sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Conversas imprecisas

Paramos no primeiro bar que encontramos no caminho. Eu e Mariana não tínhamos lugar secreto; caminhar e caminhar pelas ruas era a nossa maneira de nos escondermos do mundo. Não nos conhecíamos desde a infância, ela era uma garota banal. Eu também sou apenas um cara banal. Ela estava mais calada do que de costume, eu estava com fome e sentei na primeira mesa que encontrei. Mariana tinha olhos esguios, castanhos fortes. Às vezes, os olhos castanhos de Mariana traíam suas intenções e revelavam suas angústias com profundidade. Era uma garota encantadora, traidora dela mesma, ambígua e um tanto carente.
Mesmo assim, eu gostava dela. Me apaixonei perdidamente por todas as mulheres que já foram minhas amigas. De todas, a única que consolidei uma relação densa e singular foi com Mariana. Sentiria saudades dela, se acaso acontecesse alguma coisa que fizesse a gente se desencontrar, eu confesso que sentiria saudades de Mariana. Mas, as coisas não duram para sempre. Seria ingênuo, eu acreditar que teria Mariana sempre ao meu lado. Enquanto, ela estiver aqui, me sinto bem, Mariana sempre foi uma boa amiga para quem eu revelo assuntos tristes e angustiosos.
A nossa relação sempre foi marcada por grandes desencontros. Ela podia ficar sem falar comigo dois, três até cinco anos. Mariana não me procurava, não me ligava para perguntar como eu estava. Eu não a procurava, não sentia interesse de saber quem ela namorava ou fugia (Mariana passava mais tempo fugindo de relacionamentos amorosos). A gente, às vezes, passava meses sem conversar, quando nos encontrávamos era sempre para trocar informações banais sobre filmes, literatura, quadrinhos e dúvidas que acontecia com as nossas vidas. Ela sempre me dizia que eu tinha talento para encontrar mulheres problemáticas. Mariana não me exigia; em troca, eu também não a exigia.
- eu uso você pra não ficar sozinha e carente; e você me usa nos seus filmes, combinado, Joaquim? – dizia Mariana sorridente
Eu balançava a cabeça concordando, sempre quando ela me dizia essa frase, ríamos porque a gente sabia que havia algo verdadeiro nela. Mesmo assim, nos mantínhamos. Hoje, essa minha amiga inquieta estava muito calada, não era costumeiro esse comportamento de silêncio.  (Isso merece uma digressão: há três silêncios em Mariana: o primeiro é o silêncio do Daniel, quando ele passa, Mariana o admira, vendo a sua maneira de falar. É o silêncio de ver uma coisa que sabe que não é vista. O segundo é o silêncio inquieto de Mariana, os olhos castanhos divergem no ar, ela afunda em pensamentos contrários e perde-se para sempre. O último silêncio é esse de hoje, um silêncio oco, essa espécie de comportamento não é comum, é estranho).  Não era do feitio dela um silêncio tão profundo. Os olhos de Mariana corriam soltos pela sala, ela respirava grave, pentelhando os horizontes imensuráveis. Ela era, de fato, uma mulher bonita, mas demorou muito para perceber isso. A autocrítica dela era furiosa, às vezes, equivocada.
- que está acontecendo?
- muita coisa, não sei por onde começar
A minha comida tinha chegado, Mariana só pedira coca-cola. Eu pedi um hambúrguer com batatas fritas. Esse é um momento crucial, estava com fome, mas sempre media os meus atos. Havia dois momentos importantes para realizar o ato da alimentação; primeiramente, separava os tomates, -- (eu não gosto de tomates), -- deixando-lhes ao canto do prato; depois, eu mastigava as beiradas do hambúrguer, comia lentamente, concentrando-me no gosto, o recheio vinha aos poucos como uma surpresa; por último, tomava o guaraná e comia as batatas fritas. Mariana encarava meus atos, esperou a “dêxa” como uma atriz, esperando um momento acabar e iniciar outro novo acontecimento, Mariana preparou-se e disse:
- eu nunca tive métodos pra comer
- você não discute comigo sobre os canudinhos – eu provoquei
- eu não acho que isso é necessário, eu não ligo pra canudinhos
- bom, a Isa acha importante discutir comigo sobre isso. – dei a última mordida no hambúrguer e disse - Você não vai falar o que está acontecendo?
- vou – ela pausou um momento – , você cortou as unhas, jô?
- cortei, olha só, - eu mostrei minhas mãos – essa era minha novidade. Parei de tocar violão
- sério! Por que?
- disse pra você no telefone, eu entrei em crise, Má, eu não quero mais tocar instrumentos de cordas. As trastes! São as trastes que atrapalham os semitons.  A afinação é muito ruim!
Mariana riu, mas não era um riso de deboche. Ela podia ser tudo, mas nunca julgava ninguém, gostava de histórias estranhas e pessoas desconhecidas. Penso que ela gostava de coisas assim para escrever suas literaturas inacabáveis, a vida era como um laboratório artístico aos olhos de minha amiga inquieta. Acredito que viramos amigos por causa desse interesse estranho em comum, queríamos densar as nossas vidas, como ela gostava de dizer. Eu, na verdade, dizia simplesmente que o objetivo da minha vida era me divertir.
