domingo, 2 de fevereiro de 2014

Romance interrompido

Estavam os dois distraídos, sentaram em cadeiras opostas. Mariana estava profunda e escreveu com os dois polegares um sms ao Joaquim dizendo: “vi aquele filme que você me indicou Fallen Angels, fiquei impressionada como você me conhece mesmo. O filme é excelente!”. Daniel estava perdido, era um homem banal e impreciso, mandou um sms para noiva Priscila: “eu te amo, mas preciso descansar. Depois eu passo na sua casa e juro que teremos um tempo pra nós dois”.
Ela olhou para frente, ele olhou para trás. Os dois olhares perdidos se cruzaram e, rapidamente, se identificaram. Mariana estremeceu, reconheceu o rosto de Daniel. Não usava mais cabelos longos, tinha pelos no rosto e parecia olhar as coisas com menos certeza que antes. Sentiu vontade de virar uma formiga e sair de fininho por entre as mesas, ela permaneceu intacta e os olhos atentos focaram na miragem de Daniel. Era apenas Daniel, uma memória ambulante dos seus primeiros desastres; um homem banal vendo uma mulher banal.
- como vai? – Daniel perguntou
- eu vou bem – Mariana respondeu
Ficaram séculos em silêncio.
- fiquei sabendo da morte do seu pai – ela disse
- pois é, - ele respondeu, - foi uma notícia estúpida no meio da tarde. Já recebeu uma notícia estúpida no meio da tarde?
- não, eu nunca recebi notícias estúpidas
- você tá ótima, tá linda! – ele elogiou confuso
- você também!
- você não quer sentar aqui do meu lado?
- eu acho que não vou ter tempo, vou encontrar uns amigos. Mas foi um prazer te rever, depois, a gente marca alguma coisa. A gente conversa sobre as coisas, a gente fala sobre tudo que nos aconteceu
- tem certeza?
- tenho sim, tchau
- até!
- até mais!
Mariana não tinha nenhum amigo para rever. Caminhou até o parque, sentou e teve uma lembrança, lembrou-se de um velho. Ele -- (o velho do banco) -- disse que ela, um dia, receberia uma notícia estúpida e debochou dela, quando tinha falado que queria ser escritora. Não lembrava o rosto do velho do banco, só conseguia relembrar o tom de voz rouco e as mãos debilitadas do homem. Era um velho sozinho, precisava conversar com qualquer um, ela era uma alma disposta a ouvir. Mariana ouviu o velho do banco.
Daniel reativou a memória da infância, lembrou-se de Mariana.  Eles não eram mais amigos. Daniel -- (o moço confuso) -- não conhecia mais os livros favoritos dela, não sabia mais os interesses que ela guardava como futuro. O que será que tinha acontecido com Mariana? Esse moço confuso despreocupou-se, estava autocentrado demais com suas angústias. Era uma ilha de emoções fortes. Caminhando até o parque, viu Mariana perplexa e sentou ao lado dela.
- você está aqui? – disse Daniel
- era pra eu ter fugido – respondeu Mariana
- não fugiu?
- Daniel, você para mim era um mito
- o meu pai pra mim era um monstro
- isso tem alguma relação?
- acho que sim. Acho que os monstros e os mitos são mais parecidos do que a gente imagina. Ou não. – Daniel riu.
- eu sempre achei de péssimo gosto os heróis
- você é uma garota estranha, Mari – Daniel sorriu
- sempre achei. Não ri de mim. Eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, eu tenho uma teoria. Uma teoria que criei vendo Kill Bill
- pode contar
- o herói aristotélico é caracterizado por realizar algo que ofende os deuses. Ele realiza o que chamamos de Hybris, eu acho, pelo menos, eu lembro assim. Então, Daniel, o raciocínio é o seguinte
- você pretende chegar em algum lugar com isso?
- pretendo; me escuta. Beatriz Kido cumpre a sua vingança, não é mesmo? Mas todos os heróis precisam de consciência.  Toda a consciência dos heróis trágicos é firmada na virtude. O que caracteriza o surgimento da Hybris é um ato de ignorância ou um ato de arrogância diante dos deuses ou do seu próprio destino. Algo que passa da medida; um desequilíbrio.
