sábado, 18 de janeiro de 2014

O monstro permanente

Acordei desolado. Acho que porque minha rinite atacou. Acho que porque eu não sou mais o mesmo. Acho que porque não encontro uma saída, não encontro luz no fim do túnel, não encontro sol. Acordei mal, estou bem pior do que os outros dias. Por que eu estou no dia ruim? Deveria contar essa história pelo começo.
Acordei. Meus olhos fluíam desespero. A fruição, desse sentimento, contagiava minha pele, o fundo do meu estômago estourava medo. Não tinha fome, meu cabelo estava despenteado e acordei como se não tivesse dormido. Ontem, eu recebi uma notícia inesperada. Bateram na minha porta. Eu, distraído, abri e, então, um homem anônimo me disse alto e com voz imprecisa: “o seu pai morreu ontem”. 
Morreu, morreu, ele morreu. Não me recordo o que eu perguntei para o anônimo. Perguntei coisas banais (como ele estava? Que hora ele morreu? Que hospital ele tava?). Não ouvi metade das coisas que o homem anônimo me disse. Respondi calmo e sisudo, não senti nenhuma empatia por esse anônimo. Abri a porta para o homem sair e me despedi para sempre.
Há seis anos, eu não conversava com meu pai. Depois da última briga, eu jurei que nunca mais iria procurar ele.  Nunca mais procurei. A última vez que eu pisei na minha casa de novo, foi para me despedir de minha mãe. Mamãe morreu seis anos atrás, conversamos rapidamente, coisas desimportantes e outras inesquecíveis. Ela morreu porque tinha câncer, precisava morrer em paz comigo e ficou triste de não ver paz entre mim e papai. Nunca entendi direito essa necessidade que ela tinha de melhorar o relacionamento de nós dois, sempre fingi que me importava, nunca quis aceitar a possibilidade de ver alguma humanidade na figura do meu pai.
- você não vai ligar pro seu pai?
- liguei ontem
- e aí?
- (enrolando um barbante) e aí o quê? Ele não tava em casa
- filho, você devia perdoar
- vou perdoar o que? Ele que me expulsou de casa, ele agrediu você, agrediu meu irmão. Ele é um monstro. De que eu tenho que perdoar ele?
- filho, eu perdoei ele
- você perdoou ele, porque você é uma santa mãe (enrolando o dedo indicador com o barbante, Daniel esbarra sem querer nos copos e quebram)
- ei, menino, olha o que você fez, larga esse barbante aí, para de brincar com ele e vem me ajudar catar os caquinhos que você fez
- já vou mãe
- vem menino! Vem me ajudar arrumar os seus desastres
Foi a última fez que dividi o silêncio com minha mãe. Eu cortei meu dedo indicador, ela me fez curativos, perguntando todas as banalidades e dizendo gratuitamente palavras carinhosas. Minha mãe estava uma senhora fraca, manipulava as mãos com debilidade, não tinha mais forças para gritar. Era uma senhora que experimentava a doença nos últimos suspiros, ela que sempre entendeu com maestria sobre enfermos e corpo. Era uma médica, trabalhou em quase tudo que era relacionado à área da saúde. Quando eu cortei o dedo, ela me falou de novo a frase que sempre me dizia quando me machucava ou ficava doente:
- filho, o corpo precisa ficar doente, o corpo também fica forte com feridas. Você acha que os anticorpos são criados de onde? A doença é um anúncio de que a vida só se faz com luta.
