Tenho
poucos amigos escritores. Na verdade, intimidade mesmo com amigos artistas, eu
tenho com três. Às vezes, quando preciso muito, converso sobre o meu processo
de escrita com eles (Joaquim, Maurício e Clarice). Sempre escrevi diários desde
criança, é uma forma de não perder o que me acontece e encontrar as amarras da
minha vida. Com poucos amigos artistas, conversas, sobre processos de escrita,
os livros e a arte em geral, ficam muito restritas; (na verdade, esse tipo de
conversa quando estamos imersos na banalidade é quase uma raridade). É difícil
conversar sobre isso sem causar espanto; como se os artistas fossem algo
incompreensível, um vírus HIV, um mago, um marciano e etc.
Não
gosto do olhar que causo quando começo falar de prosa, da dificuldade de
escrever e da ideia que tenho do mundo. Eu não me considero a melhor pessoa do
mundo, não estou numa Torre de Marfim e, ao mesmo tempo, me sinto responsável
pelo mundo. Fico perdida, não sei como agir. Não gosto de falar de arte, quando
estou perto das pessoas, evito assuntos assim; o que é curioso, é que a arte sempre
foi a minha vida, é o caminho que percorri para encontrar a expressão da minha
individualidade. Quando eu falo isso, não quero parecer uma pessoa que sofreu
muito, porque não conheço sofrimento; eu acho que me diverti bastante. Mas
quero dizer que alguma coisa incomum acontece quando nós, artistas, falamos de
arte, é comum uma sensação de estranhamento entre a multidão.
Queria
dividir meu processo de escrita com artistas como vocês. Por isso, vou contar
alguns pensamentos que guardo na minha cabeça. Vou contar para vocês como se
contassem para os meus amigos, vou tratar vocês com alguma intimidade. Eu moro
em São Paulo, desde que eu me conheço por gente, a cidade e as diferenças
sempre fizeram parte da minha trajetória. Quando eu escuto minha mãe falar do
nordeste e do meu pai falar do Paraná, é o mesmo que ouvir histórias de gregos,
não consigo ter nenhuma relação com isso. Sou uma pessoa sem raízes.
Certa
vez, conversando com um conhecido, ele me disse:
-
Mariana, eu li, uma vez, um artigo sobre os filhos de migrantes, dizem que nós
temos saudades de um lugar que não conhecemos
Ele
era um artista que não tinha intimidade comigo, o nome dele não importa. Mas
isso ajuda vocês, artistas, entenderem um pouco sobre mim. Eu escrevo sobre a
cidade, escrevo sobre pessoas sem raízes, sobre relações efêmeras e feiura. Sei
que há diferença entre morar em São Paulo, Ceará e Paraná. Quando conheci essas
três cidades, logo percebi que a cidade, que eu tive na minha infância, era
feia. E, diferentemente das crianças do nordeste ou das crianças de “pé
vermelho do Paraná”, eu inventava as minhas brincadeiras no Shopping Center. Esse
espaço foi um lugar lúdico, o que é algo de um tremendo mau gosto em comparação a
infância pobre e miserável da minha mãe e do meu pai; às vezes, eu pensava:
“podia ter tido tudo que eu poderia ter tido, mas a infância deles tiveram
mais. Eles tiveram barro, sol, ar livre e terra de verdade. E vieram pra cá,
morar aqui, morar em São Paulo”.
O
Shopping Center é também um espaço de memória. Quando eu tinha uns seis anos,
eu sonhava fugir e morar para sempre no Shopping D.. Depois de alguns anos,
conclui que a minha vida sempre foi um culto ao império da decadência, da
quantidade e do consumo incessante. Na adolescência, entre 13 e 14 anos, eu
comecei a minha coleção. Namorei o meu primeiro violeiro, depois, namorei um
baixista e fui namorando outros músicos no caminho. Já vou explicar devagar,
calma, meus queridos artistas, vou explicar com calma.
Há
pouco tempo, reencontrei uma amiga chamada Anita, ela sempre foi uma menina
bonita. Era uma moça um pouco tímida, muito religiosa e criamos um vínculo
quando estávamos na puberdade. Anita, um dia, me disse:
-
só considero namoro algo com mais de dois anos
-
bom, eu prefiro a palavra “namorar” do que a palavra “ficar”, mas, às vezes, eu
uso a palavra ficante. Nunca achei elegante essa palavra, mas às vezes eu uso.
Fazer o quê? Isso foi invenção da nossa geração – eu respondi.
Eu
tenho mania de listas, escrevo listas para tudo. E, com namorados, a minha
lista é mental, nunca escrevi no meu diário. Eu diria até que tenho uma
metodologia, critério, esquemas e teorias sobre isso. Já vou explicar,
artistas, já vou explicar. A minha coleção começou quando eu tinha 13 anos (mais
ou menos!), namorei um menino chamado Robério, cabelo ruivo, olhos castanhos,
tocava violão e guitarra. Era um menino gentil, gostava de rock brasileiro, não
entendia muito de música, tocava rápido, conhecia poucas referências musicais.
Era meio tonto, mas era bonito.
