quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A colecionadora de músicos

Tenho poucos amigos escritores. Na verdade, intimidade mesmo com amigos artistas, eu tenho com três. Às vezes, quando preciso muito, converso sobre o meu processo de escrita com eles (Joaquim, Maurício e Clarice). Sempre escrevi diários desde criança, é uma forma de não perder o que me acontece e encontrar as amarras da minha vida. Com poucos amigos artistas, conversas, sobre processos de escrita, os livros e a arte em geral, ficam muito restritas; (na verdade, esse tipo de conversa quando estamos imersos na banalidade é quase uma raridade). É difícil conversar sobre isso sem causar espanto; como se os artistas fossem algo incompreensível, um vírus HIV, um mago, um marciano e etc.
Não gosto do olhar que causo quando começo falar de prosa, da dificuldade de escrever e da ideia que tenho do mundo. Eu não me considero a melhor pessoa do mundo, não estou numa Torre de Marfim e, ao mesmo tempo, me sinto responsável pelo mundo. Fico perdida, não sei como agir. Não gosto de falar de arte, quando estou perto das pessoas, evito assuntos assim; o que é curioso, é que a arte sempre foi a minha vida, é o caminho que percorri para encontrar a expressão da minha individualidade. Quando eu falo isso, não quero parecer uma pessoa que sofreu muito, porque não conheço sofrimento; eu acho que me diverti bastante. Mas quero dizer que alguma coisa incomum acontece quando nós, artistas, falamos de arte, é comum uma sensação de estranhamento entre a multidão.
Queria dividir meu processo de escrita com artistas como vocês. Por isso, vou contar alguns pensamentos que guardo na minha cabeça. Vou contar para vocês como se contassem para os meus amigos, vou tratar vocês com alguma intimidade. Eu moro em São Paulo, desde que eu me conheço por gente, a cidade e as diferenças sempre fizeram parte da minha trajetória. Quando eu escuto minha mãe falar do nordeste e do meu pai falar do Paraná, é o mesmo que ouvir histórias de gregos, não consigo ter nenhuma relação com isso. Sou uma pessoa sem raízes.
Certa vez, conversando com um conhecido, ele me disse:
- Mariana, eu li, uma vez, um artigo sobre os filhos de migrantes, dizem que nós temos saudades de um lugar que não conhecemos
Ele era um artista que não tinha intimidade comigo, o nome dele não importa. Mas isso ajuda vocês, artistas, entenderem um pouco sobre mim. Eu escrevo sobre a cidade, escrevo sobre pessoas sem raízes, sobre relações efêmeras e feiura. Sei que há diferença entre morar em São Paulo, Ceará e Paraná. Quando conheci essas três cidades, logo percebi que a cidade, que eu tive na minha infância, era feia. E, diferentemente das crianças do nordeste ou das crianças de “pé vermelho do Paraná”, eu inventava as minhas brincadeiras no Shopping Center. Esse espaço foi um lugar lúdico, o que é algo de um tremendo mau gosto em comparação a infância pobre e miserável da minha mãe e do meu pai; às vezes, eu pensava: “podia ter tido tudo que eu poderia ter tido, mas a infância deles tiveram mais. Eles tiveram barro, sol, ar livre e terra de verdade. E vieram pra cá, morar aqui, morar em São Paulo”.
O Shopping Center é também um espaço de memória. Quando eu tinha uns seis anos, eu sonhava fugir e morar para sempre no Shopping D.. Depois de alguns anos, conclui que a minha vida sempre foi um culto ao império da decadência, da quantidade e do consumo incessante. Na adolescência, entre 13 e 14 anos, eu comecei a minha coleção. Namorei o meu primeiro violeiro, depois, namorei um baixista e fui namorando outros músicos no caminho. Já vou explicar devagar, calma, meus queridos artistas, vou explicar com calma.
Há pouco tempo, reencontrei uma amiga chamada Anita, ela sempre foi uma menina bonita. Era uma moça um pouco tímida, muito religiosa e criamos um vínculo quando estávamos na puberdade. Anita, um dia, me disse:
- só considero namoro algo com mais de dois anos
- bom, eu prefiro a palavra “namorar” do que a palavra “ficar”, mas, às vezes, eu uso a palavra ficante. Nunca achei elegante essa palavra, mas às vezes eu uso. Fazer o quê? Isso foi invenção da nossa geração – eu respondi.
Eu tenho mania de listas, escrevo listas para tudo. E, com namorados, a minha lista é mental, nunca escrevi no meu diário. Eu diria até que tenho uma metodologia, critério, esquemas e teorias sobre isso. Já vou explicar, artistas, já vou explicar. A minha coleção começou quando eu tinha 13 anos (mais ou menos!), namorei um menino chamado Robério, cabelo ruivo, olhos castanhos, tocava violão e guitarra. Era um menino gentil, gostava de rock brasileiro, não entendia muito de música, tocava rápido, conhecia poucas referências musicais. Era meio tonto, mas era bonito.
