domingo, 31 de março de 2013

Os atores, a plateia e o teatro do mundo


“Parece de súbito compreender, sem se explicar no entanto, porque nos últimos tempos sua inquietação crescera como um corpo de menina que pressente sufocada a puberdade” (LISPECTOR, Clarice. O Lustre. Rio de Janeiro: Rocco, p. 256)




I

Quando eu olho pro palco, me pergunto: será mesmo que é o ator que atua ou será que ele imita a minha vida banal? Essa vida banal que não questiono, deixo que me leve para algum lugar, essa vida que não chega ser um melodrama norte-americano com final feliz. Algo qualquer. Existe algo que me impulsiona viver, mas não tem nada a ver com fingimento, é só algo grandioso, é algo que desbrava a vida e me faz não querer apenas existir.
Não sei bem por que sempre gostei da figura do ator. Na minha infância, perguntava-me com uma coragem maior que de um adulto, frontalmente, sem escapatória. O que é um ator? O espelho nunca me respondeu, os poetas sempre rodeavam a pergunta com explanações, os intelectuais, nas suas teorias frias, se esqueceram de explicar-me que na prática a teoria é diferente. Ah, como ninguém me respondeu, não me atrevi a tentar um rascunho de resposta.
Na primeira vez, quando eu fiz os ensaios para uma vida que a criança não tinha mais espaços. Tive que abandonar a atriz que guardava no peito, para elaborar uma vida de espetáculos e falsos discursos. Larguei a atuação, para atuar intensamente numa vida que não se parecia com a minha. Virei uma atriz em tempo integral. Nessa primeira vez, nunca me pareceu que a força teatral fosse absurdamente poderosa (não estou falando em transcendências), estou falando de vida real. O mundo é um lugar de fingidores, de falsos humanos e marcas tão bem definidas. Sempre me educaram para ser adulta, nunca me educaram para ser sem máscaras, sem personagens, carne viva, um ser humano comum.
Não sei se eu senti um arrebentamento de angústia ou de tristeza. O gosto de ambas é bem parecido. Quando eu olho pro palco, não vejo transcendência artística, vejo um ser qualquer, querendo ser ele mesmo. Vejo algo parecido com o que eu devia ser, algo que não é eu, mas curiosamente, deveria ser. Quando eu olho pro palco, o ator exagera os meus defeitos, mas também realiza os meus desejos. Não é divino, é real. Tão real quanto o valor que o dinheiro tem nessa sociedade.

II

Abandonar a ficção fez que o mundo se abrisse aos meus pés, a percepção se mostrou mais eficaz sobre o que a realidade poderia parecer. Nada era o que a minha imaginação queria acreditar, lá na pontinha do coração ainda rezava o otimismo norte-americano dos happys ends. O sonho de ver a tragédia da gigante indústria cultural U.S.A caindo; ao mesmo tempo, um pouquinho desse veneno vendido para todos nós, um pouco desse desejo de sucesso. Um pouco da alegria eufórica, imbecil, ridícula. Quem nunca desejou um beijo na chuva, um príncipe de cabelos loiros, sexo selvagem em plena segunda-feira até dormir de cansaço.
Sonho que me engoliram goela abaixo. Luto todo dia para tirar esse sonho de mim. Para fazer um novo sonho, criar um novo modelo de desejo, porque uma parte de mim é humana, a outra é animal. Sou feita inteira de desejos, de repulsas e traumas. Não posso tirar de mim. Tirar a minha vontade de desejar é tirar o que poderia desbravar um novo sonho, uma nova vida. Ao invés de tanta perfeição, queria mostrar o que não é perfeito. Queria mostrar o sonho virado no avesso.
A realidade não se parece com as palavras bonitas da Bíblia, nem com as palavras cruéis dos senhores que tanto a leem e se esquecem de mostrar as passagens perversas nesse livro. Como se o mal também não fizesse parte de mim, como se o bem fosse tão poderoso a ponto de não precisar do oposto para manter-se vivo. Que adianta tanta metafísica? O mundo não é um sonho.

