal, o seu tio bêbado que paquerava meninas de dez anos e ensinava como beijar na boca, estava certo. Era uma menina mentirosa, hoje, era uma mulher mentirosa. Às vezes, mentia tanto que acreditava nas próprias coisas que contava, como se fossem histórias reais, sentiam elas como verdadeiras e vividas com toda a intensidade que enfurecia seu peito. Mariana densava a sua vida com enredos inexistentes.
Pensou e falou baixinho como se conversasse com espíritos: “o que eu vou escrever?”          
- você podia escrever sobre a vida misteriosa das baratas. – Mariana sentiu um cheiro de cigarro, não virou-se, imediatamente, para enxergar quem era, esperou a voz feminina terminar o raciocínio - Apesar que -- (a voz feminina hesitou) --as baratas já estão ficando fora de moda. Escreve sobre as galinhas, escreve sobre elas fugindo assustadas para não virarem comida na janta. Escreve como as galinhas conquistaram a falsa liberdade
- já fizeram um conto sobre isso
- já fizeram?
- sim, o nome é “Uma galinha”
- escreva sobre o ovo, então, - Mariana virou-se devagar e enxergou a mulher que falava com língua presa; sentiu nervoso e, assustada, a jovem estudante ficou em silêncio. A escritora, fumando, continuou o raciocínio, falava como uma estrangeira – sabe, menina, eu nunca consegui entender o ovo. Uma vez, eu escrevi um conto sobre o ovo. Juro! É o meu maior mistério, é o único conto que eu não entendo
- eu li – gaguejava – eu li –  Mariana gaguejava e tentava esconder o nervosismo do impacto – eu li eu li eu li
- você leu? – Clarice (a escritora de língua presa) perguntou.
- eu li esse conto na adolescência, foi o primeiro conto que eu li seu, foi esse conto que me atraiu pro seu mundo. Eu fui seduzida pelas palavras, pareceu feitiço, sei lá, bruxaria
Clarice riu. Ela tragava um cigarro, sentou-se na cadeira de balanço e viu a folha rabiscada com algumas palavras.
- você quer ser escritora?
- acho que eu quero
- achar não é o mesmo que ter certeza, – Clarice fumou -  você sabe que eu nunca quis ser escritora. Eu sempre fui amadora. Amo escrever, quando eu não escrevo é porque estou morta
- uma vez eu falei essa frase pro meu primo, Clarice... Posso te chamar assim?
- pode
- eu falei isso pro meu primo. Sabe. Sobre esse negócio de ser amador, sabe, ele riu da minha cara. Disse que não há só amor nessa palavra, também há a palavra dor. Ele disse pra mim que eu era uma garota engraçada, porque não rimava amor com dor, mas gostava da palavra amador por conta dessa interpretação etimológica
Clarice tinha mudado a expressão do rosto, não ria, mas também não ficou nervosa com a observação. A escritora colocou os óculos, fumou.
- seu primo tem senso de humor. Mas não sei por que as pessoas riem com coisas que não são engraçadas? Amor e dor não são coisas engraçadas. Você, menina, sabe das consequências disso tudo?
- disso o que?
- quando você tinha 16 anos, menina, um velho falou pra você que literatura não se faz com bons sentimentos. Você, sem dúvida, pensou sobre essa frase, não? Você tem um péssimo gosto de pensar sobre as coisas, sabia. E tem outro gosto terrível, nada elegante da sua parte, você faz perguntas demais
- eu tenho medo. Clarice, eu acho que sou covarde. Você sempre teve uma ironia trágica nos seus textos, principalmente, A hora da estrela, aquele livro é foda. Desculpa o palavrão. Mas, enfim, sei lá, Clarice, você sabia usar o que tinha, eu acho que eu não sei, eu acho que eu sou uma covarde. Sou muito covarde, uma impostora, talvez
- você tem tempo pra aprender a densar seus defeitos. Menina, você tem noção das consequências da frase do velho?
- literatura não se faz com boas intenções?
- isso!Você sabe o que tá falando ou fala isso da boca pra fora?