Não segui a área da saúde. Nunca tive coragem de enfrentar sangue, cortes e doenças. Curiosamente, fui seguir a área do meu pai, ele era um literato e um homem boêmio. Meu pai não tinha vocação para paternidade, não poderia ter tido filhos. Às vezes, eu desejava que ele morresse. Nos meus sonhos infantis, imaginava que essa morte fosse provocada por mim. No sonho, me imaginava entrando em um bar, tomava algumas tequilas, conversava besteiras com duas ou três mulheres e, depois, todas as pessoas se transformavam em monstros e vampiros. Meu pai lutava contra todos, eu também enfrentava com fúria aquelas criaturas, enfrentávamos para defender as nossas vidas. Eu gritava assustado: “papai!papai!”. Ele tinha sido mordido por um vampiro, eu olhava arrepiado. Ele gritava para mim: “me mata!”. Eu respondia: “não!”. Meu pai vinha me atacar, eu senti ódio do ataque. Para defender a minha vida, matei meu pai. Não senti remorso com aquele assassinato, tinha matado um vampiro; mas, quando acordava, pensava: “tinha matado um vampiro, e também tinha matado meu pai”.
Acordava desolado com meus pés descalços e andava pela casa, procurando algum sinal de vida dos meus pais. Quando eu parava diante da porta do quintal, sentindo frios nos meus dedos, eu enxergava meu pai fumando. Eu tinha oito anos, essa imagem do meu pai fumando sempre ficou muito forte. Ele me via, perguntava o que tinha acontecido e eu respondia que tinha vivido um pesadelo. Minhas pernas magras chupavam o frio, meus lábios tremiam e eu quase chorava. Papai me olhava e perguntava: “você quer um cigarro?”. Eu respondia que não e ele me oferecia assim mesmo. Tragava mal, ele ria, debochando na minha cara e preparava um copo de leite quente para mim.
Papai preparava um copo de leite. Eu tomava e ele me contava os segredos do rock n’ roll e do sertanejo.
- o blues é o sertanejo norte-americano, filho (cuspindo um palito na boca). E sempre quando a gente fica triste, com medo, a gente tem que ouvir “frete”
- o que é frete pai?
- é uma música filho, a música mais bonita do mundo
Ele era sincero quando me dizia isso. Eu nunca entendi a vida do meu pai, trabalhava sempre de noite, traía minha mãe, nunca escondeu as suas traições para ninguém e fazia questão de ser um homem bruto, teimoso e estúpido. Sempre tive medo quando ele chegava em casa bêbado, amargo e furioso.  Eu tinha crescido com algumas lembranças horríveis, meu pai tinha dado como presente de aniversário para minha mãe uma cicatriz. Uma cicatriz que ficou marcada na curva da cintura. De uma das centenas de briga que presenciei entre meus pais, a briga mais marcante foi essa que aconteceu no aniversário da mamãe.
Papai tinha chegado em casa. Ele perguntou: “por que todos estão sorrindo?”. Nós não respondemos. Mamãe disse: “vocês saem daí no sofá, vão pro meu quarto”. Antes dela terminar a frase, meu pai tinha jogado uma cadeira na televisão, humilhado meu irmão mais novo, socado minha mãe no olho direito e tinha jogado um fósforo acesso perto do fogão. Eu estava do lado do fogão, brigamos e trocamos palavras estúpidas, eu protegi minha irmã e meu irmão. Ele me socou forte. O fósforo que estava acesso misturou com algumas gotas de álcool, (papai estava com uma garrafa de uísque nas mãos). A cozinha incendiou-se. Mamãe ganhou uma cicatriz, mas todos conseguiram fugir de coisa pior. Eu tinha oito anos e gritei furioso: “Monstro! Monstro!”. Mamãe chorava inconsolável, meu irmão mais novo aprendeu calar-se, cresceu mudo.
Acordei desolado. Acho que porque minha rinite atacou. Acho que porque eu mudei. Acho que porque eu nunca vou entender o que aconteceu comigo, quando aquele homem anônimo entrou em minha casa para revelar a notícia da morte do meu pai. Acordei perdido. Acordei meio solitário.