III

Eu, como plateia, olhando um ator atuar. Assumindo a minha posição plena de público. Enxergo um ator e tento pensar como ele: “nesse momento, a virada cênica é aquele movimento. Aquele ali está puxando o ponto de vista, jogou a bola pro outro. A luz está ajudando a manter a estrutura da narração. Apagou. Agora, é minha deixa. Não posso esquecer de pegar o copo, não posso, não posso e preciso olhar para plateia. O foco é meu.”
Ele é o signo de mim. Nem sei se o ator se identifica tanto comigo, deveria, ele faz isso para mim que sou a plateia. A responsabilidade é dele de transmitir um ponto de vista, é preciso saber que ele não é ele. Eu como plateia também não sou eu. Estamos todos atuando conjuntamente. No teatro que vai além do teatro.
Nessa peça, eu vou continuar atuando. Atuarei como plateia, mas também como eu mesmo diante do mundo. Nesse mundo que me apresentaram como um sonho quando criança, mas, ao pisar os pés na realidade, se mostrou avesso a tanta metafísica. Não sei se sou eu que enxergo o mundo de cabeça pra baixo ou se mundo já estava assim e me apresentaram um buraco da fechadura meio quebrado, meio 3D, que tinha umas fotos bonitas. Quando abri a porta, quando arrombei ela inteira no chão, deixei-a em pedacinhos diante dos meus pés, percebi: o ator sou eu, aquele que está no palco é só um signo de mim.

IV

O ator não sabe que ele é mais verdadeiro fingindo do que eu tentando falar a verdade. Eu também não tinha ideia que eu, como plateia, me encontro mais do que fingindo seguir as regras do mundo que me colocaram antes do meu nascimento.  A empatia que eu tenho com esse ator é que nós dois fingimos viver, mas são fingimentos diferentes. O meu depende da minha vida inteira, enquanto ele depende somente aqueles cinco minutos de cena.
Ele não sabe, mas para o ator se tornar minimamente real, precisa tanto de mim mais do que eu preciso dele. Isso é tarefa para quem está disposto ser intenso a vida inteira, não tarefa para quem está disposto ser apenas um existente de sonhos contrabandeados dos Estados Unidos. Não pensa que a intensidade se compra em farmácia, ela está onde menos espera. Naqueles detalhes que não se percebe no primeiro olhar e existindo numa caixinha de ferramentas, como plateia ou como ator, não fará notar os detalhes que rodeia o seu mundo.
No dia que perceber esses detalhes estampados no seu nariz, a felicidade vai te dar uma tristeza tão grande de existir. Não por que o mundo é bonito, mas porque o mundo é real. A realidade é tudo fruto da imaginação dos humanos. O ator é só a barata de Kafka mais moderna, mas ele anda em todos os lugares, o palco só mostra o que a gente esqueceu de ver todos os dias. 

quarta-feira, 27 de março de 2013

O homem do Bar Pescador


Primeira parte

Uma turma de amigos, na faixa etária entre 18 a 20 anos, alguns risos e alguns sonhos, celebrando as existências de ruínas que tiveram até agora e alguns apagamentos da história. A vida é uma piada. Uma música na moda ao fundo: “eu quero tchu e tcha!”.  E uma certeza exata que pra ser feliz, só basta de pouco.
Um músico se levanta e diz:
- “Porra, o Celso Russomano está tão feliz, repararam o sorriso no rosto dele quando ele fala que o Maluf não é problema dele. O Russomano diz: pergunta pro Haddad sobre o Maluf, isso é problema dele agora. O Maluf  é a batata quente que ninguém quer segurar”.
Outra mocinha fala alto, blusa vermelha e óculos escuros:
- “Apesar dos pesares, ainda prefiro o capitalismo doce da política petista que a política salgada psdebista. O Serra já era, gente”.
A Má reafirma:
-“Ainda prefiro o PT, o Serra é muito ruim”
A turma falava desses assuntos banais, enquanto olhava uma notícia de Jornal sobre a declaração do Serra discutindo o assunto  do transporte público em São Paulo,  na notícia o político tucano atacava o opositor e declarava que o bilhete era mensaleiro, tinha um título enorme em letras garrafais: “Bilhete Mensaleiro do Haddad”. O menino cabeludinho, (chamado carinhosamente pelas três meninas de “Kazinho” ou “ Trastinho”), finalmente, pergunta para todas enquanto pula em cima do corpo da Roxinho para abraçá-la: “Pra onde a gente vai?”
- “Porra, Vamo pra Cuba a pé!” (diz Mari, a moça de blusa vermelha)
- “Se a gente continuar assim, andando desse jeito, é capaz mesmo da gente ultrapassar fronteiras”. (Má ri, concordando com Mari, as duas andam abraçadas pela calçada, só três horas de conversa, mas já eram amigas de infância).


