Maurício
era um rapaz comum, frequentava reuniões do movimento estudantil e era adepto
dos ideias do comunismo. Ele estudava economia, mas estava em crise em relação
a sua profissão. Era um homem sozinho, só tinha uma vó esquizofrênica como
parente viva. Naquele dia, ele tinha visitado Mariana, gostava dela para falar
besteiras e despreocupar-se com as decisões futuras. Ela era uma mulher
sensível, tinha uma capacidade de tranquilizá-lo quando precisava. Maurício
abraçava o corpo miúdo de sua amiga e sempre dizia: “você sempre diz o
que é preciso ouvir na hora que é preciso dizer. Acho que é um dom que você
tem”.
Entretanto,
Maurício foi até a casa de sua amiga. Apertou a campainha, chamou o nome dela e
Mariana não estava em casa. Ele se sentiu abandonado, caminhou perdido pelas
ruas e percebeu que a cidade tinha mudado muito depois desses três anos. A casa
das flores vermelhas, que existia na infância dele, tinha sido demolida uns
cinco meses atrás para construir um prédio da empresa Delta. Pensou: “Lucros
imobiliários! Lucros imobiliários!”. Maurício, (Mau como era chamado por
Joaquim e Mariana), se sentia enforcado por muita angústia e era um dia, mais
do que os outros dias, que ele precisava muito conversar com Mariana. Caminhou,
então, hoje seria um dia que teria que suportar a companhia da própria sombra. Há
meses, não se suportava como humano.
-
me dê uma dose de conhaque com mel
-
é só isso – disse o dono do bar
-
só isso – respondeu Maurício
Um
miserável, sedento e imundo, sentava ao lado do jovem estudante. Era um homem
porco, limpava o nariz com a manga da camisa, banhava-se com álcool. Brincava
com canivete, trocando o instrumento de uma mão para outra, uma mão para outra,
uma mão e outra mão. Assim, em movimentos repetitivos, ritmos rápidos, lentos,
o homem mais desgraçado do bar brincava com a arma como uma criança brinca com
fogo, sorrindo. Maurício fingiu não se importar com o cheiro do miserável,
estava autocentrado em suas angústias, sentia saudades do riso de Mariana. Onde
será que ela estava agora? Perguntou-se.
-
é mulher – disse o desgraçado
-
oi?
-
um homem com esses olhos sofre e – ele cuspiu no chão – e quando sofre assim é
dor de corno ou morte de mãe
-
minha mãe morreu já faz algum tempo já
-
então, é mulher mesmo, garoto?
-
não, é uma amiga, sinto saudades dela, só isso
-
é casada?
-
não
-
namora um amigo seu?
-
não
-
é feia?
-
não. É uma das minhas melhores amigas!
-
são as piores – o miserável sorriu como um velho sedento de ódio – as amigas
são aquelas que mais machucam o coração
-
não estou assim por causa de Mariana – Maurício falou rápido, tentado desviar
do diálogo. Bebeu o resto do conhaque com um gole só.
-
isso menino! Isso menino! Você faz o que da vida?
-
sou estudante
-
e estuda o que?
-
economia
-
então você é rico? Tem como me emprestar dinheiro pra pagar mais bebidas pra eu
e você. Pera! Pera, garoto, fica aqui. Me escuta. Eu sei que você não quer me
escutar, ninguém quer me escutar. Você sequer está disposto começar uma
conversa comigo? Eu te imploro, senta aqui, não vai embora. Pague mais duas bebidas,
converse um pouco comigo
Maurício
sentou-se ao lado do homem, como se senta perto de um filhote que está perto da
morte e o único sentimento urgente é a pena. O jovem
estudante sentiu muito pena do miserável, pensou que conversar com esse velho,
talvez, fosse um ato de generosidade. Pediu mais bebidas.
-
você sente pena de mim? – um sorriso malicioso apareceu no rosto do miserável –
pode falar. Você sente pena de mim? Diz pra mim, só responda sim ou não. Sente
pena de mim?
- sim
-
eu sou um homem pobre, garoto. Não, eu não sou só um homem pobre. Eu sou um
homem miserável. Você já conheceu um homem miserável? Um homem que faz coisas
que não são dignas? Já conheceu? É de se ver que não conheceu. Eu sou um homem
desgraçado que também é pobre. É possível ser pobre e não ser desgraçado ao
mesmo tempo?
Maurício
não respondeu, bebeu mais um pouco de conhaque.
-
é possível, garoto. Minha mãe era uma mulher pobre, você parece um garoto
pobre, essas pessoas daqui são pessoas pobres. Ser pobre não é o mesmo que ser
miserável. Ser miserável é algo que você, garoto, não consegue imaginar. Você
ri? Você ri de mim, garoto? Isso, menino, a tragédia dos outros é muito
engraçada não?
Maurício
engoliu desconforto, não riu mais, permaneceu calado.
-
você não é da política, né? Como é que falam? Você não é um desses bostinhas
revolucionários, é? Militante, não é assim que falam?
-
sou comunista
O
velho soltou uma gargalhada, pediu outro conhaque.
-
pode por na conta desse garoto aqui, ele vai pagar tudo. Não sei por que,
garoto, não sei qual é o motivo, mas gostei de você. E porque eu gostei de
você, vou falar algumas coisas. Você quer mudar o mundo?