Mariana calou-se, ela fixou os olhos no movimento dos braços, era outro vai-vem. O braço ia e voltava; toda volta, Clarice tragava saboreando a fumaça. Os olhos da escritora eram mais penetrantes de perto. A jovem estudante ficou paralisada e hipnotizada com a visão de mulher que assombrou a sua vida inteira.
- você não sabe, né? Eu também não sabia quando eu tinha a sua idade? Quantos anos você tem?
- 20 anos
- escrevi Perto do coração selvagem, era uma menina jovem que sentia demais como você. Fiquei pasma comigo, quando eu escrevi A cidade sitiada, esse livro, por resto de minha vida, eu serei agradecida por ele
- mesmo você não sabendo das consequências de tudo, você escreveu?
- escrevi, - Clarice mexeu os dedos, levantou-se, caminhou até a janela, - aaah! A lua minguante. Isso é lua de bruxa, sabe quanto tempo a gente demora pra aprender magia, menina?
- não
- o resto de nossas vidas, a gente morre por conta de feitiços
- você foi covarde também, Clarice
- Isso é uma acusação, anda querendo me contrariar, menina?
- por que você não fez nada?
- Eu fui impotente
- você foi covarde, devia ter, sei lá, continuado, devia sei lá, ter escrito sobre Hélio Pellegrino, sobre tortura, sobre violência e sobre as coisas que afetavam o mundo na sua época. Por que você não escreveu coisas que tinha sangue? Por que você preferiu escrever histórias de donas de casas e epifanias cotidianas? Às vezes, eu me sinto tão perdida, às vezes, eu acho que dou razão demais pros outros. As coisas que falam sobre você, te chamavam de alienada
- nunca escrevi livros pros outros
- o que você fazia? Por que você escrevia assim?
- porque era o que tinha. Porque a gente não escreve pra mudar o mundo. Eu sei, menina, eu sei que você tem sede de vingança, eu sei que você tem fome por outras possibilidades. A vida não tem nada de original. Eu sei, sei mesmo que sente desejo por surpresa, originalidade. Eu sei de tudo isso. Mas, você precisa entender,
- você fugiu, Clarice?
- eu estava como você, perplexa com o mundo. Eu era uma mulher impotente, triste e transtornada. Eu não entendia o que estava acontecendo, era minha santidade, menina, não entender era o que preservava minha humanidade diante das coisas. Não entender é tão vasto que ultrapassa qualquer entendimento
- você não sabe como as coisas estão hoje. Como tudo está uma bagunça, como as coisas estão ambíguas, como é difícil entender o mundo, as pessoas e a via láctea. Eu não sei o que fazer. Eu fico perplexa
- então, - Clarice encarou os olhos inquietos da jovem escritora -, menina, a gente não vai alterar nada por conta desses textos. Não vai alterar nada.
- isso não é conformismo, Clarice?
- não acreditem nas almas boas que usam as minhas frases, no entanto eu nunca tive a ambição de ser a bússola
- então, por que a gente faz isso?
- a gente escreve pra desabrochar, menina, pra desabrochar pra vida
As mãos da Clarice flutuavam no ar. Mariana observava, hipnotizada, os movimentos dos braços da escritora, escutava como uma apaixonada o som da língua presa (que parecia uma voz de uma mulher estrangeira) daquela soberba e elegante estrangeira do próprio país. Clarice desapareceu no minuto que Mariana piscou os dois olhos. A jovem estudante tinha mania de perder o instante presente para sempre, o tempo presente furtava-se e ela não sabia voltar. As coisas não eram mais as mesmas. Olhando a lua minguante, Mariana começou a falar em voz alta:
- eu escrevo pra me desabrochar, mas é possível desabrochar no mundo de entranhas abertas, feridas não cicatrizadas e rostos banhado a sangue? Posso te ouvir, me perguntando; você não quer ser parecida comigo? Eu respondo que não. Não acho que quero ser parecida com alguém, não acho que quero ser inimitável sozinha. Quero desabrochar, desabrochar pro mundo
Mariana colocou a caneta na boca e continuo o raciocínio:

- mas, sempre, à noite, as bruxas se encontram e fazem os teus feitiços. Sempre anoitecendo.

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