- os heróis montam uma tradição? – disse Daniel
- montam sim.  Mas um herói, para Tarantino, é o equivalente a um assassino. Me recordo sempre de uma música do Tom Zé, uma pergunta que aparece: “com quantas mortes no peito se faz uma tradição?”. Um herói e um assassino é a mesma coia. Por isso que eu sempre falo pro Jô; Joaquim é o meu melhor amigo, ele é um louco, mas ele é meu amigo; eu sempre falo pra ele que se densa a vida também com lacunas
- bom, é de péssimo gosto mesmo um herói. Eles matam muito gente em nome de uma tradição
- os assassinos também, entende? No caso do filme Kill Bill, Kido mata o Bill. Os heróis precisam de alter ego, não é mesmo? O Peter Park é o alter ego do Homem Aranha.  O alter ego do Bruce é o Batman. O alter ego do Clark Kent é o Superman. O alter ego de Clarience, do filme True Romance do Tarantino, é o Elvis Presley. Bom, eu te pergunto. Quem é o alter ego da Kido do Kill Bill?
- eu não sei
- bom, ela é uma heroína, ela segue uma tradição e tem todas as características de uma heroína. Mas, falta um alter ego, não é mesmo?
- bom, não faço a mínima ideia  do alter ego dela
- o Bill
- o Bill?
- isso, o filme é uma saga lunática para matar Bill. Mas é o Bill que ensina como matar ele próprio. Ou seja, você entende, que a grande sacada é essa! O filme Kill Bill é um assassinato do alter ego do herói
- O que isso tem a ver comigo?
- eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, mas como eu não sou uma pessoa coerente. Eu sempre criei heróis, sempre cultivei mitos e sempre desejei que eles falassem o que eu devia fazer. Você é o Daniel, não é um homem qualquer, eu sempre fui apaixonada por você
- por mim?
- sim. Você é um homem feio, mas sempre me atraiu. Mas você também me chutou, não é mesmo?
- chutei sim
- você ficou na minha cabeça, acho que você sempre vai ficar. Eu sempre coloquei você em um patamar maior que eu. E te vendo de novo, eu não sei o que fazer, acho que ainda coloco você como um herói
- você me acha um arrogante, não?
- eu falo demais
- e fala pra mim que ainda é apaixonada por mim
- não por você
- não por mim?
- não! Eu sou apaixonada pela lembrança que eu tinha da gente
- mas a gente não é mais a gente de antes, Má
Mariana olhou Daniel. Ambos estavam perdidos. Mariana percebeu que não poderia retomar nenhum vínculo com esse rapaz, sentiu inconformada e abraçou Daniel como se ele morresse. Despediu-se e foi para casa.
Passaram dez anos. Daniel iria casar com outra mulher e seria pai. Caminhou até a antiga casa que eram dos pais de Mariana, estava ansioso para reencontrá-la, quando perguntou:
- onde está Mariana?
- você não ficou sabendo, Daniel?
- o que?
- ela foi atropelada quando voltava do trabalho, ela sempre andou distraída com as coisas
- quando que foi isso?
- já faz dois meses

Daniel sentou-se no mesmo banco que reencontrou Mariana. Sentiu que algo tinha sido perdido para sempre. Casou duas semanas depois, nunca mais procurou vestígios concretos de sua velha desconhecida. Mariana era uma presença minguante, bagunçava seus medos e lhe deu uma noção de efemeridade das coisas. Daniel sentiu medo de perder as coisas preciosas, sentiu vontade de ligar para todos os seus amigos, ficou perplexo. Ele se sentiu como um homem banal e teve medo da solidão. Esse moço confuso nunca se recuperou, quando voltou para casa, foi assaltado andando na rua e dormiu numa cama como um homem banal. Acordou como um homem banal, casou-se como um homem banal, teve filhos como homem banal, divorciou-se como um homem banal.  E anônimo, entristeceu como uma figura impossível. 

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