-
quero
-
quer acabar com a miséria do povo?
-
quero
-
quer fazer alguma coisa importante da sua vida?
-
quero
-
então, não seja um homem romântico. Vai por mim, na minha época, os homens
românticos eram os primeiros covardes que morriam ou fugiam. Pobres não se
encontram em estatísticas, garoto. Você entendeu?
-
acho que sim
-
não romantiza os pobres. Eles são mais espertos do que os chefões imagina. Né não,
chefe, traz outra aqui? O garoto paga, não paga, garoto?
-
pode trazer mais uma. Só posso pagar mais uma
-
não se preocupe – o velho beijou o jovem Maurício – não se preocupe,
garoto, você tem um futuro brilhante. Não desperdice com sofrimentos efêmeros. Você
ainda não sabe o que é sofrimento. Você já trepou com uma mulher bonita?
Maurício
enrubesceu, encolheu-se e escondeu a cabeça.
-
você é um garoto ainda? Um garoto virgem? – o miserável apoiou a mão esquerda
no ombro do garoto – um menininho virgem que bebe conhaque? Os militantes de
esquerda não mudaram muito nos tempos de hoje. As coisas parecem que só mudaram
de roupa, mas continuam as mesmas
-
eu já tive uma garota
-
já
-
já vi uma garota nua
-
olha! – o velho sorriu – isso não é um grande passo, né! Menino, vai trepar com
mulheres bonitas, não desperdice a sua vida querendo mudar um mundo que não
quer ser mudado. Os pobres não são anjos caídos do céu, e todos nós, garoto,
todos nós temos os nossos dias, você me entende? Aquele dia que a gente faz uma
coisa e na verdade quer fazer outra. Que mal me pergunte? Quantos anos você
tem?
-
dezenove anos
-
é um jovem bonito, é um jovem bonito
O
velho miserável caiu no chão de tão bêbado. Maurício ajudou o velho
levantar-se, colocando em uma cadeira. O homem desgraçado não falava mais
palavras com nexo, ele xingava todos que encontrassem o seu caminho. Maurício
abandonou o velho miserável naquele bar, solitário e pequeno, repousado no
silêncio dos embriagados.
No
dia seguinte, Maurício encontrou Mariana. Ela estava mais encantadora do que
nunca, sorriu aprisionando o jovem estudante naquela alegria esfuziante. Ele
tinha sonhado com a sua amiga, estava aliviado por encontrar uma alma íntima.
Mariana sorriu e disse:
-
que aconteceu?
-
eu te procurei ontem, encontrei um velho no bar que me falou coisas estranhas,
Mari, era um velho miserável. Mas você está tão linda, parece até que aconteceu
algo maravilhoso com você ontem?
-
e aconteceu, mas não quero falar
-
por que? Aprontou alguma coisa?
-
não aprontei nada – Mariana estapeou o ombro de Maurício – é que não é nada
demais, Mau, é uma coisa sem importância
-
bom, uma hora que quiser conta, eu vou estar pronto pra ouvir. Mas queria tanto
conversar com você, Mari, tanto e agora...
-
agora não quer mais?
-
não é isso, parece que agora não importa mais, entende? Parece que passou –
Maurício engoliu as bolachas com manteiga.
-
bom, isso é bom não é? Quando eu te liguei você tava tão aflito e angustiado
-
e você parece que está tão feliz, mais feliz do que nunca
-
eu conheci uma pessoa
Maurício
mudou a expressão do rosto completamente, ficou branco, engoliu os restos das
bolachas com pressa. Mariana não parava de sorrir, mostrando a felicidade
exótica que exibia nas bochechas. O jovem estudante decidiu que não ia mais
encontrar Mariana a partir daquele dia, seria a última vez que ele veria a
Mariana sorrir assim por causa de outro homem. Sentiu vontade de matar, sentiu
ânsia de cometer um homicídio, ficou enciumado.
-
eu acho que vou embora – disse Maurício
-
mas já? – respondeu Mariana
-
já
Maurício
pegou a sua blusa, vestiu e caminhou até porta. Ele deu um último beijo no
rosto de sua melhor amiga e foi embora. Mariana nunca mais viu Maurício de
novo, nunca mais encontrou vestígios da presença dele na cidade. A última
notícia que soube de Maurício era que tinha se formado na faculdade com
excelentes notas e bons créditos. Era um homem decente e trabalhador, namorava
uma mulher linda, diziam as más línguas que era um homem possessivo e
controlador de suas namoradas.
Numa
manhã, Mariana comendo bolachas com manteiga e um pouco de leite, assistindo um
programa sensacionalista de crimes. Viu um rosto conhecido, escondendo-se das
câmaras de televisão. Uma foto 3x4 mostrava uma figura envelhecida, escandalizada
por lentes selvagens da câmara, olhos carinhosos, um rosto coberto por uma
barba, era Maurício. Ele era suspeito de um crime passional, tinha matado a
mulher com uma faca no coração, guardando as peles da esposa nas gavetas do
amante e o coração tinha oferecido para o cachorro. O amante tinha sido
misteriosamente atropelado. Maurício, na televisão, escondendo-se como um rato
assustado, olhava do mesmo jeito. Mariana sentiu pena, ela engoliu o leite,
saiu para trabalhar perturbada. Eles não eram mais as mesmas pessoas.
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