Estavam
os dois distraídos, sentaram em cadeiras opostas. Mariana estava profunda e
escreveu com os dois polegares um sms ao Joaquim dizendo: “vi aquele filme que
você me indicou Fallen Angels, fiquei
impressionada como você me conhece mesmo. O filme é excelente!”. Daniel estava
perdido, era um homem banal e impreciso, mandou um sms para noiva Priscila: “eu
te amo, mas preciso descansar. Depois eu passo na sua casa e juro que teremos
um tempo pra nós dois”.
Ela
olhou para frente, ele olhou para trás. Os dois olhares perdidos se cruzaram e,
rapidamente, se identificaram. Mariana estremeceu, reconheceu o rosto de
Daniel. Não usava mais cabelos longos, tinha pelos no rosto e parecia olhar as
coisas com menos certeza que antes. Sentiu vontade de virar uma formiga e sair
de fininho por entre as mesas, ela permaneceu intacta e os olhos atentos
focaram na miragem de Daniel. Era apenas Daniel, uma memória ambulante dos seus
primeiros desastres; um homem banal vendo uma mulher banal.
-
como vai? – Daniel perguntou
-
eu vou bem – Mariana respondeu
Ficaram
séculos em silêncio.
-
fiquei sabendo da morte do seu pai – ela disse
-
pois é, - ele respondeu, - foi uma notícia estúpida no meio da tarde. Já
recebeu uma notícia estúpida no meio da tarde?
-
não, eu nunca recebi notícias estúpidas
-
você tá ótima, tá linda! – ele elogiou confuso
-
você também!
-
você não quer sentar aqui do meu lado?
-
eu acho que não vou ter tempo, vou encontrar uns amigos. Mas foi um prazer te
rever, depois, a gente marca alguma coisa. A gente conversa sobre as coisas, a
gente fala sobre tudo que nos aconteceu
-
tem certeza?
-
tenho sim, tchau
-
até!
-
até mais!
Mariana
não tinha nenhum amigo para rever. Caminhou até o parque, sentou e teve uma
lembrança, lembrou-se de um velho. Ele -- (o velho do banco) -- disse que ela,
um dia, receberia uma notícia estúpida e debochou dela, quando tinha falado que
queria ser escritora. Não lembrava o rosto do velho do banco, só conseguia
relembrar o tom de voz rouco e as mãos debilitadas do homem. Era um velho
sozinho, precisava conversar com qualquer um, ela era uma alma disposta a
ouvir. Mariana ouviu o velho do banco.
Daniel
reativou a memória da infância, lembrou-se de Mariana. Eles não eram mais amigos. Daniel -- (o moço
confuso) -- não conhecia mais os livros favoritos dela, não sabia mais os
interesses que ela guardava como futuro. O que será que tinha acontecido com
Mariana? Esse moço confuso despreocupou-se, estava autocentrado demais com suas
angústias. Era uma ilha de emoções fortes. Caminhando até o parque, viu Mariana
perplexa e sentou ao lado dela.
-
você está aqui? – disse Daniel
-
era pra eu ter fugido – respondeu Mariana
-
não fugiu?
-
Daniel, você para mim era um mito
-
o meu pai pra mim era um monstro
-
isso tem alguma relação?
-
acho que sim. Acho que os monstros e os mitos são mais parecidos do que a gente
imagina. Ou não. – Daniel riu.
-
eu sempre achei de péssimo gosto os heróis
-
você é uma garota estranha, Mari – Daniel sorriu
-
sempre achei. Não ri de mim. Eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, eu
tenho uma teoria. Uma teoria que criei vendo Kill Bill
-
pode contar
-
o herói aristotélico é caracterizado por realizar algo que ofende os deuses.
Ele realiza o que chamamos de Hybris,
eu acho, pelo menos, eu lembro assim. Então, Daniel, o raciocínio é o seguinte
-
você pretende chegar em algum lugar com isso?
-
pretendo; me escuta. Beatriz Kido cumpre a sua vingança, não é mesmo? Mas todos
os heróis precisam de consciência. Toda a
consciência dos heróis trágicos é firmada na virtude. O que caracteriza o
surgimento da Hybris é um ato de ignorância ou um ato de arrogância diante dos
deuses ou do seu próprio destino. Algo que passa da medida; um desequilíbrio.