Segunda parte

Roxinha começa a cantarolar uma canção na mesa. Kazinho começa a batucar na mesa. Má também acompanha a cantoria, Mari fica batucando e puxa a dançoria. Todos acompanham o ritmo da música com o corpo, ficam fazendo isso por uns tempos. O Garçom se aproxima e pergunta:
- “ eu quero ver a carteira de identidade de vocês”
Todos mostram. Má não consegue achar nenhum documento com foto na bolsa, mostra todos os cartões de crédito e etc, até conseguir achar algum. Finalmente, compram as bebidas.
- “ é o que dá a gente ter carinha de jovenzinhos. Né não!.. Garçom”. 
O garçom responde com a cabeça afirmativamente. 
- “vamos pedir uma porção de batata fritas”
- “alguma preferência de cerveja?”
- “pra mim qualquer uma”
- “pra mim também. Será que é mais barata que no outro bar? GARÇOM, quanto que é a cerveja aqui?”
- “ seis reais”.
 A turma olha com o rosto de desconfortamento. Mas dão risada logo em seguida.
- “ eu posso só pagar uma”
- “a Má já pagou a primeira cerveja do último bar”
- “ é verdade! Deixa que a Priscila quando chegar, pague todas as rodadas...”
- “ é isso aí, ela que chega atrasada, ela que paga!”
- “ Então, gente, esse papo está com a nota 9,18!”
Gargalham. O último bar que eles estavam era lá embaixo da R. Augusta, chamado Pescador. Era um lugar mais ou menos, mesmo assim, a cerveja era muito cara, só puderam beber uma garrafa. 
A Má virou o copo, olhou e rindo disse:
-“nunca mais vou esquecer aquele cara, vocês ouviram o que ele falou quando eu perguntei de onde ele era, (as mãos em cima da mesa, os olhos fixos no copo, Má reproduzia o jeito do homem misterioso do Bar Pescador): ‘eu vim dos seus pés’”.
Kazinho encheu um copo de cerveja e colocou no meio da mesa:
-“esse é da Priscila, ninguém mexe”
- “Poxa trastinho, que maldade!”
Todos riam. Mari cruzou as pernas lentamente, olhou o rosto de Kazinho e disse:
- “Então, eu quero saber o nome da mãe de vocês, um por um:
 1) Regina -  Kazinho disse
2) Maria – Má disse
3) Neide – Kazinho outra vez, mas com uma voz de mulherzinha
4) Messias (Roxinho imitava Mari nessa cena)
MESSIAS!”
Roxinho sentou com as pernas cruzadas na cadeira. Deu risada e bebeu mais um pouco de cerveja. Mari arregalou os olhos, pegou as mãos de Roxinho e perguntou:
- “sua mãe se chama Messias mesmo. Nossa! Não posso falar da bíblia aqui. Olha gata: eu rezei tanto pra Deus pra aparecer alguma coisa boa e apareceu você, a filha de Messias”.
Mari deu risada, sentou normalmente e colocou mais cerveja no copo. Roxinho disse:
- “poxa, o cara te pegou pra Cristo...”
- “pois é, pegou mesmo. Cara doido! Ele não parecia estar bêbado só, parecia ser outra coisa, o cara conversava com Deus, você viu Má, ele dizendo que preferia morrer com essa loucura, porque ninguém podia tirar dele a experiência de ter visto Nossa Senhora”.
- “não parecia ser só bebida mesmo não”
- “não era” – respondeu Kazinho. Roxinho interrompeu com olhar de seriedade
-“Sabe o que o cara parecia. Tipo um daqueles caras cheios da grana, muito rico, que perderam tudo, teve que dividir a herança com mais quatro ou cinco pessoas. Só ficando com o terreno dele e os pés de cajueiro, na maior decadência”.
- “tipo isso mesmo. Mano, acho que ele era budista, sei lá, mas ele tava muito louco”
-“ se a gente deixasse, ele ia beber mais cerveja nas nossas costas, viram a interpretação que ele tinha feito, dizendo que tinha esquecido dinheiro em casa”
-“ não esqueça a perninha cruzando” – Kazinho puxando a piada. Todo mundo rindo junto.
- “ e a mãozinha ao vento, lembra Mari..”
- “lembro Má, ele falando que não esperava mais nada da vida, já tinha perdido tudo. Aí Deus falou que ia levar a mãe dele embora, (imitando o homem do pescador, a mão direita em cima das orelhas e mexendo os dedos): ‘quer levar a minha mãe embora, então leve... Adeussss!’ Não dá pra enfrentar a morte. Ela sempre ganha.”