- reencontrei com Anita – Mariana olhou-me grave, - me decepcionei com ela. É tão estranho, você passar o resto de sua vida, querendo rever alguém. E ver se essa pessoa resolve todos os seus problemas. Mas não, ela não vai resolver nada. Ela é uma garota previsível; sonhos toscos e vontades comuns, sabe. Eu fiquei decepcionada com ela, esperava mais dela, esperava mais
- você espera demais, Má! Sabe, eu sei que vou mudar de assunto, depois você continua o raciocínio. Mas eu conheço e sei coisas sobre música, mas quando eu tento tocar na flauta, eu não consigo realizar. Eu me sinto um merda.
- tá aprendendo tocar flauta? Ah é! Você me contou no telefone? Como anda os estudos?
- agora, tô tendo tempo pra estudar, mas quando eu sei o que eu quero com a música e não consigo realizar. Eu acho tão frustrante. É tão frustrante!
- reencontros são tão desconfortantes – disse Mariana
- nem sempre, alguns são cômicos. Revi um colega da escola, ele estava correndo afoito e me disse, olhando pra mim, meio perdido. Pegou na minha mão, Má, e me disse: “eu vou ser pai”. Repetiu de novo, ainda mais afoito e perdido: “eu vou ser pai”
- ficou sabendo que aconteceu com Mau?
- ele sumiu, né! A última vez que vi ele foi no mês passado, ele passou na sua casa, né?
- passou, estava estranho. Ficou pálido quando eu disse que estava saindo com uma pessoa
- você ainda está saindo com Daniel ainda?
- ele também sumiu, falamos por telefone. Nunca mais soube notícias dele. Eu não sei, Jô, eu devia fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer, estou muito perdida e um pouco cansada de tudo isso
- viver é boring, tentar encontrar um sentido oculto nas nossas ações, conhecer pessoas, criar vínculos. É tão cansativo! Mas eu não sei, a gente não tem muita opção
- que opção a gente tem? – perguntou-me curiosa
- a única é nos manter indo –  eu respondi impreciso
- já falei pra você da minha teoria sobre a Vani dos Normais 
- não me contou não
-  Joaquim, a Vani é uma mulher gostosa, sexy e tesuda, mas a aparência dela não condiz com a essência dela. Ela é uma mulher frustrada, porque ela se comporta como uma Beyoncé, mas não tem peitos e nem bunda, por isso, que a gente ri dela. Porque ela não é concretamente quem ela diz ser
- faz sentido – eu ri – ela é Beyoncé com corpo de Vani
- isso! Por exemplo, no filme Os normais 2 , não tem uma cena que ela está com vestido vermelho, atravessando o corredor do hospital, sensualizando total pra todos os médicos. A música de fundo é Me deixas louca na voz de Elis Regina. Você lembra dessa cena?
- lembro sim
- eu cheguei nessa teoria por causa dessa cena. Vani é uma heroína gostosa na essência, mas isso não é coerente com a aparência. Por isso, a gente ri dela. Vani é uma gostosa frustrada. Na verdade, a gente ri por causa dessa frustração. Eu adoro a Vani.
- bom, eu te disse – eu encarei os olhos da Mariana, - eu te disse que a gente só gosta de gente estranha
- não me coloca no meio do jogo, você que arruma mulheres problemáticas, você tem antena pra isso, Joaquim
- e você precisa se apaixonar, - ela encarou-me e eu reiterei o raciocínio -, eu não gosto, quando eu me sinto apaixonado e você não. Me sinto bêbado e sinto que você tá rindo de mim
Mariana não me respondeu, olhou-me confusa e disse:
- estou escrevendo novos contos
- sobre o que?
- sobre os desajustados, acho que vai ser os piores contos da minha vida
- você é engraçada, Mariana, quando você terminar, me dê, eu quero ler
- tudo bem, eu dou sim
Quando eu saí daquele bar, passei dois anos sem rever Mariana. Não sei como ela ficou. Eu estou triste, fiquei sozinho esses tempos. Estava apaixonado, mas levei um pé na bunda, Mariana conversou comigo ao telefone mês passado.
- que aconteceu? – perguntou Mariana
- Cândida sumiu, me deu um pé na bunda
- que aconteceu?
- eu não sei, acho que ela ficou com medo, sei lá, ela não me deu satisfação. Só sumiu, não atende nenhuma ligação minha
- Cândida era aquela menina que tinha síndrome do pânico, não gostava de sair de casa e era muda
- era ela sim, era uma menina tão linda, você ia gostar dela, Má. Ela sumiu
- todo mundo decepciona alguém, é normal que isso aconteça. Não é assim que você fala, talvez, ela seja uma pessoa que pode valer a pena sentir saudades
- eu falo sim, mas eu, agora, nesse momento, eu tô um pouco puto com ela, eu sei que vai passar. Mas ainda estou puto com ela

Essa foi o último diálogo que tive com minha amiga. Em todo caso, Mariana não era um reencontro desconfortante, era uma presença carinhosa que sempre me agradou. Eu não reencontrei Cândida, sinto saudades da presença silenciosa dela, foi uma pessoa que valeu a pena sentir saudades. Cândida foi uma lacuna. Mariana me disse que amores interrompidos são sempre furiosos e que a gente é preenchido também por lacunas. Entrei no último bar que conversamos, estava sozinho, comi um lanche. Não reencontrei ninguém. No bar, usando minha metodologia para comer um lanche, vi uma cena emocionante na minha frente, um homem abraçando outro homem, eram dois íntimos que não se viam por causa do curso do tempo. Pensei: “os reencontros em São Paulo são imprevisíveis”. 

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