-
os heróis montam uma tradição? – disse Daniel
-
montam sim. Mas um herói, para Tarantino,
é o equivalente a um assassino. Me recordo sempre de uma música do Tom Zé, uma
pergunta que aparece: “com quantas mortes no peito se faz uma tradição?”. Um
herói e um assassino é a mesma coia. Por isso que eu sempre falo pro Jô;
Joaquim é o meu melhor amigo, ele é um louco, mas ele é meu amigo; eu sempre
falo pra ele que se densa a vida também com lacunas
-
bom, é de péssimo gosto mesmo um herói. Eles matam muito gente em nome de uma
tradição
-
os assassinos também, entende? No caso do filme Kill Bill, Kido mata o Bill. Os heróis precisam de alter ego, não é
mesmo? O Peter Park é o alter ego do Homem Aranha. O alter ego do Bruce é o Batman. O alter ego
do Clark Kent é o Superman. O alter ego de Clarience, do filme True Romance do Tarantino, é o Elvis
Presley. Bom, eu te pergunto. Quem é o alter ego da Kido do Kill Bill?
-
eu não sei
-
bom, ela é uma heroína, ela segue uma tradição e tem todas as características
de uma heroína. Mas, falta um alter ego, não é mesmo?
-
bom, não faço a mínima ideia do alter ego dela
-
o Bill
-
o Bill?
-
isso, o filme é uma saga lunática para matar Bill. Mas é o Bill que ensina como
matar ele próprio. Ou seja, você entende, que a grande sacada é essa! O filme
Kill Bill é um assassinato do alter ego do herói
-
O que isso tem a ver comigo?
-
eu sempre achei de péssimo gosto os heróis, mas como eu não sou uma pessoa
coerente. Eu sempre criei heróis, sempre cultivei mitos e sempre desejei que
eles falassem o que eu devia fazer. Você é o Daniel, não é um homem qualquer,
eu sempre fui apaixonada por você
-
por mim?
-
sim. Você é um homem feio, mas sempre me atraiu. Mas você também me chutou, não
é mesmo?
-
chutei sim
-
você ficou na minha cabeça, acho que você sempre vai ficar. Eu sempre coloquei
você em um patamar maior que eu. E te vendo de novo, eu não sei o que fazer,
acho que ainda coloco você como um herói
-
você me acha um arrogante, não?
-
eu falo demais
-
e fala pra mim que ainda é apaixonada por mim
-
não por você
-
não por mim?
-
não! Eu sou apaixonada pela lembrança que eu tinha da gente
-
mas a gente não é mais a gente de antes, Má
Mariana
olhou Daniel. Ambos estavam perdidos. Mariana percebeu que não poderia retomar nenhum
vínculo com esse rapaz, sentiu inconformada e abraçou Daniel como se ele
morresse. Despediu-se e foi para casa.
Passaram
dez anos. Daniel iria casar com outra mulher e seria pai. Caminhou até a antiga casa que
eram dos pais de Mariana, estava ansioso para reencontrá-la, quando perguntou:
-
onde está Mariana?
-
você não ficou sabendo, Daniel?
-
o que?
-
ela foi atropelada quando voltava do trabalho, ela sempre andou distraída com
as coisas
-
quando que foi isso?
-
já faz dois meses
Daniel
sentou-se no mesmo banco que reencontrou Mariana. Sentiu que algo tinha sido
perdido para sempre. Casou duas semanas depois, nunca mais procurou vestígios
concretos de sua velha desconhecida. Mariana era uma presença minguante,
bagunçava seus medos e lhe deu uma noção de efemeridade das coisas. Daniel sentiu medo de perder as coisas
preciosas, sentiu vontade de ligar para todos os seus amigos, ficou perplexo.
Ele se sentiu como um homem banal e teve medo da solidão. Esse moço confuso
nunca se recuperou, quando voltou para casa, foi assaltado andando na rua e dormiu numa cama como um homem banal. Acordou como um homem banal, casou-se como um homem banal,
teve filhos como homem banal, divorciou-se como um homem banal. E anônimo, entristeceu como uma figura
impossível.
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