Terceira parte

O homem do Bar Pescador é careca, rebola a bunda enquanto anda, usa camisa branca, uma calça cinza toda mixada. Um restinho de cabelos brancos na barba e atrás das orelhas, caminha por entre os bares esperando que alguém o escute, procurando compreensão. Mas todos fogem dele.
Segurando a mão da filha de Messias, ele olha nos olhos da mocinha, bem arregalados. Depois de ter aberto o coração para aqueles jovenzinhos, espera o que deles? Segura nas mãos da mocinha.
A mocinha diz: “Tá tudo bem!”
O homem do Bar Pescador: “Eu preciso ir ao banheiro. Gente, eu vou, mas esperam, porque essa conversa está com a nota 9,18” 
A turma de amigos sai de fininho, correndo na calçada já misturada com as cores noturnas. Eles gritam: “vamo ver gente bonita, metida e descolada!”.
A mocinha diz: “Cara doido! E ele: ‘sou contra o homossexualismo. Não, Não, não é contra, essa palavra é muito forte. Mas eu não dou a bunda pra ninguém, um monte de gente quer comer ela, mas não dou, não dou!... Eu só como a bunda dos outros’”.
Roxinho diz: “ eu gosto de ver gente assim, o povo do teatro me levava pra conversar com esse pessoal”
Kazinho: “ é capaz da Mari fazer um conto sobre isso, do jeito que eu conheço essa menina”
Mari: “ Ei trastinho! Vamo pra outro bar, o Kazinho paga tudo dessa vez!” 





quinta-feira, 21 de março de 2013

O caderninho de amigos de Toninho


Um dia, ele soube. Sentado sobre a pedra, entendeu toda a sua vida por um átimo de segundos.

Assovio.

Antônio procurou Maurício, não encontrou, descobriu que estava morando no Chile; abandonou então a vontade de revê-lo. Ele tentou encontrar Gina, mas descobriu que tinha morrido atropelada por um Pálio preto. Na antiga casa de Santo Amaro, onde ele morava, tentou encontrar a antiga professora de matemática, mas nunca a encontrou, lembrou apenas do perfume, muito forte que ela tinha, sentiu uma saudade intensa. Quando a sua mãe morreu aos 90 anos, Toninho pensou que nunca mais veria ninguém no mundo. Passou a morar numa casinha longe da cidade.
Lá, procurou a última pessoa amada da sua lista, o seu tio chamado Zé; andou, andou e andou. Caminhava caminhos diferentes e desconhecidos. Cansou tanto, não tinha ninguém para conversar às seis da tarde. (Antônio sempre tinha alguém pra conversar às seis da tarde, numa época distante que ele ainda podia atuar com a inocência séria de uma criança brincando. Toninho era um moço envelhecido, olhos curvos e sadios, um sonhador. “Mas os tempos estão difíceis para os sonhadores” [ frase do filme Fabuloso Destino de Amélie Poulain]. Ele sempre tinha alguém para conversar às seis da tarde,  por isso passou a ter hábitos estranhos, ainda quando morava na cidade, passara a conversar com desconhecidos nos pontos de ônibus. Ouvia as histórias de homens e mulheres, pensando: ainda vou escrever as histórias de todas as pessoas do mundo, será a maior declaração de amor que já existiu na Terra). Vou escrever um romance e colocarei na dedicatória: “ para todos os meus amigos”. 
Andando, encontrou Odisseu. Ele voltava com as pernas turvas, procurava algum lugar para morar naquela cidadezinha. Trinta anos que os dois não se viam mais, Toninho viu que ele estava mais bonito, mesmo estando mais cansado, teve vontade de dizer: “bom dia!”. Um passou pelo outro, não se cumprimentaram, trocaram olhares. Dormiu um tanto atormentado, passou por um amigo sem dizer o quanto ele amou e significou. A solidão abateu os seus ouvidos.