Desde então, estabeleci parâmetros: meus namoros não duram mais de dois meses; namoro somente músicos; preciso fugir de todos. Por que músicos? Estou firmada em um desejo que não realizei, queria ser musicista ou cientista quando criança, no entanto, não servi para estudar química e não tinha paciência para estudar teoria musical. Pode ser qualquer tipo de músico? Como toda e qualquer coleção, sempre há aquelas peças mais valiosas.  As minhas peças valiosas são: 1) um violeiro que toca a escola do violão brasileiro (Rafael Rabelo, Dilermando Reis e Baden Powell), sempre achei que as mãos de um violeiro quando toca esse estilo fossem hábeis e livres; 2) um pianista que entendesse de impressionismo francês e tocasse Debussy, isso sempre foi sonho de criança. Sempre fui apaixonada pela figura mítica dos românticos de um pianista triste, sozinho, que sonha com uma musa; 3) um gaitista que tocasse clássicos do Blues.
Meu melhor amigo é um ex-músico, sempre dedicou a sua vida aos instrumentos de cordas. Ele nunca soube dos meus métodos, critérios e invenções literárias que estabeleci por conta dessa coleção. Na verdade, Joaquim não sabe dessa coleção, ele só ri dessa minha preferência por músicos. Ele tira sarro de mim e me chama de tiete.
De qualquer maneira, é estranho falar assim, meus queridos artistas, a minha coleção e o meu processo de escrita estão conectados. É, basicamente, a mesma coisa que acontece quando eu conheço um músico. Ele está com o instrumento, tocando, eu o vejo, distraído, em seguida, me interesso; o meu nível de interesse cresce por causa das músicas, se eu escuto uma música que me apaixona e me afeta, pode ser um sinal de romance imediato. (Muitas vezes, -- isso é uma pausa, -- eu conheci músicos tão medíocres que, na minha cabeça, eu pensava. Nossa! Esse cara toca um instrumento, mas eu entendo mais de música do que ele. Óbvio! Eu nunca falei isso para eles, os músicos usam a música para chamar as meninas, não vou abalar o ego frágil deles). Eu beijo, converso, encanto, seduzo e, depois, simplesmente, abandono. Não sofro quando abandono alguém, eu desapareço com muita facilidade.
Todos os músicos acontecem por acaso. A relação mais curta que eu tive foi com violeiro do Vila Lobos (era assim que eu o chamava), conheci-o ensaiando a música "Trenzinho Caipira", fiquei apaixonada rapidamente. Conversamos, beijamos e, depois, semanas seguintes, não nos vimos mais. A relação mais larga foi com o guitarrista libriano, ele sempre me encarou quando passava em frente a loja de instrumentos que trabalhava; quando eu quis, ele também; depois, abandonei-o simplesmente. Na minha lista de músicos, as figuras mais dominantes são guitarristas, violeiros e baixistas. Isso significa que já conheci bons músicos, outros medíocres e alguns irrelevantes.
A cada músico que me acontece, eu estou desatenta. Para sair da minha desatenção, a pessoa precisa tirar do meu lugar de distração (com boa música, é fácil sair desse lugar rapidinho). Eu sou, de repente, arrastada para um espaço atemporal e fico ludibriada como uma cobra que escuta um som de cantiga para sair do que a encobre. Passo horas hipnotizada pelo outro, ouvindo-o tocar, depois, ouvindo-o falar, depois, sentindo a pele distraidamente tocar as minhas mãos. A primeira parte do corpo erotizada, sem dúvida nenhuma, são as mãos. O toque desloca os pensamentos para outros lugares, fazendo cair no esquecimento.
Anita, uma vez, me disse:
- você é muito nova, Mariana, você nunca se apaixonou de verdade
Concordei rapidamente com ela. Anita falava como uma mulher de setenta anos, não sei, se é carinho em demasiado, atenção comigo, talvez.  Não sei, eu prometi não revelar a vida amorosa dela. Mas, em contraponto, eu tenho a vida amorosa mais sincera do mundo, admito que as pessoas sejam coisas, a memória seja efêmera e o gozo, uma peça descartável. Eu admito o que a modernidade fez com as minhas relações.
E, sendo uma escritora, temas como amor e paixão são bem frequentes na minha cabeça. Justamente, são lugares comuns na literatura ocidental, é um lugar comum dizer que tratar as pessoas de maneira descartável, fazendo sexo somente por diversão, tratando os outros como peças de coleção. É uma atitude antimoral, quando uma mulher age assim. Anita, provavelmente, gostaria de viver uma experiência como comercial de margarida. Ela é machucada por uma insegurança que não conhece direito. Talvez, eu também seja, talvez, somos parecidas. Talvez.
Eu nunca mais a vi, mas continuei a minha coleção. Esses dias, eu namorei um gaitista que tocava blues.  A cada músico que eu conheço, invento um título novo, consigo sintetizar alguma memória, crio novos argumentos de sedução. Acredito que bons poetas sabem seduzir uma pessoa; às vezes, de maneira imprecisa, sem método; noutras, de maneira distraída, intelectualizando metodologias. A sedução é uma técnica que consiste em aprisionar o leitor na história narrada. Quando encantamos com a beleza, é fácil enganar com mentiras; mas a beleza não sustenta a atenção do leitor por muito tempo. Ter um bom corpo, a boca sendo fitada por boca, olhos penetrantes são coisas que ajudam embriagar o leitor. É preciso criar modos da atenção do leitor não se desviar para outras coisas. Seduzir é uma técnica que consiste em saber escolher as boas palavras e saber escolher os bons silêncios. 

Um comentário: