domingo, 21 de abril de 2013

O Edifício feio no meio da visão do céu



“ Um chá pra curar essa azia
Um bom chá pra curar essa azia
Todas as ciências de baixa tecnologia
Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina
Pra gente ver por entre os prédios e nós
Pra gente ver o que sobrou do céu”
(O Rappa – canção “O que sobrou do céu”)


I
A nuvem do céu nem brilha, perdida no sono da madrugada, observa de cima o caos intempestivo da cidade. Um estrondo no meio da madrugada, respiração ofegante. Estão lá várias pessoas mortas que ninguém mais vai conhecer.
(Porque sim, esse narrador sabe que a pessoa só é considerada indivíduo para sociedade se tiver um conjunto de números que recebe o nome carinhoso de RG. Torna-se também uma pessoa física quando também possui outro conjunto de números chamado de CPF. No final das contas, esse narrador não é uma pessoa de duas pernas, ele é um conjunto de números).
E como um conjunto de números, não consigo falar de um ser invisível, porque a menina negra com a boneca da mão, correndo descalça pelas ruas, que acabou de morrer agora. Ela não é nem um indivíduo, a garotinha não é ninguém, é só o resto de toda a barbárie. A menina que morreu baleada, sequer vai ter uma notícia na televisão. Mortes de mulheres negras são banalidades que não dão notícia. Afinal, além de criança, ela não tem RG, nem CPF, a menina negra não é um individuo para o Estado. Essa criança não é ninguém. Como eu, o narrador,  posso achar que tenho esse direito de onisciência sobre os outros? Como posso contar a história dessa menininha?
Acho que só é possível se eu contar uma outra história em paralelo. Tinha um garoto de onze anos que sempre roubava a boneca dessa menininha e lhe provocava com muita crueldade. Certa vez, ambos correram longe, fugindo dos olhos dos adultos.
Lá, de longe, a menina enxergava um edifício. Uma arquitetura exuberante e gigantesca que enxergava os dois com arrogância. O cheiro que atravessava o ar vinha do rio Pinheiros, sentia de longe uma feiura que submergia no ar da cidade, pairava nas conversas e poluía os diálogos. A menina disse ao garoto: “isso é o prédio mais feio que já vi na minha vida”. O menino respondeu: “meu pai trabalha aí como faxineiro”. Os dois trocaram olhares, ele perguntou: “e o seu? Ele trabalha?”. Os olhos do menino mudaram para uma expressão de maldade: “ah é, teu pai não trabalha, você nem tem pai, você é uma menina feia e estranha”
Distante da brincadeira perversa, estava a mãe do garoto. Ela estava desesperada procurando esse menino pelas ruas. Finalmente, achou-o e gritou por ele: “Pedro! Pedro! Vem cá, agora!”. A menina que estava chupando o polegar, enxergou os dois de longe, deu um sinal de despedida ao menino. Pedro não respondeu, a mãe dele tinha cochichado ao ouvido que ele não deveria brincar com esse tipo de criatura.
A menina olhava agora as nuvens e o prédio, sondava o seu íntimo e disse: “nunca vi algo tão grande e tão feio ao mesmo tempo”.

II
Um desempregado andava no meio da estrada. Ele tinha o mesmo sobrenome que o seu filho Pedro, se chamava Pereira. Esperava o ônibus para voltar em casa, sem perspectivas para um futuro e sem noção de como faria para resolver as coisas hoje. Pedro escutou os passos do pai entrando em casa, sentou no colo dele e percebeu um olhar diferente. No rosto, uma expressão de angústia, o homem olhou para mulher e disse: “eu estou com medo”.
A porta fechou na cara da criança. Pedro só escutou os gritos, não entendeu nada, chorou miudinho, sentiu saudades da menina que brincava hoje de manhã. Aquela garota que a mamãe tinha chamado de criatura suja e porca, dizendo que não tinha a nossa cor. A mesma menina que ele também foi malvado, mas era brincadeira de criança, não era nada. Ela nem vai sentir. Olhou para lua, percebeu que o negro fazia parte do céu escuro, o ar fedia; porém, também dava para sentir melhor a brisa de vento nas bochechas. Pedro viu o prédio, lembrou-se da voz da garotinha e repetiu: “que prédio mais horroroso!”.
No dia seguinte, Pedro assistia a uma notícia de televisão. Havia uma dúvida colocada no jornal da manhã, o pai dele chegou e disse:
- mas tem que colocar. Tem que resolver isso no tiro, a violência só resolve assim. Colocando esses marmanjos pelados com frio e com fome em frente ao muro e metralhando todos eles. Aí, quero ver, se esses vão ter coragem de matar, estuprar e roubar trabalhador como a gente.

III
A menina no começo. Aquela que o narrador disse que não saberia contar a história dela, pois ela não existe. Eu reitero algumas informações: a garota não tem RG, nem CPF, nem mãe e nem pai, nem conta no banco, só uma boneca que achou na rua e um corpo para andar. A menina corre descalça pelas ruas, com alguns regalos de roupas protegendo o corpo dos restos de nudez, que não tem ainda vestígios de mulher. Essa menina olha o mesmo prédio, enquanto passa um homem, passa dois, um carro bem gigante passa rápido, atropelando todo mundo que está na frente. A rua é estreita, a menina quase cai no chão e se machuca.
A menina sente vontade de chorar, mas esquece do choro olhando o céu, o sol ilumina seus olhos. O prédio mascara o azul do céu, impedindo a visão ampla das nuvens que observam a menina andar. Ela não sabe o que vai acontecer daqui alguns minutos, senta então na beirada da calçada e continua olhando o prédio. Repete a frase: “nunca vi um prédio tão feio”.
De longe, o homem que vende cachorro quente, conversando no boteco e tomando cafezinho com seu Irineu, vê uns homens fardados. Esse homem é trabalhador, vende cachorro-quente na rua, tem RG e CPF, mas possui uma outra coisa, possui malandragem. De longe, ele pressente e pensa na cabeça: “esses coxinha aqui, vai dá merda!”.
Os policiais se aproximam de uma molecada, a menina negra olhava esses moleques brincando na rua. Mas, naquele momento, ela estava distraída com a visão arrogante do prédio feio que tanto se exibia. A menina estava tão deslumbrada com a arquitetura horrorosa dessa cidade que não percebeu o primeiro tiro, sentiu apenas uma mão pegando o seu braço esquerdo e falando alto: “corre! Corre!”. Essa mão era do homem trabalhador que eu contei, aquele que tinha um RG, ele era chamado Antônio, mas tinha o apelido de “Tingo”, esse narrador não sabe dizer por que desse apelido, apenas sabe dizer que era assim o nome que as pessoas do boteco conheciam na vizinhança. A menina conseguiu fugir alguns metros da confusão, Tingo morreu protegendo a menina sem nome, mas, logo em seguida, uma bala matou a criança pelas costas. Uma bala assassinou um corpo. Esse tiro foi dado por outro homem, chamado Henrique, menino branco de vinte e dois anos, que tinha uma conta bancária e era o orgulho da família, porque tinha passado no Concurso Público, seria um investigador policial e mudaria de cidade.  Foi o Henrique que deu o tiro. Ele era um indivíduo para sociedade, porque tinha um RG e um CPF, o tiro foi dado por um homem adulto, que era também um conjunto de números como esse narrador. Matou um corpo. A bala matou ninguém.

IV
No dia seguinte, Pedro olhava o Edifício, enquanto tomava o seu café da manhã e ouvia as brigas dos seus pais. O noticiário dizia de uma ação que tinha acontecido próximo das redondezas do Edifício. Henrique segurava a boneca daquela menina que tinha brincado na rua. A mãe se aproximava do garoto Pedro e lhe oferecia café com leite. O pai assistia ao noticiário na sala de casa.
- olha só, é assim que resolve as coisas, matando bandido. Agora sim, agora sim
- viu, amor, com que tipo de gente você tava brincando
- para de falar essas coisas, esse menino não é nem gente ainda, quando ele crescer e virar gente, ele vai entender tudinho que a gente faz. A gente só faz pra proteger ele.
Pedro olhava o Edifício, lambia os beiços e não conseguia perceber as nuvens do céu. Esse narrador sabe que esse menino vai crescer e se tornar gente, vai possuir um RG, um CPF, uma Conta Bancária, melhorar a situação financeira da família e se responsabilizar pelo indivíduo que se tornou. Quando esse menino crescer vai ser um conjunto de números.



terça-feira, 16 de abril de 2013

Sobre o tempo que materializa na gente


Caros amigos,
Isso aqui é uma autobiografia, e como toda (auto) biografia, ela pretende-se ser mentirosa. Por isso, peço para que não acreditem em mim, duvide tudo. Inclusive, duvide isso que eu falei agora, porque cada palavra minha é falsa. Somente essa frase que acabei de inventar é verdadeira, a anterior é uma mentira da verdade que inventei. Porque, meus queridos amigos, o tempo muda tanto, só disso eu tenho certeza, o verbo ser é o único irregular.
Vocês estão me entendendo? Eu não tenho certeza de nada. Sinto saudades apenas, não sei nem explicar de que. Só sinto que houve um momento na minha vida que eu acreditava que estava tudo bem, mas esse momento também é uma mentira bonita que a minha memória inventou para continuar a labuta do meu cotidiano (veja só!), mais feliz ou menos angustiada.
Sabe como o tempo se materializa? Ele se materializa em corpo. Certa vez, andando por São Paulo, revi uma amiga minha de escola, uma dessas que costumava almoçar na minha casa, trocamos olhares, não sei nem se ela me viu. Eu a vi; olhei-a profundamente e como doeu a consciência de que nunca mais a veria novamente. Nunca mais estabeleceríamos contato de novo. O caminho dela sem querer tropeçou com o meu, isso foi um acaso. Irrepetível.  Ela estava diferente, não conversamos, não vamos conversar jamais, ela não é mais a minha amiga. Eu não a conheço. Nesse momento, tive a certeza clara dos meus dias e do meu corpo, o tempo mudara brutalmente.
Me deu uma tristeza nostálgica, fervorosa no olhar. Afinal, ainda não aprendi dizer adeus. Não à minha amiga, aquela que encontrei no metrô e no caminho de volta pra casa, que trocamos apenas olhares e que, jamais, conversaremos outra vez. Dela, eu não sinto falta, sou egoísta demais para sentir falta do outro. Eu sinto falta de mim. Rever um amigo, que outrora foi íntimo seu no passado, é a certeza exata de que o tempo é selvagem suficiente para mudar com o seu cotidiano, tirar os seus amigos, afastar de vez a sua inocência e virgindade com algumas coisas da vida. O tempo é brutal, não porque é dinheiro, mas porque é selvagem. O meu corpo é outro, meu modo de ver as coisas se transformou por conta do desencontro que aconteceu. Por outro lado, me deu uma alegria plena, pois descobri que era impossível o retorno do cotidiano de ontem, era possível agora criar uma pessoa nova, um olhar novo e um ser humano melhor em mim. Aquela amiga que se perdeu no meu caminho, ensinou-me a me encontrar como caminhante diante do desencontro que nos encontrou casualmente. Passei a olhar a vida com novos olhos, meu olhar hoje é tão efêmero.
Rever um amigo íntimo do passado é a forma mais perfeita de materialização do tempo. Certa vez, reencontrei outra amiga, essa eu tive uma briga. Queria nunca mais vê-la de novo. Pensava que ela imaginava as coisas mais terríveis sobre minha pessoa, mas nos reencontramos, desabafamos todos os excessos de adolescência que ainda possuíamos nos nossos corações uma para outra. Distante de mundos, aquela amizade que jurava ser eterna, passava não ser, não a conhecia. Ela não me conheceria de novo. Éramos duas desconhecidas íntimas que um dia visitaram a casa uma da outra, contaram segredos e sonharam juntas. Saudades apenas. Não havia nada para fazer, eu só podia sentir impotência diante do tempo, o único Deus infinito que, cada dia mais, me dava certeza da finitude da vida, mas não por causa da morte, ao contrário, por conta da vida. A vida é entranhada de acasos, desencontros e encontros, curiosamente, a falta de originalidade do meu cotidiano era reafirmada com vários acasos. Todos os dias são iguais e não são.
Seis anos depois, reencontrei outra amiga. Seis anos não são seis dias. Tive um orgulho tão grande e uma alegria tão intensa de revê-la, havia uma mudança brutal nos olhos, no corpo e na voz. Era outra pessoa, tinha se transformado em mulher, desembestou na vida, ela era outra pessoa. Me deu vontade de contar toda a minha vida do início ao fim, mas o presente me ensinara que as histórias são sempre contadas através de fragmentos, a totalidade é sempre impossível. Não era mais a mesma pessoa, tanto que eu me perguntei se era possível continuar estabelecendo relações com esse novo ser humano diante dos meus olhos. Eu estava impossível, não era mais a amiga dela, também era outra. Éramos outras sendo as mesmas.
Caros amigos, o tempo é violento. Revi também outros amigos, fiquei me perguntando seriamente: será que eles sentem tanta falta de mim como eu sinto deles? Ou será que é deles que sentem falta do mesmo jeito que eu sinto falta de mim? Soube da morte de um menino de vinte anos, que tinha nascido em 1992, fiquei com medo de morrer repentinamente. Me deu vontade de ligar para todos os meus amigos, só para ouvir a voz deles. Não aprendi nada com o Drummond, não aprendi nada com nada, não posso esperar nada deles. Não posso esperar nada de ninguém. Só posso amar aqueles que são estranhos a mim, por isso eu amo esses desconhecidos íntimos que um dia eu chamei de amigos. 
Fiquei com tanto medo de morrer, senti uma vontade de ser protegida por todos que um dia me ensinaram a diferença entre um livro e o outro, me empurram pro primeiro beijo, brigariam comigo se eu me envolvesse com os canalhas que me envolvi, me apresentaram Moulin Rouge, falaram que um dia tudo daria certo, me mostraram Bergman, me deram um livro da Clarice Lispector e disseram para mim que o mundo só valia a pena se as relações fossem feitas com generosidade e amor. Eu sinto medo de morrer, por isso senti o impulso de pegar o telefone e falar com todos os meus amigos sobre bobagens e coisas bonitas. Depois, me arrependi. Não liguei para todos os meus amigos, percebi que na minha lista de telefones eu não tinha o número de muitos, não tinha fotografias, não tinha sequer a lembrança do rosto de alguns, me bastava alguns pequenos fragmentos que eu guardei na minha memória sobre cada um dos meus amigos.
Por isso, fiz uma lista, sabendo que a escrita é o pior recurso para guardar a lembrança das coisas que aconteceram. Tentei escrever algo sobre todos eles. Isso aqui é uma autobiografia que pretende ser autêntica, diante de minha solidão, eu não vou poder mais daqui em diante dividir mais nada com vocês. Eu vou deixar os meus rastros na memória de vocês, espero que alguns de vocês lembrem o quanto eu fui verdadeira quando abraçava, quando eu disse uma mentira para alegrar, quando eu contava trechos de textos que eu gostava, ria alegremente ou mesmo quando eu ficava em silêncio ouvindo a história de vocês. De vocês, eu só tenho sobras de mim; o mesmo vale o contrário. Só guardará de mim, aquilo que a subjetividade de vocês, meus caros, gostar de recordar.


De resto é só isso;
É preciso viver a vida no apesar de.
(Clarice Lispector)
Ass: B.L. 

domingo, 14 de abril de 2013

O Artista


No centro do universo, não existe o homem, nem os animais. No centro do universo, existe a dúvida.  Deitado na cama, o artista sonha com seus piores anseios e seus mais terríveis medos. No centro da cama, se escuta um grito de desespero. Esse grito é de humano, perdido e sufocado com os seus sentimentos selvagens que não consegue se livrar inteiramente. Na dúvida, o humano se alimenta e se diferencia das coisas, o mundo ganha significados a partir do momento que ele aprende a falar a palavra "talvez".
Na infância, um bailarino tinha dado de presente um livro A Carta ao Pai (Kafka), uma dose cavalar de pessimismo antes do surgimento da vida adulta. A criança nunca conheceu esse bailarino, a não ser por cartas. Numa dessas antigas cartas, havia palavras carinhosas que dizia e aconselhava a permanência pela criação artística. Esse pequeno artista se lembrou em sonho de uma frase preeminente dos conselhos centrais de Rilke ao um jovem poeta: “Antes de criar, desista totalmente da sua criação. Quer ser escritor, então desista de escrever”.
Aprendendo, desde cedo, a conviver com o pessimismo que lhe ensinaram e lhe deram de presente como uma espécie de carinho. Não havia dúvidas sobre o que era e estava se tornando. Em sonho, assustado com tanta consciência, repetia em pesadelos palavras que o assustava (Deus meu, eram reais, como eram reais!): eu não sou nada, sou menos que um inseto, menos que um animal, não consigo ser realmente nada, nem um ser banal. Ao menos o ser banal, possui o pensamento prático, agirá de acordo com uma escala, terá sucesso profissional, amoroso e amigos que lhe serão fiéis. Eu serei menos que a banalidade. Serei uma sobra dos artistas.
Esse pesadelo nascia em um contexto que o jovem artista precisava tomar uma decisão. Não era Édipo, não chegava ter a coragem de uma Ofélia e não era a barbárie que precisava ser extirpada no mundo, não era a Medeia. O artista que sonhava nesse sonho era apenas o resto da modernidade que pouco conhecia, a sua porca imitação e a certeza gasta de que as utopias já tinham virado ressacas. Não era nada, era só a imitação do humano que não conseguia ser banal.
No sonho, o jovem artista estava preso por barbantes finos, camadas de barbantes que tapavam a sua boca, o seu nariz e os seus ouvidos. O único que estava livre dos barbantes era o par de olhos. A sensação era de solidão, falta de ar e tristeza amarga, havia camadas e camadas finas de opressão que prendia o indivíduo. Os barbantes eram finos, até era possível livrar-se deles, mas eram muitos barbantes, vários que enrolavam o corpo do jovem artista. Diante dessa sensação de falta de ar, o artista via as pessoas que tinham um vínculo afetivo muito intenso se afastarem definitivamente da vida dele, vivendo a vida feliz distante do mundo de solidão e opressão que o jovem vivia. Ele até gritava, tentando desesperadamente comunicar a dor de tantas camadas de barbantes enrolando o seu corpo, mas era impossível, a voz ficava abafada. A lágrima caía tímida no rosto da criança e sumia lenta no corpo aprisionado.
Entre a vontade de ser artista e a vontade de ser feliz, há um abismo monstruoso. Em um dos episódios do livro Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector), a criança Joana faz uma pergunta desconcertante a sua professora: “Ô Professora, ser feliz serve pra quê?”. A professora não entende a pergunta, então a criança repete: “Pra que serve ser feliz?”. Não sabendo responder essa despretensiosa questão, a professora foge e diz que a Joana deverá responder isso quando tiver a idade adulta.
O sonho dessa criança era ser herói. Pobre criança, a modernidade esvaziou a ideia de herói a partir do momento que os militantes políticos da Ditadura Militar deixaram de ser pessoas e se transformaram em mitos para a juventude de 1990. O mito é toda a maquiagem da barbárie. Afinal, ser mito serve pra quê? Ser feliz serve pra quê? Ser artista serve pra quê? Sonhar serve pra quê? De que serve todas as coisas que colocaram na minha cabeça? De que serve um livro do Kafka? De quer serve esse pesadelo do qual tem tanto medo? O sonho dessa criança era poder sonhar de novo. Mas o que restou do sonho do sonho? Restou apenas o vazio.
Posso falar dos militantes políticos que sofreram a tortura de 1970, dizer o quanto eu não conheço eles. Entretanto, posso também discutir uma tortura hoje. Uma tortura diferente e mais silenciosa, como toda a tortura não se fala e evita a discussão dela entre os amigos, a família e o namorado. Essa tortura é antiga, ela nasceu desde escravidão, criou raízes na apatia da Classe Média e hoje em dia é passada de pai para filho como uma espécie de cultural brasileira. O nome dessa tortura se chama sucesso a qualquer custo, vencer e sobreviver em cima do outro. Consumir o outro, destruir a cultura do outro, acabar com a linguagem do outro, estuprar o outro, não permitir que o outro prevaleça e só permitir que o meu ego prevaleça na história, o meu EU é mais importante que tudo nessa vida.
Entretanto, o “Eu” é, ao mesmo tempo, a grande perdição, pois ele é supervalorizado. O sucesso será representado nas últimas instâncias e com toda a euforia que se pode ter depois da embriaguez; mas o fracasso será o fim de mim, será a permissão que eu precisava para poder tirar a minha própria vida. O “ego” é aprisionado com as responsabilidades e os venenos da “ideologia do sucesso” de todos os dias, agraciado com o sentimento de apatia, apimentado com o afastamento gradativo de sentimentos fundamentais do humano que o caracterizam como um ser. Os barbantes finos de todos os dias enclausuram o ser e descaracterizam-lhe cada dia mais de sua figura humana, afastando de tudo que um dia foi importante.
Posso falar do genocídio dos negros, da intolerância de classes sociais mais pobres em Universidades públicas brasileiras, da ascensão social de migrantes brasileiros nordestinos e de direitos humanos para o movimento político LGBT, da violência contra as mulheres fora dos movimentos políticos e dentro de lugares mais eruditos. Posso falar de violência. E, sobretudo, posso falar dos militantes políticos que morreram e a História Oficial apagou dos seus arquivos, do mesmo jeito que querem apagar o negro e o migrante nordestino na construção de São Paulo, na língua portuguesa e na História de todos nós. Posso falar de tudo isso, admitindo que é impossível, é humanamente impossível falar do outro. Só sei falar de mim. Mesmo assim, falo da pior tortura, daquela que é silenciosa, que a gente não se apercebe, surge mais frequentemente nos sonhos.
A tortura que me faz fechar os olhos pela manhã. Coloco os fones de ouvido no metrô e finjo não perceber que estou no lugar lotado, aprisionado com todos os outros homens e mulheres ao meu lado, finjo que não sou um burro de carga também, querendo sucesso profissional, desejando ser uma artista de cinema. Essa tortura que aprisiona os meus sentimentos mais bonitos e verdadeiros de um ser humano, faz com que eu negue o meu tempo de aprendizagem e desrespeite o outro em nome de créditos bancários. Essa cultura brasileira do eu que me ensinaram o valor da indiferença e da apatia, valores que eu assimilei e sou intimamente aprisionada. Também tortura o negro, a mulher, o militante político, o petista e o psdbista. Essa tortura recebe outro nome pelos psicanalistas, ela se chama Depressão.
O abismo entre ser artista e ser humano é maior do que muitos conseguem imaginar. Uma coisa é se tornar patrimônio cultural, negando qualquer vestígio de aprisionamento que a sociedade colocou na sua mentalidade e no seu coração. Outra coisa, bem diferente, é assumir que a figura do humano estará para sempre enclausurada nas suas obras de arte, sendo impossível fugir da pergunta crucial: e se não fosse eu? E se eu fosse o outro? O sentimento de impotência é tão grande diante dessa questão, corta a garganta, agrava os sentidos. Os olhos estão para sempre olhando as ruínas do presente do passado. Restam as lágrimas de sangue e fúria. Nenhum artista consegue fugir inteiramente de suas prisões. Nenhum.
O “talvez” advém de um infinito de possibilidades. Na tentativa fugaz, de um ser diante de outro ser , se questionar e dizer: mas, então, e se eu vivesse no seu lugar? E se eu tivesse em outro tempo? E se fosse de outro jeito? Diante de milhares de possibilidades, a criança que não sabe a diferença da palavra “foi” para a palavra “era”, ela que não é confundida ainda com a doença da memória. Está presa em outro âmbito, ela aprende observando os adultos e imitando a realidade através das possibilidades da brincadeira, joga com o talvez, sempre que colocam obstáculos e problemas. O “talvez” nasce espontaneamente, quando fala com as autoridades: “mas, ô mãe, eu posso brincar com clipes da caneta já que eu não tenho o carrinho daquele jeito?”. O “talvez” mais tarde fica impregnado de tempo e memória, os brinquedos só mudam de formas.
Enquanto o artista, aquele do início adoentado porque é da espécie humana, sonha agora pesadelos, não consegue mais cultivar sonhos. O que resta do talvez de um artista? Entre o abismo da arte e da vida, qual é a melhor escolha? Entre o eu e o mundo, qual é a melhor decisão? Entre ser artista e ser um ser banal, qual é a melhor escolha? Às vezes, a dúvida é tanta que o jovem artista pensa que um dia será encontrado morto com a cabeça transfigurada em interrogações. Se um dia deixar uma obra de arte será esse o legado que deixará ao seu público. Ele deixará a dúvida.



sábado, 13 de abril de 2013

Tagarelice


1

Na minha infância, uns vinte anos atrás, me chamavam de pentelha e tagarela, sempre recebi advertências de professores em casa, dizendo pra minha mãe que eu era terrível, não parava quieta. Não era muito entendida das palavras, não sabia o que significava a palavra “tagarela”. Mas a primeira definição de tagarela que conheci era: “alguém que falava pelos cotovelos”.
O que convenhamos é absolutamente estranho. Cotovelos não têm boca. Como andava sempre com os meninos, (porque não gostava de brincadeiras de meninas, eram muito paradas e entediantes).  Os meus professores sempre chamavam a minha atenção:
- ei menina, fica quieta...
Sempre chamavam a minha mãe.
- a sua filha não tem jeito, é uma pentelhinha!

2

Um certo dia, a professora recitou um poema que tinha uma palavra estranha aos meus ouvidos. Era uma palavra curiosamente bela, com som magnífico e que parecia um perfume de longe. A palavra era “inefável”. Eu fiquei curiosa, interrompi a aula e perguntei:
- inefável? Ô psora, o que é inefável?
- é algo que não se pode dizer
- ué, então diz,
Manias de coisas proibidas! Fiquei querendo saber o que não se podia dizer do Inefável, mas a professora me olhou com um rosto medonho e fui levada para Diretoria. Em casa, tinha uma advertência bem grande: “ A sua filha precisa aprender a se comportar e não fazer mais perguntas indecentes!” . 
- que pergunta indecente você fez, Pipa?
- eu perguntei o que era inefável?
- filha que palavra é essa?
- então, a professora falou que não se pode dizer. Então eu disse, ué então diz. Mamãe, a minha curiosidade aumenta quando as coisas não se podem dizer. Mãe, o que não pode dizer do inefável?
- filha, vai pro quarto!
- por que?
- você é muito perguntadeira!

3

Perguntadeira é sinônimo de tagarela? Afinal de contas, o que não se pode dizer do Inefável? E se for uma daquelas coisas de adulto, gente grande, sabe! Os adultos são cheio dessas pilhas, tudo pra eles ou é coisa de muito muito ruim ou coisa de muito muito boa, o limiar das coisas não existe. O talvez, entre os adultos, é estado proibido.

Afinal, não se pode falar do inefável, por que ele é feio?  Tipo, o monstro do lago. O que há de estranho nessa palavra? Puxa, uma palavra tão bonita esconde uma coisa feia, igual o lago da minha casa! (Eu preciso fazer uma pausa para explicar o monstro do lago. Na frente da minha casa, tem um lago bonito que a gente sempre brinca nele. Um dia era quase noite, a minha tia tentou tirar a gente de lá (eu e a turminha!). Então, ninguém quis sair, até que ela nos convenceu que, a partir das sete horas, o monstro do lago ficava lá para comer criancinhas. É engraçado! Que depois mais tarde. Eu tinha dezoito já, fui tomar banho lá e não encontrei nenhum monstro do lago, já tinha passado das sete). 
Quanto ao inefável, acho que não dormi à noite, pensando nessa palavra, pensei procurar ela no dicionário. Mudei rapidamente de ideia. Uma palavra tão bonita não deveria estar nos dicionários, já que é feia para os adultos, pois, com certeza, o dicionário foi ideia dos adultos, – porque grande parte deles não têm imaginação, precisam dos alicerces dos outros para achar uma forma bonita, não conseguem olhar o mundo com inocência, precisam intelectualizar tudo, gostam do CERTO e do ERRADO. Essa palavra para mim está no campo do talvez, por isso não vai ser feia para mim, ela é bonita porque eu não a conheço.  Quando se tem uma fôrma de bolo, a gente pode preencher com recheio que quiser, minha madrinha vivia falando isso. No vazio, sempre aparece o novo, é só não ter medo do erro. Nessa idade, a gente aprende algumas coisas. As perguntas nunca são inteiramente respondidas pelos homens grandes. 


4

Com dezesseis anos, li um livro de Bruna Landim, “Do verbo ser irregular”, que explicava o termo “Tagarela”.  A autora citava Dostoiévski, um trecho do conto “O subsolo” que trazia o aspecto negativo desse termo: “Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como todos nós. Mas que fazer senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira”
Bruna Landim disse que, uma vez, percebeu a diferença entre gostar de um cara e não gostar. Gostava de um rapazinho, quando sentia vontade de conversar; não gostava do cara, quando sentia repentinamente o mutismo no seu coração. Ficava absolutamente fria, não emitia sequer um espirro.  Desse jeito, entendeu tudo que tinha que entender sobre linguagem, sendo tagarela quando criança e, absolutamente, muda e séria com alguns rapazes na juventude. Eu cito um trecho do romance dela: “A tagarelice é o uso da forma. O papeador sempre diz experiências em suas histórias, mesmo que elas sejam mentiras. Muitas vezes, o papeador é confundido com o tagarela. Mas quem não consegue notar a diferença disso, não consegue aproveitar a graça da poesia cotidiana. Existem tagarelas que não pronunciam sequer um espirro de resfriado. Tagarelice é fala vazia, é forma esvaziada de experiência”.
Eu entendi tudo, lendo essa definição. Desde criança, eu era uma poetisa, os adultos estavam educando, na verdade, para eu ser uma tagarela. Eu queria era ser uma papeadora, falava para entrar em contato com o mundo, às vezes perdia a conta das minhas palavras, erro de principiante, excessos comuns da inocência. Mas, a minha primeira experiência com as palavras foi sendo uma perguntadeira. Era minha forma primitiva de lidar com a linguagem. Ser perguntadeira era uma maneira de lidar com o som, espontaneamente lidava com o lado lúdico das palavras, as minhas experiências infantis, sempre nasciam com uma aparência surrealista. Coisas de crianças! Se a gente continuasse com essa cabeça, com tanto despudor, o Picasso ficaria de cabeça em pé. 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O amor dos sonhos: gigolô dos nossos desejos


ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS
Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão, por
injunções muito mais sérias, lustrar pecados que
jamais repousam?
(Ana Cristina César)

Certa vez, caminhando em direção ao centro de São Paulo, parei diante de uma vitrine de roupas e me imaginei uma Audrey Hepburn olhando a vitrine de diamantes da Tiffany’s. Cantando ao fundo da cabeça, but diamonds are girl’s the best friends. Olhando aquelas roupas, me imaginei com um elegante óculos escuros, desfilando maravilhosamente entre a pobreza e as ruínas do Brasil que não conheço. Há muitos Brasis que não conheço. Só caminhei em frente, diante de afortunados homens esquisitos andando com as suas gravatas que enforcam os pescoços. Nem olham para as mulheres bonitas. Porra! Me imaginei muito a Audrey Hepburn.
Por trás dos olhos da estrela de cinema, existe a personagem Holly Golightly, uma garota de programa com identidade mutável que tinha um gato. Terminando em um estranho final feliz, reconciliado com o mundo, finalmente nomeada diante da classe média, talvez casada com o escritor de cabelos loiros e bonitão. Quem sabe o que rolou depois daquela cena de chuva? Depois do beijo, rolou múltiplos orgasmos. A experiência amorosa se revelou harmônica com a relação sexual. Ambos se olharam intimamente, com olhos fixos em si mesmos e perceberam que os seus egos seriam para sempre contrários a vontade do outro. Até que o gato (aquele animal sem nome e identidade no início) ficou entre os dois, como uma espécie de consciência, nenhum dos dois jamais poderia ficar juntos. Não porque não se amavam, mas justamente porque se amavam tão profundamente, sendo impossível essa realização amorosa, um precisava do outro em liberdade. Eles se olharam, depois do longo beijo e da tempestade, nunca mais puderam dividir a mesma cama. Sozinhos, voltaram para casa. Por trás da moça dos gatos, nesse olhar triste que esconde os olhos, fumando um cigarro longo e com vestido elegantemente preto, combinando com tudo ao seu redor, o que há?
Será que elas ousam? Será que há ousadia nos passos dessa moça? Musa do cinema norte-americano. Musa que não chega nem perto da deslumbrante Marilyn Monroe, com o seu poderoso batom vermelho. Musa boazinha, fazendo um papel de rebelde. É ousadia terminar com beijo no final? É possível até acreditar em esperança. (porque sim, as pessoas assistem Bonequinha de luxo por conta do beijo no final. Todo filme é legal por conta do beijo). Mas,  além do beijo, - além do glamour, - por trás dos olhos das garotas sérias?  O sonho norte-americano. Ou uma angústia estonteante? Tão inebriante esse olhar que a musa se perde nos passos de um ser banal, perde o ar de musa, o cabelo despenteado, os sonhos arregaçados com a ressaca de ontem e uma certeza futura: o amanhã é um talvez, provavelmente, não terei o beijo no final. É até possível nem chover.
Andando pelas ruas, sou atrapalhada por meninos, empurrada por homens estressados. Não tenho sequer expressão no rosto. É até impossível fazer essa pergunta: o que há por trás dos olhos das meninas sérias? Não há nada, nem sequer esperança. Apenas, ando para não perder o costume de andar. Esqueço que existe rumo, não lembro nem a direção do passado, esqueço que o futuro é amanhã. Vivo o presente como se não vivesse, não faço perguntas complexas, evito dizer aos meus amigos que eu estou meio triste essas semanas. O que me vem a cabeça é o improvável, olho as roupas da vitrine. E repito comigo mesma: não tenho mais perguntas, não sei mais fazê-las. Quero mesmo é comprar essa bolsa nova, combinando com esse sapato. Por trás das roupas da menina séria? Um corpo desnudo, apenas. Esvaziado de sonhos, sem pureza, só sacanagem, sem sonhos norte-americanos por falta de glamour, sem ser mulher por ser muito moleca, sem ser nada. Apenas, um corpo desnudo desejando uma mercadoria insignificante que naquele momento é tudo. Por trás da mulher bonita de olhos inexpressivos? A falta de dinheiro para comprar o seu sonho. 

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Anotações do relógio parado: Os devaneios de um corpo sem alma


Inquietude ou ânsia? Marta não sabia responder o que ela sentia no fundo do coração. Olhava-se, percebia o corpo e não conseguia enxergar a boca. Era uma ignorante, inclusive dela mesma, Marta só enxergava os braços, as mãos e a ponta do nariz, não tinha a mínima ideia de como ela era de corpo inteiro. Só se conhecia através do reflexo deturpado do espelho.
Marta tinha acabado de chegar em casa. Sentou-se na cadeira. Os pratos sujos chamavam-na insistentemente. A cor da parede era branca, na cozinha tinha uma mesa ao meio, dois quadros expressionistas decoravam o ambiente, o apartamento era muito grande para morar sozinha. Um pouco menos de um ano e um pouco mais de dois meses, Marta morava nesse lugar. Ela vestia preto, usava botas e respirava um ar de cansaço.
Repentinamente. (Porque é sempre repentinamente que as grandes coisas acontecem! Embora sejam muito banais...). Repentinamente, ela levanta-se, toma uma xícara de café e fuma o último cigarro do maço. Era o último cigarro da manhã, amargo e consolador, (Marta precisava comprar outro maço de cigarros, quando fosse ao supermercado). Ela se levanta e vai em direção ao quarto, encara o relógio preto em cima da mobília, esse objeto fascina a sua imaginação, pega-o, voltando para cozinha.
A cozinha estava silenciosa. Marta, antiga atriz e atual recepcionista do consultório do Dr. Pedro, um dentista, não tinha reparado no silêncio quando chegou em casa. Ela sentiu vontade de chorar, uma angústia lhe apertava o peito. Olhou, finalmente, o relógio parado. Decidindo criar uma situação nova que propiciasse o fim do tédio da segunda-feira. Nesse joguinho, ela criou objetivos: 1º) observar o relógio parado; 2º) perceber o som no silêncio. Anotaria as experiências com relógio preto dentro de um caderninho marrom, rasgado e rabiscado.
Chorou, mas não sabia responder qual era o motivo da tristeza. Marta, vivendo essa situação inventada, pensou de repente que conseguia responder mais facilmente as perguntas profundas e filosóficas dos grandes pensadores modernos do que responder as perguntas práticas do mundo cotidiano e banal. A vida se repete. O que ela faria amanhã? E depois? Como seria se não conseguisse o dinheiro para pagar o aluguel? E depois? Quando ia comprar comida para encher a geladeira? E depois? Que horas ela ia tomar banho? E depois? E se fosse despejada do apartamento? E depois. O cotidiano saltava-lhe aos olhos. Marta precisava arranjar um emprego, lavar pratos e arrumar o guarda-roupa. As roupas estavam todas desorganizadas.
Quanto ao relógio parado, o gravador era sua única companhia. Marta registrava todos os seus depoimentos nele.
*8h15min: “Eu, Marta de Martini Santos, me dei o objetivo de observar o maior tempo que eu puder esse relógio quebrado. Os ponteiros estão imóveis.  – ela gravava a sua voz no gravador – Quero, nessa experiência, apreender a matéria do silêncio. Seria uma espécie de laboratório teatral? Algo até muito idealista. O silêncio é uma utopia? Vou anotar diariamente todas as minhas vivências com esse objeto inanimado
*8h17min: “Eu sentei nessa cadeira branca e comecei a observar esse relógio. Notei que ele estava quebrado, os ponteiros apontavam sempre para um mesmo horário: 7h55min50s; 7h55min50s; 7h55min50s. Parece que o tempo parou, não escuto nenhum barulho, talvez o ritmo do meu sangue. O relógio era preto, arredondado e morto. No meio do objeto, tinha uma palavra escrita em cinza, caixa alta, QUARTZ, embaixo do número doze, outra palavra, itálico, Yin’s, escrita em preto”.
Renato. Marta pronunciou esse nome mentalmente. Re-na-to. Era o nome do seu primeiro namorado, rapaz simpático, cabeludo e muito quieto. Os olhos eram grandes, a boca muito fina. O sonho de Renato era ser escritor. Tinha uma frase marcante na vida de Marta que ele sempre repetia, era sobre os livros detalhistas: “ninguém quer saber quantos grãos de trigo tem no saco, isso não é importante. A vida expressada! (quando ele falava isso, abria muito a boca, Renato ficava entusiasmado demais), o drama humano, não, não, não, o drama cotidiano da existência, é isso, as pessoas querem algo que vai além do drama cotidiano da existência, a arte ultrapassando a vida”.
*8h30min: “Drama humano?! Não, não, eu não saberia pensar sobre isso, não sei nem direito o que um relógio quebrado, um mero objeto inanimado, pode ter a ver com o drama cotidiano da existência!...eeeeeh, se tiver? Acho que isso é uma grande loucura, olhar esse relógio não vai me fazer chegar onde eu quero...maaas, o que eu quero? O silêncio? O silêncio vai por acaso preencher o meu vazio? O silêncio, que é o vazio, pode preencher outros vazios?”
Toca o telefone: trim-trim-trim.
*8h31min: “atendo? Quem será que é a essa hora da manhã? Ninguém normal acorda às oito horas para ligar. Eu não vou atender. Estou muito ocupada com esse trabalho artístico. Vou me descobrir e perceber o meu corpo. Sim: o corpo. O corpo é a resposta! Meu corpo sabe mais de mim, guarda mais memórias e diz mais o que sinto do que eu mesmo”. 
Marta tira o telefone e deixa-o fora do gancho. Ninguém mais a incomoda. Só há o silêncio.
*8h42min: “Vou concentrar todas as minhas energias nesse relógio parado (fechando os olhos) Não! Quero enxergar esse momento que criei, senão eu vou perder ele para sempre. Na realidade, o relógio é parado, não existe movimento nele... Droga! Me perdi, eu tinha mais coisa para falar antes, mas esqueci....”
Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac: esse é o barulho de outro relógio que existe na cozinha da Marta, ao lado do menor quadro de pintura expressionista. Marta não diz nada, só o percebe.
*8h45min: “isso é o relógio? Ah!! Me esqueci que tinha outros relógios na casa, mas, veja, que momento! É um relógio vivo gritando e um relógio quebrado, mudo. Tudo em contraste, disforme, como a minha vida. Os gregos definiam o movimento como tudo aquilo que transformasse a realidade, mesmo algo parado pode significar movimento, acaso atingir a transformação do real. Acho que eu estou me modificando, não sei o que isso significa...”
Tudo é transformação. O tempo sobrevoa nas costas de Marta, é inevitável, todos os dias ela está próximo da morte, envelhecendo e entristecendo. Ela não consegue tocar o silêncio, porque não sabe se isso também é uma invenção dos homens para atingir a felicidade. O silêncio pleno pode ser uma utopia. As mãos alisam a pele e os cabelos, caminham até o útero e Marta relembra o seu sexo.
*8h50min: “ter um útero é diferente, é mesmo muito diferente do que não ter...”
*8h51min: “porque a arte nos inferniza, porque quando você toma a decisão de ser artista, não escapa mais, porque eu tô com fome, porque eu preciso comprar anticoncepcional, porque eu preciso pagar o aluguel, porque não falo mais com os meus pais, porque não tenho dinheiro para pagar as contas de água e luz, porque Rodrigo transou comigo e não me ligou mais, porque nunca sei...”
Ela relembrou, repentinamente, as duas vezes que tentou largar o teatro. Sentiu como um objeto perdido, mas nunca achado. Não soube se exprimir para ela mesma. Parou, respirou e quase gritou. Sufocando o grito, sussurrou.
8h55min: “e abandonei, mas não resisti por muito tempo, eu acabei voltando pro teatro dois meses depois. O que há nessa coisa que é tão difícil de sair e tão fácil de desamar? Atuar... No começo é lindo, depois fica uma merda. Um dia a gente aprende que o prazer é sempre complicado, exige paciência e personalidade, um dia a gente aprende que o amor é inundado de angústias, a gente aprende que o medo é natural, a gente aprende que a raiva é o sentimento que implica posicionamento. Acho que um dia a gente aprende”
Marta pensando, um relógio inanimado e outro tiquetaqueando. Na maioria das vezes, o ser humano perde a cabeça quando pensa demais e se esquece de viver o presente. Um Instante parecido com o silêncio, difícil de agarrar, com as mãos, essa tal efemeridade do aqui e agora. O presente se vai, se perde.
*8h57min: “ por um momento não consegui perceber nenhum som, me esqueci do relógio e não senti nada com meu corpo. Droga! Me perdi de novo, esqueci completamente da coisa, de tudo, do que eu queria realmente...”
*8h58min: “...será que sabemos o que queremos realmente? Ah saco! Eu de novo me indagando e esquecendo da vivência... aaaaah vida!, o...”
*8h59min: “... instante se foi, indo, indo e eu nem peguei...”
*8h59min59s: “...ou...”
*9h: “...eu que fui?” 

sábado, 6 de abril de 2013

Espelho III: a consciência e a ilusão do mundo



 Tudo que eu conhecia em mim ganhava volume como massa de bolo que coloca fermento e cresce. O sabor do bolo era amargo, a floresta negra que sondava o meu ventre, insurgia em mim sentimentos perigosos como o medo de ficar grávida, o desejo por todos os homens do mundo e o gosto do inferno. Estava em processo, me transformando pouco a pouco em uma criatura inventada, eu seria o que eles queriam uma mulher.” (Espelho I, 2006)[1]

“O tempo foge das minhas mãos. Envelheci alguns séculos essa semana, mas esqueci de contar para os mais velhos. Apago a luz, fecho a porta do banheiro. O espelho nunca muda, permanece espelho.” (Espelho II: Sobre o tempo e a memória, 2010)[2]

“Quem sabe eu ainda
Sou uma garotinha
Esperando o ônibus
Da escola, sozinha
Cansada com minhas
Meias três quartos
Rezando baixo
Pelos cantos
Por ser uma menina má” (Cazuza. Malandragem)[3]

I

Esperando o ônibus azul. Ansiosa para dar o horário. Eu penso em tudo que eu vivi e que não vivi igualmente, sem desproporção. Fico muito ansiosa, com uma leve sensação de que a minha vida não valeu a pena ou que a minha vida é muito boa. Sonho com sexo, amor, Cuba, Paris, penso seriamente nas minhas tias e na falta de grana. Cadê o ônibus? Ainda não chegou. Puta! Que vontade de arranjar um namoradinho essa semana, só pra levar no papo.
Ao entrar no ônibus, procuro seriamente algum lugar próximo da janela. Detesto ouvir música se não for para ver a paisagem passando na minha visão míope de São Paulo, (cidade de baita mau gosto que odeio amando profundamente. Os melhores anos da minha vida foram todos aqui, os piores também. Cidade de contradições exageradas que se aprende desde criança). Coloco na primeira música que aparecer na rádio 89,7 F.M.. Vejo os matos, os casebres, as favelas, os prédios, o shopping, os caminhões, a chuva e o trânsito da Dutra temperamental. Vou ficar parada. São duas horas; vou chegar atrasada e só me resta ouvir essa música até o final para não entediar.
Lembro-me de todos os meus amores, amigos e sonhos que passaram na minha vida; percebo que a minha vida não foi tão mal. Ao mesmo tempo, sinto como eu sou carente de futuro, fantasias e desejos; concluo que a minha vida é de uma pobreza subjetiva suprema. Sinto vontade de desistir de tudo inteiramente, me jogar no carro em movimento. Mas uma voz interior relembra que a minha juventude não pode ser perdida por tão pouco, há muito para se viver. A minha vida é uma linha tênue entre morte e vida o tempo inteiro, não esqueço que um dia a minha beleza e carisma vão desaparecer. Eu não pretendo ser um mito de vinte e sete anos, estou preparada em virar eu própria no avesso e transfigurar-me na mulher mais feia, gorda, velha e mau humorada do mundo. Mitos possuem a responsabilidade da morte, não aguentaria esse peso, não queria virar museu para os intelectulóides blazés.
Olho para Dutra, não estou em movimento, é o ônibus que se movimenta por mim. O espelho do ônibus (que na verdade é a janela do ônibus), meio ofusco e perdido no espaço, reflete a minha imagem. Sou uma cópia mal feita do passado dos meus avós. Fico desconcertada, eu me sinto tão bela, mesmo com o cabelo despenteado, os olhos cansados e maltratados pelo dia de ontem, os sonhos adormecidos na gaveta. Será que as duas décadas nesse mundo de milhões de anos têm surtido em mim algum efeito bom? Desisto inteiramente de fazer perguntas difíceis para não enlouquecer.
(Regras perversas básicas para sobreviver no mundo terráqueo: ser feliz, ser duro consigo mesma psicologicamente, ser espontâneo, ser engraçado, ser erudito, ser falso, etc, etc e etc. Eu tento desesperadamente colocar alguma máscara social dessas para aliviar minha angústia, mas não diminui. Só aumenta). De repente, cai a ficha. Não consigo mais ver utilidades de tantas máscaras e símbolos para esconder quem realmente gosto de ser. Aí, me assusto com a descoberta tosca, fixo o meu olhar na imagem em movimento do espelho ruim.
Nunca seria uma mulher realizada. O meu tempo é irregular, mas os meus olhos são de hoje. Meus cabelos, meus sonhos e minha vida são as coisas que posso fazer hoje. Nem sempre as pessoas do passado vão guiar todos os seus passos no presente, o tempo é um presente intransferível para cada um. O tempo é a experiência amorosa mais completa, de liberdade e de opressão, temos o poder dele em nossas mãos quando aprendemos tomar as nossas decisões, mas também somos reféns das escolhas de outros e, às vezes, nem sabemos reconhecer onde somos prisioneiros da História. Crescer nunca foi uma tarefa fácil para ninguém. Não, definitivamente, como diria Sofia (de Clarice Lispector), não era por maldade que eu não estudava, era porque eu só tinha tempo para crescer, descobrir e redescobrir o mundo dos outros, meu e do cachorro do vizinho.

II

Meu olhar fixa exageradamente na figura da moça refletida no espelho que me espia. Não a reconheço imediatamente, fico também bastante apreensiva para não perder o ponto de ônibus que eu tenho que descer. Escuto músicas, sonho demais acordada e relembro a feijoada no Capão Redondo em pleno Domingo que tenho de ir, tenho uma festa de família lá. Não acredito muito em todas as verdades que me contam, gosto das mentiras, sou da tribo dos vagabundos, dos artistas e perdidos no mundo. Gosto de abraçar, beijar e amar. O importante na vida é dar amor, espalhar esse sentimento catatrófico pelo mundo e sonhar ainda com as coisas. O sonho é a única matéria de humano que existe em mim, fecho os olhos e deixo a minha imaginação voar, sem censura. Apenas, flutuo no mar da minha imaginação.
Gosto de imaginar o mundo como um grande recreio que as crianças brigam para não sair e não voltar para aula chata de matemática. Os olhos da moça que me espia com curiosidade, acabaram de mover-se,  o espelho ruim entorta um pouco a imagem. A moça parece um pouco confusa com tudo, anda como uma turista no mundo, esquece de perguntar os números de telefones dos homens que amou e transa com tanta facilidade com todos os desconhecidos.
Vou falar de signos para falar de mim. E falar de si mesmo é sempre muito complicado, o que você imagina que é na sua cabeça, não é o que os outros te veem. O poder da imaginação é tão incrível que a capacidade de criar pontos de vistas parte de si mesmo e da sua relação direta do corpo com o mundo. As pessoas podem enxergar como uma baixinha medíocre, mas não você. Na sua cabeça, olhando esse espelho ruim, sabendo o quanto está desarrumada e bicho grilo. A sua imaginação voa, o seu corpo tem mil metros de comprimentos, a sua fala, o seu rosto, tudo em você é mais gostoso. (E a Dutra continua parada).
Na janela, eu vejo cores, pessoas e lugares. Me esqueço que estou no mundo. Os olhos da moça do espelho, quase dormindo, espiam o jeito que eu remexo os meus cabelos. Não tenho a mínima ideia qual é o mundo que eu vivo, do mesmo jeito, que não confio nas imagens do espelho ruim no meio dos caminhos. O mundo parece tão belo nessa visão, porém, de perto, é só ilusão de espelhamento. Na janela, eu vejo o mundo passando, meio ilusório, sabendo que a minha miopia atrapalha na visão das coisas. Eu sempre fingi que enxergava bem as coisas, a moça do espelho ruim que me vigia, sorri descaradamente da minha falta de noção do mundo.
A minha consciência é esquizofrênica, tenho profundo delírios sobre o que é a realidade. Rezo todos os dias para conseguir ter mais malandragem na vida, pois isso é a única lição que vale a pena aprender. O resto é detalhe de erudição, não faz muita diferença os livros que eu leio, nem a faculdade que eu faço. Rezo, sonhando acordada, para sair dessa teia de opressão que cada dia me entrego mais, mais e mais. O tempo corre de assustado. Eu me sinto muito manca para acompanhar os meus colegas que já estão a três milhões de anos na minha frente, me sinto parada eternamente em um trânsito da Dutra. Sem poder sair, sem poder correr, andar a pé e vivenciar os lugares com a calma de que necessito.
Eu sou a moça do espelho ruim, tenho desejos imensos, manias estranhas de sonhar acordada quando não posso. Perco-me na minha irregularidade do verbo ser, não sei exatamente o quanto a ilusão do mundo se identifica comigo. Não posso vivenciar as coisas pela metade mais, o mundo me pede cada dia mais, não quero, não posso e vivo uma vida de medo todos os dias. Não queria sentir tanto medo do outro, porque é disso que sinto medo. É sempre da relação, por isso não me acho, porque não adianta viver no mundo sem o outro para mostrar os lugares desconhecidos. Tenho receio de que a moça do espelho descorda de mim, pois aprendi bem com a cultura do narcisismo. Amo eu mesmo com todas as forças que não consigo me imaginar fora de mim.
Mas estou aí. Diante de uma imagem ofusca e perdida, olhando-me para um espelho em movimento que reflete muito mal a minha vida, os meus anseios e medos. Estou diante de mim, mas ainda não consigo me encontrar. Acho que o mundo não me representa, eu mesmo não me represento. Sou o ator de mim mesmo.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A descoberta do leitor

O leitor e o público

Ampliar o conceito de leitura para além da palavra escrita é o primeiro passo para uma relação mais complexa com a crítica de arte. Ficção e realidade possuem uma proximidade quase gêmea, não sei até que ponto elas se confundem ou entrelaçam numa nova realidade. A realidade que fica no entre, no limiar do mundo. Naquela realidade que é bastante parecida com a matéria dos sonhos, do desejo e da distração no meio do caos de São Paulo.
Ler o mundo é encontrar um pouco de nós, naquele fundo da gente mesmo que nos esquecemos de bagunçar e limpar de novo. Desarrumando e arrumando o que há de escondido até encontrar algo mais sujo. Mais turvo. Sempre há aquela sujeira que a vassoura não chega? A página do livro que você não consegue virar? O segredo mais secreto que nem para você mesmo consegue contar? Ler é, sobretudo, desbancar esses lugares, é viajar no impenetrável.
Impenetrável. Não sei até que ponto essa palavra boa. Toda obra é aberta para colocar os seus pensamentos e experiências de mundo. Tudo é um convite para se viver mais, a arte não é um convite para se viver menos. A leitura é um espaço onde o mundo é pequeno, a imaginação é enorme para caminhar sozinha no deserto da língua escrita.
Nunca relacionamos a escrita sozinha e autônoma do mundo (antes, o primeiro contato com a língua e a linguagem foi com a fala. Ou ainda melhor. Foi com a boca, o tato e o corpo sem equilíbrio, ainda bebê). Sempre no meio de toda leitura, pensamos nos últimos acontecimentos do cotidiano, nos sonhos que não realizamos. Nos segredos que, provavelmente, nem as pessoas mais íntimas conhecem de você. Ler é uma atitude que vai para além do livro, para além da peça de teatro, para além do filme assistido. Ler é uma atitude que precisa também ser voltada a descoberta do leitor como sujeito. Uma consciência ativa do mundo.