Desde
então, estabeleci parâmetros: meus namoros não duram mais de dois meses; namoro
somente músicos; preciso fugir de todos. Por que músicos? Estou firmada em um
desejo que não realizei, queria ser musicista ou cientista quando criança, no
entanto, não servi para estudar química e não tinha paciência para estudar
teoria musical. Pode ser qualquer tipo de músico? Como toda e qualquer coleção,
sempre há aquelas peças mais valiosas. As
minhas peças valiosas são: 1) um violeiro que toca a escola do violão
brasileiro (Rafael Rabelo, Dilermando Reis e Baden Powell), sempre achei que as
mãos de um violeiro quando toca esse estilo fossem hábeis e livres; 2) um
pianista que entendesse de impressionismo francês e tocasse Debussy, isso
sempre foi sonho de criança. Sempre fui apaixonada pela figura mítica dos
românticos de um pianista triste, sozinho, que sonha com uma musa; 3) um
gaitista que tocasse clássicos do Blues.
Meu
melhor amigo é um ex-músico, sempre dedicou a sua vida aos instrumentos de
cordas. Ele nunca soube dos meus métodos, critérios e invenções literárias que
estabeleci por conta dessa coleção. Na verdade, Joaquim não sabe dessa coleção,
ele só ri dessa minha preferência por músicos. Ele tira sarro de mim e me chama
de tiete.
De
qualquer maneira, é estranho falar assim, meus queridos artistas, a minha
coleção e o meu processo de escrita estão conectados. É, basicamente, a mesma
coisa que acontece quando eu conheço um músico. Ele está com o instrumento,
tocando, eu o vejo, distraído, em seguida, me interesso; o meu nível de
interesse cresce por causa das músicas, se eu escuto uma música que me apaixona
e me afeta, pode ser um sinal de romance imediato. (Muitas vezes, -- isso é uma
pausa, -- eu conheci músicos tão medíocres que, na minha cabeça, eu pensava.
Nossa! Esse cara toca um instrumento, mas eu entendo mais de música do que ele.
Óbvio! Eu nunca falei isso para eles, os músicos usam a música para chamar as
meninas, não vou abalar o ego frágil deles). Eu beijo, converso, encanto,
seduzo e, depois, simplesmente, abandono. Não sofro quando abandono alguém, eu
desapareço com muita facilidade.
Todos
os músicos acontecem por acaso. A relação mais curta que eu tive foi com
violeiro do Vila Lobos (era assim que eu o chamava), conheci-o ensaiando a música "Trenzinho Caipira", fiquei apaixonada rapidamente. Conversamos, beijamos e,
depois, semanas seguintes, não nos vimos mais. A relação mais larga foi com o
guitarrista libriano, ele sempre me encarou quando passava em frente a loja de
instrumentos que trabalhava; quando eu quis, ele também; depois, abandonei-o
simplesmente. Na minha lista de músicos, as figuras mais dominantes são
guitarristas, violeiros e baixistas. Isso significa que já conheci bons
músicos, outros medíocres e alguns irrelevantes.
A
cada músico que me acontece, eu estou desatenta. Para sair da minha desatenção,
a pessoa precisa tirar do meu lugar de distração (com boa música, é fácil sair
desse lugar rapidinho). Eu sou, de repente, arrastada para um espaço atemporal
e fico ludibriada como uma cobra que escuta um som de cantiga para sair do que
a encobre. Passo horas hipnotizada pelo outro, ouvindo-o tocar, depois,
ouvindo-o falar, depois, sentindo a pele distraidamente tocar as minhas mãos. A
primeira parte do corpo erotizada, sem dúvida nenhuma, são as mãos. O toque
desloca os pensamentos para outros lugares, fazendo cair no esquecimento.
Anita,
uma vez, me disse:
-
você é muito nova, Mariana, você nunca se apaixonou de verdade
Concordei
rapidamente com ela. Anita falava como uma mulher de setenta anos, não sei, se
é carinho em demasiado, atenção comigo, talvez.
Não sei, eu prometi não revelar a vida amorosa dela. Mas, em
contraponto, eu tenho a vida amorosa mais sincera do mundo, admito que as
pessoas sejam coisas, a memória seja efêmera e o gozo, uma peça descartável. Eu
admito o que a modernidade fez com as minhas relações.
E,
sendo uma escritora, temas como amor e paixão são bem frequentes na minha
cabeça. Justamente, são lugares comuns na literatura ocidental, é um lugar
comum dizer que tratar as pessoas de maneira descartável, fazendo sexo somente
por diversão, tratando os outros como peças de coleção. É uma atitude antimoral,
quando uma mulher age assim. Anita,
provavelmente, gostaria de viver uma experiência como comercial de margarida.
Ela é machucada por uma insegurança que não conhece direito. Talvez, eu também
seja, talvez, somos parecidas. Talvez.
Eu
nunca mais a vi, mas continuei a minha coleção. Esses dias, eu namorei um gaitista que tocava blues. A cada músico
que eu conheço, invento um título novo, consigo sintetizar alguma memória, crio
novos argumentos de sedução. Acredito que bons poetas sabem seduzir uma pessoa;
às vezes, de maneira imprecisa, sem método; noutras, de maneira distraída, intelectualizando
metodologias. A sedução é uma técnica que consiste em aprisionar o leitor na
história narrada. Quando encantamos com a beleza, é fácil enganar com mentiras;
mas a beleza não sustenta a atenção do leitor por muito tempo. Ter um bom
corpo, a boca sendo fitada por boca, olhos penetrantes são coisas que ajudam
embriagar o leitor. É preciso criar modos da atenção do leitor não se desviar para
outras coisas. Seduzir é uma técnica que consiste em saber escolher as boas
palavras e saber escolher os bons silêncios.
Compreendo a Mariana, em vários pontos. Ótimo texto!
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