Procurava, então, no dia seguinte, o seu tio Zé. Às seis da tarde, ainda era o pior horário do dia. Ficou sabendo que Lilian se enforcou numa sexta-feira, sem deixar um bilhete de despedida. Maria morreu de câncer. A sensação de falta soprava a sua nuca, conversou certa tarde com um velhinho solitário e ele falou:
- que você procura rapaz?
- amigos
- e por que não acha eles?
- porque o tempo andou matando a vontade de ter mais tempo com eles
- Rapaz, o tempo é sempre inimigo de nossa vontade, brigar com ele é pior, é inútil preencher esse vazio que o mundo te abriu. Todos nós somos sozinhos
O velhinho cantou uma canção em outra língua para ele. Toninho sentiu vontade de chorar, dormiu com menos tristeza, desesperançado, quase tinha desistido de encontrar o seu tio Zé.

Numa tarde de domingo, recebeu uma carta. Descobriu que Margarida morreu em um acidente aéreo. Era outra menina que estava na lista de amigos. Uma menina, linda de olhos azuis, que pintava quadros verdadeiros e sensuais, adorava representar os prédios frios da cidade, não sentia necessidade de flores, gostava de cachorros.
Toninho olhou o seu caderninho de amigos. Rabiscou em vermelho, apagando outro nome naquele caderno, guardando apenas no coração outra lembrança de abrigo no mundo. A angústia é uma pulga que morde a carne devagarzinho, coça tanto e machuca a pele até deixar a carne exposta de tanta coceira. Fixou os olhos no teto branco.
Decidiu criar uma galinha de areia. Os dedos molhados de água criava a escultura de galinha no meio da praia. Saiu uma galinha torta, olhos melados de tristeza e solidão, nem era uma escultura bonita. Toninho só sabia mesmo escrever, nem conseguia ser um grande escritor, era só um escritorzinho anônimo. Olhou a escultura, sentou na pedra e respirou um ar diferente dos outros dias. Foi para casa, dormiu à noite toda.
A escultura de galinha continuava firme no dia seguinte. Sentiu esperanças de continuar o caminho. Andou. Encontrou o sítio do tio Zé, chegando lá, perguntou ao um menino:
- onde está o seu Zé?
- Ah! O senhor tá procurando ele?
- sim
- Dona Maria! Ô Dona Maria!
Dona Maria era uma velhinha simpática, olhos cansados, carregava um balde de roupa na cabeça.
- que que foi menino?
- esse senhor aí tá procurando o seu Zé
- ah é! Entra, quer um café? Vem cá, vou passar um agora – disse a Dona Maria
Toninho entrou desconfiado. Não sabia o que podia acontecer.
- cê foi alguma coisa dele?
- era amigo, não, na verdade, eu sou sobrinho dele
- ah! Que açúcar?
- sim
Toninho enxergou a casa simples, louças simples e um sol firme sobre a cabeça de todos. Quase esqueceu da sensação de sentir o calor na cidade grande, era um calor que fazia mal, era muito poluído. Ele diminuíra diante de tanta beleza simples, sentia um ser sem cultura; cidade grande estraga o sotaque; estraga o amor.
- você é de onde?
- sou de São Paulo. Senhora, o seu Zé vai demorar pra chegar?
A caneca quebrou subitamente. Migalhas sobrevoavam o chão. Ela olhou com espanto, uma voz silenciosa de choro saiu de sua boca. Ele não sabia como reagir, continuo parado, esperando a palavra decisiva.
- senhor, el..e...mor-r-r-r...êuuuu...(pausa) a-nnnnno pas....sa-do
Silêncio assombroso. O vento assoprou, dando a última palavra entre os dois.

A escultura de galinha perdeu dois fios de areia. Toninho voltou para casa, não conseguiu chorar, rabiscou outro nome de amigo no caderninho. Sentiu muito frio. Não dormiu, quando acordou já era seis da tarde. O pior horário do dia! Foi caminhar na praia, procurou a sua escultura. Mas não achou, ela tinha sumido com vento. Sentou no lugar onde antes era da galinha que criou. A areia perpassava os dedos, era tão fina, o vento assoprava sua nuca. 
Naquele dia, Toninho respirou pela última vez, nunca escreveu um livro. Diziam as pessoas que ele estava muito doente, era uma doença maldita que tinha machucado todo o seu sistema imunológico. Mas, na realidade, ele se foi, porque queria encontrar os seus amigos em outro lugar. (Esse narrador gosta de imaginar que a busca de Toninho não terminou. Toninho virou vento).  