Procedimentos de leitura com texto escrito                                                               
A atividade de leitura requer duas práticas que são trabalhadas diferentemente e que se complementam: 1º) a compreensão é a prática de reconhecimento das estruturas e da materialidade linguística do texto; 2º) a interpretação é a prática que resulta naturalmente da prática de compreensão. Antes de perguntar o que significa uma estrutura e preencher as lacunas do texto não notadas pelo escritor, o leitor precisa compreender a materialidade textual. E então, a partir do conhecimento de mundo do leitor-sujeito[1], a potencialidade de significados do texto vem à tona. A interpretação é a prática de trazer os significados do texto ao mundo.
O leitor também é um produtor de significados. Essa atividade não é simples para explicar, pode-se fazer um paralelo com a atividade de investigação policial. Imagina um detetive que se depara com um ato de assassinato. O caso é o seguinte: uma cozinha. Um homem de trinta e oito anos, deitado no chão, a cabeça ensanguentada com a faca perfurando o cérebro. Ao entrar no cenário do crime, a primeira impressão do detetive é um grande choque; porém, um bom detetive não pode cair na armadilha do primeiro impacto (do espanto somente!), ele precisa selecionar algum fato importante, analisar, entender o funcionamento das coisas, ativar conhecimentos gerais e elaborar hipóteses. Um detetive não pode inventar dados que não existem na cena do crime, pois pode ser fatal na descoberta do assassino. Ele poderá acusar um inocente.

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem e etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas” [ VILLAÇA & ELIAS, 2008, p.12]

No caso de um crime, a interação não só se restringe entre o assassino e o detetive.  A investigação policial trabalha com três dimensões que operam funções diferentes: a relação entre O MUNDO DO DETETIVE- O CENÁRIO DO CRIME- O MUNDO DO SUSPEITO(S) DO ASSASSINATO.  A produção do(s) sentido(s) do texto leva em consideração a interação entre leitor-sujeito/ texto/escritor-sujeito. Desse modo, o autor quando pretende escrever um texto, sempre visa o leitor. O texto não possui vida se não tiver esse contato entre sujeitos, a atividade de leitura possui alcance políticos e sociais, porque envolve a sociedade e o mundo. Pressupõe relação entre sujeitos e material linguístico (acima de tudo, mesmo sendo uma atividade solitária. Ler é um exercício da imaginação). O escritor trabalha com a criação do leitor-modelo que, basicamente, é produto da estrutura e da geometria de uma obra de arte, fornecidos por sinais que o texto oferece. As sinalizações textuais do material linguístico indicam o funcionamento da estrutura, o leitor pratica a compreensão, o ato de reconhecer, quando mergulha no material, ele caminha e toma as decisões de acordo com os dados fornecidos da estrutura, dialogando com o texto. Interpretar é a última atividade da leitura.
Assim como o detetive, não se deve abalar com o impacto do homem morto e falar o óbvio: a faca atravessando a cabeça. Isso é uma informação dada por qualquer espectador leigo. A leitura é uma atividade de descoberta que exige perspicácia no momento de elaboração das perguntas. No ato de assassinato, a última pergunta que deve ser feita é: “quem é o assassino?”. Antes disso, o detetive se debruça na observação da disponibilidade dos elementos postos no cenário do crime. Ele precisa fazer outra pergunta: “como é que o homem de vinte e oito anos morreu?”.
Ler exige uma atividade dupla, a de reconhecimento e a de interpretação da estrutura.  É uma atividade que trabalha com a relação entre sujeitos-material, portanto, não é separada do mundo e também não é deslocada do universo material linguístico que o texto propõe. O leitor precisa de perspicácia no momento que mergulha no material e, para isso, cria estratégias e procedimentos para a apropriação do texto. Dialogar com o autor, criticar, inferir, elaborar hipóteses, antecipar, recuar e validar informações são exemplos de procedimentos de leitura. O leitor também é criador, pois a tarefa de produzir sentidos para o material é dada através dessa interação.

O Leitor Apaixonado

O único conselho que se pode dar com a leitura é o seguinte. Nunca perca o ânimo e nem o deslumbramento com os livros. Apaixonar-se é o grande segredo da arte, afetar-se com o mundo do outro e sentir-se parte de algo maior. Talvez, uma tradição. Talvez, uma causa política. Talvez, o mundo. Percebam que eu só disse: talvez. Não confirmei e nem neguei nada. Cada um tem o seu caminho intelectual, alguns seguem mais exageradamente e com mais selvas no meio do caminho, outros vão direto para o paraíso. Não existe caminho melhor ou pior, apenas rumos diferentes.
Entrar numa peça de teatro ou assistir um filme com o rosto de um homem que já consumiu tudo que existiu e não consegue mais achar nenhuma centelha de vida em mais nada: nenhuma conversa, música, teatro, filme ou pessoas.  É deprimente. O mundo não pode ser composto por críticos literários frios que apenas reconhecem as estruturas literárias e categorizam em linhas de pensamentos da Arte, da Filosofia ou da Literatura. Ler é desbravar o mundo.
Por isso, faço um apelo a todos os artistas, críticos literários, amantes de arte e intelectuais. Aprendam a ficar leigos novamente, esqueçam todo o conhecimento diante de um espetáculo teatral ou livro novo. Vivam esse momento apenas como leitor apaixonado, sem análises, críticas ou teorias alheias. Apaixona-se deveria ser a primeira regra para um crítico de arte, afinal ler é afundar-se no mundo do outro.
Não entre na obra alheia com tédio como se conhecesse tudo. Ler é um passeio no bosque, parafraseando Umberto Eco, caminhe sem pressa nas selvas do universo do outro. Descobre o que não te agrada e redescobre caminhos para encontrar o que havia perdido como ser humano. A consciência ativa de leitura é só uma maneira de aproximar o leitor-sujeito daquilo que ele não consegue separa-se inteiramente que é o mundo. Isso não se pode entrar calmo, distraído e entediado, não faça caretas blazés no meio de uma cena nova, aprende a surpreender-se de novo como um leigo que nunca viu um filme, uma peça ou avião. A leitura é o melhor remédio para curar egoísmos e ignorância.
A atividade de leitura é uma prática que deve ser ensinada antes da leitura de um livro. Ler é perceber o mundo. Abrir a cabeça para as relações que existem nele, os espaço que estão distribuídos na sociedade. Fazer a leitura de algo é aprender a ouvir melhor, cheirar melhor, tocar melhor e enxergar melhor. Não é todo mundo que percebe que o momento de “agora” e “aqui” é único, o presente é um tempo intransferível, não por que é transcendental e efêmero. Na realidade, o tempo presente é intransferível, porque é interpretado e contado de várias maneiras, o ponto de vista determina a visão do momento vivido. Ler também é uma aprendizagem de respeitar as diferenças formas de interpretação da realidade.
O leitor apaixonado nem sempre será aquele que vai demonstrar e explicar os mecanismos de uma estrutura literária ou dramatúrgica. Ao contrário, às vezes, não apresentará tudo de um livro, só vai selecionar aquilo que lhe interessa como leitor destacando como algo mais belo e perfeito que já foi feito. O apaixonado não é sinônimo de leitor culto. Mas, pode acabar sendo sinônimo de leitor crítico.

Conclusão

Ler é uma atividade complexa que implica uma série de procedimentos e relações implícitas para o entendimento de um material. O leitor é também um sujeito da interação que cria significados e traz o seu mundo para lidar com os símbolos de uma obra de arte. Ler é muito mais do que lidar com um material linguístico, também é lidar com algo que vai além da arte. É lidar com a realidade, sabendo que ela possui muitos pontos de vistas e que, portanto, passa a ser tão complexa.

Indicações Bibliográficas:

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Escrita, Leitura, Dialogicidade in Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. (Org.) Beth Brait. 2 edição revista. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, pp. 265-273.
KOCH, Ingedore Villaça e ELIAS, Vanda Maria. Leitura e sentido in: Ler e compreender: os sentidos do texto. 2 edição. 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 9-37.

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[1]  BRANDÃO, Helena H. Nagamine, 2005.
* Esse ensaio não possui subsídios para se aprofundar mais nas questões teóricas de linguística textual, não tem intenção de ser acadêmico. O produto dessa reflexão foi feito por um leitor também apaixonado, há excessos de apaixonamentos.