Eram seis da manhã. Fui caminhar. Pedi um café e um pão na chapa para o Ceará da padaria. Ele atendeu o meu pedido sem perguntas. De repente, eu escuto uma música. O som de cordas sempre foi atrativo para mim. “Mas quando eu lembro lá de casa, a mulher os filhos me esperando/sinto que me morde a boca de saudade/ e a lembrança me agarra e profana/ o meu tino forte de homem”. A letra e a música favorita do meu pai sendo tocada na padaria do Ceará, isso era muita coincidência ou era outro desconcerto da vida? Eu disse ao Ceará:
- essa música é o frete, né
- sim, eu adoro essa música, deu vontade de colocar pra ouvir. Já disse a você que sei tocar viola e violão
- já disse sim
- uma hora eu vou tocar pra gente aqui
- você já disse isso
- meu filho tem a sua idade e é músico. Ele estudou música. Tenho muito orgulho dele. Minha filha vai casar com um bom homem e meu filho é músico
- você já disse isso, Ceará (tomando rápido o café com um gole só)
- ele aprendeu a ouvir música por minha causa, ouviu Daniel? Ele é músico porque eu ensinei pra ele os primeiros acordes
Meu pai ensinou a dar o meu primeiro trago e ensinou a beber o meu primeiro gole de álcool. Ele também ensinou a sentir ódio de toda a humanidade. Senti inveja dos filhos do Ceará, tive vontade de fazer um desabafo, mas não senti que era apropriado. Afinal, como diria meu pai, as minhas dores são minhas dores ninguém tem nada a ver com isso. Quando me levantei, Ceará interrompeu o meu caminho e disse: “sinto muito pela morte do seu pai, fiquei sabendo com seu Chico, ele não era um homem quieto, era ligado a 220. Disseram que ele morreu assim, gritando de dor e feroz como um animal preso”.
Eu fugi. Não olhei mais para as pessoas na rua, ouvi a sentença “animal preso” e senti que essa era a melhor descrição do meu pai. Ele era um animal preso ligado a 220, senti vontade de rir, senti aperto de tristeza. Fugi das pessoas, estava descompassado para andar junto com a multidão. Entrei numa loja de violão, eu olhei um violão preto.
- quanto que é um violão?
- esse daí tá custando 220 reais, você quer ver outros?
- não quero não, muito obrigado!
Caminhei até o parque. Sentei, era um banco que eu sempre sentava quando queria fugir da minha família e dos meus amigos. Senti que eu era o homem mais sozinho do mundo, estava sem o meu pior inimigo. Não tinha mais ninguém para enfrentar, não tinha mais ninguém para odiar, não tinha mais como pedir perdão, não tinha ninguém para perdoar. Estourava no meu estômago desespero, reprimia sinais de tristeza, era desconfortante tudo isso. Não existiam (parecia) mais monstros no mundo. Meu pai estava morto, mas não foi por minha causa.
Dormi no banco. Acordei irreconhecível, tinha dormido desolado e acordava cansado. Eu era um homem banal e perdido no mundo, caminhei até o hospital e a enfermeira me perguntou: “o senhor, vai para o funeral do seu pai?” Eu respondi que sim. Fugi, entrei em casa e deitei na minha cama. Meu telefone tocou, eu não atendi; bateram na minha porta, eu não atendi; minha melhor amiga, que a considerava como irmã (eu chamava de Maria), tinha deixado um bilhete (que dizia vamos a uma festa e nos divertir hoje?”), eu joguei fora. Eu era um homem banal, perdido e desaparecido no mundo. Estava triste por causa de um monstro? Eu era um homem comum, sentia coisas que não conseguia explicar.
Deitado na cama, olhando o dia sumir e renovar. Eu decidi não ir ao funeral do meu pai. Eu sou um homem comum que não abandonou algumas amarguras da infância, fui trabalhar como se fosse um dia qualquer. Sorri duas ou três vezes, beijei na boca da minha namorada e contei algumas piadas. Revi a Mari. Fugi.

Depois de alguns anos, casei com uma mulher bonita, tive dois filhos e abandonei minha família. Viajei até o Paraguai e me tornei o mesmo monstro com minha família. Mas, eu era um monstro ausente, incompetente, inclusive para criar memórias terríveis na mente dos meus filhos. Eu era uma lacuna. 

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