sexta-feira, 15 de março de 2013

Ar


Eu ando respirando com dificuldade. Não é mais oxigênio que está no meu corpo, é um outro tipo de ar que respiro. Não, também não é o monóxido de carbono que me acostumei a respirar, essa cidade fede e estou acostumada com seu cheiro. Ar seco, vento cortante. O ar que não consigo botar pra dentro e pra fora é outro, tem outro nome. Nome que não consigo nomear.
Na minha frente, dois homens queimando um. Atrás de mim, um fotógrafo bonito. (Preciso comprar o presente pra minha tia, o aniversário dela é amanhã). É um ar só meu, acho que é o efeito egoísta que aprendi nas escolas. Estou sim, sendo a pessoa que me ensinaram ser. Ser mais eu e só eu, os outros não me importo, não tenho tempo. Só tenho tempo pra mim.
Passo numa rua cheia de mendigos, me lembro, então, da frase de um rap: “eu sou o resto do mundo, eu queria morar numa favela, o meu sonho é morar numa favela”. Mais ou menos assim ou coisa parecida. Não sei o que eu faço? Eu relato: não seria um fetiche. Não relato: não seria omissão. Isso tudo não é os efeitos do que a gente escolheu (ou que escolheram pra gente e não opinaram se a gente também queria?). 
Esse ar está difícil. É um ar que pesa. Ninguém te olha, todos estão em si. Talvez, respirando o mesmo ar grosso e sem nome que nos rodeia. Um ar que está no limiar do ser humano, não gostamos de sentir, nem sabemos se isso é ar ou se é sinal de morte na vida.  Por quanto tempo uma pessoa vive sem respirar?  Não consigo dizer que limiar é esse. Isso não ajuda, ainda continuo respirando difícil. Dizer que é um ar incognoscível não ajuda compreender e explicar a natureza desse elemento natural. Poderia perguntar: o quanto de natural eu fui ensinada a não respirar? O contrário também valeria: o quanto de banal esse ar pesado e inominável estava em mim e no meu cotidiano, mas não percebia respirar?
Dou voltas pela cidade. Perambulo... Perambulo... Penso em contos, penso em Arte, penso em sonhos. Rio comigo mesma, sou cruel com o meu consciente. Um velhinho me paquera, eu nem respondo, finjo que nem ouvi...Perambulo...Perambulo... O ar me pesa, faz parte de minha identidade, quero longe de mim, mas não consigo. O ar é mais forte, meu corpo apreende ele como sangue. Meu cérebro foi oxigenado por esse novo elemento. Não, o ar é meu, mas também é nosso.
Perambulo. Desisto de escrever sobre tudo, canso de respirar, tampo a respiração. Não adianta, o ar é todo manipulado por meu corpo. O corpo é tão eu quanto a mim. Desisto de pensar na definição disso, não faço mais Arte de banalidades. De que adianta a Arte se o ar oxigena todo o meu sangue? De que adianta a poesia se ninguém respira direito? Eu não respiro, eu finjo que respiro para sobreviver.
Perambulo... Perambulo....

quarta-feira, 13 de março de 2013

Divagando nas sextas com óculos escuros muito estiloso


A

Então... Pausei de novo. Larguei as minhas responsabilidades para atravessar São Paulo por causa de outro estranho que conheci à toa. Ar seco. Muito quente. Podia chuver, né?
- oi, cê podia me dá algo pra mim comer? Qualquer coisa serve?
-num tenho não, só tenho aqui dinheiro pra passagem
Pra variar, a multidão de homens e mulheres bem vestidos caminhando por aqui, tropeçando nos pés dos outros sem olhar, todos estressados. Tem coisa que nunca muda, por exemplo, essa Avenida. Continua a mesma, porém, silenciosamente, degradada.

B

Mas, eu? Eu? Claro, eu sou paulistana patriótica. Sou tão paulistana quanto o esgoto do Tietê, porque essa cidade é feito por homens inocentes e limpos, tão cheirosinhos, que se esquecem de limpar a bunda quando saem de casa. Abandonam-se ao odor de bosta, pois acostumaram-se a sujeira patriótica.  A ordem é essa: amai-vos e fedei-vos, juntos irmãos! O progresso é uma coisa emocionante (quase apoteótica!): câmaras invisíveis da última geração espalhadas pela cidade com uma sensação de insegurança rodando o ar (Ou será que é o cheiro do rio Tietê?).

C

Eu prefiro dormir, mas eu acordo. Abro os dois olhos e insisto em ficar sã.
- oi
- sim
- você tem dois minutos pra salvar o mundo? – diz o ativista do Greenpeace
- não tenho não
Engulo a saliva. O sol penetra meus olhos. Ando. Eu vou comer um miojo que não vai matar a minha fome hoje à tarde. Será que eu pego esse ônibus ou outro?

D

Do nada, esperando o tempo ficar meu amigo e chegar logo pra casa. Pensei algo insignificante: puta, faz 220 anos que aconteceu a Revolução Francesa! Quantas vezes o capitalismo revolucionou de lá pra cá? Eu sou fruto de tantas memórias de porcarias e violência. Mesmo não sendo francesa. Também nem precisa, meu Brasil do doril e anil, tem nome de remédio e não tem a cura do câncer nem da AIDS. Brasil, meu Brasil, por que você ainda gosta de fazer crianças se faz tempo que a miséria toma no seu rabo e diz que aqui não tem mais espaço pra mais homens doentes?
Meu Brasil! – o seu lema é: “ A Merda e Os Fudidos”. 

E

Mas o Brasil é o país do futuro. O Itaquerão é o centro do universo em 2014. Esse país ainda vai pagar a conta da crise econômica mundial. Sim! Os fudidos vão doar o sangue, os fudidinhos e o coração para alimentar a economia internacional, a merda vai adubar o projeto capitalista.  O Brasil é o super-homem!

F

Quem diria? Eu, em plena juventude, assistiria de perto uma mudança da nova ordem mundial. O gigante vai morrer. Está morrendo.

G

Cheguei. O tempo passado é um agora cheio de séculos. 

domingo, 10 de março de 2013

A história desinteressante da morte de Marcos


1
Desenrolando dentro de mim alguma tentativa de alegria. Busquei tanto a liberdade de escolha, resvalei no mais fundo de mim um sonho que me engolia inteiro. Sou uma tentativa frustrada do mito que criei em torno de mim. Não sou nem metade da pessoa que eu gostaria de ser. A minha realidade tem mais tédio, minha argúcia angustia. Procuro cigarros.
Fumo.
Leio Baudelaire, estou cada dia mais entregue aos prazeres da pequena burguesia. Minhas contradições me levaram a melancolia profunda. Descobri esses dias que eu tenho uma doença, não contei pra minha família ainda. Quero que todos pensem que sou saudável. Às vezes, pela manhã, sentindo o cheiro de suor nas minhas mãos, penso em suicídio, mas acho besteira. É frescura de quem tem tempo pra sentir melancolia. Crises existenciais, normalmente, são para burgueses.
Fumo.
Como é que é subjetividade de pobre? Pobre (preto, favelado e sujo) não pode ter existência, não pode duvidar a sua alma? Não pode exercitar o pensamento? Como seria a Odisséia de um menino de pés descalçados, sujo de barro vermelho? Como seria um rapaz fazendo líricas do seu time do coração no botequim da esquina de Guarulhos? Não seria uma espécie de poemas perdidos da oralidade do povo. Essa Paulicéia que sempre abrangeu o mau gosto. É, como diria o Zé, a energia de Sampa é ruim porque tem um rio de bosta que atravessa a capital, falta a praia.
(É, mano, quem tá acostumado com mau gosto, o inferno é fichinha!).

2
A figura de um cachorro chamou-me a minha atenção. Os dois olhos pretos fixamente parados flertando com um osso de galinha jogado no lixo, espalhado no asfalto. Ele me parecia tão concentrado, mas tão serenamente feliz. Acho que estou ficando meio louco.
Ontem, Diego me ligou, perguntou se eu ia dormir na casa dele. Eu perguntei: a sua mulher vai estar aí? Ele me respondeu: não, pode vim! Ah... Diego é um desses babacas que sempre é bom pra guardar como reserva, saca? Senão pra transar, ao menos, pra fumar algumas verdinhas. Eu queria era mesmo ser uma cadelinha. Mano, já tô pensando umas paradas aí que não estão ligando umas com as outras. Acho que estou ficando meio louco.
Esse cachorro quase abriu um sorriso de sacana pra cima de mim. Ele tá tirando uma com a minha cara, só pode ser. Seria engraçado se eu matasse ele, queria ver se esse animal continuaria sorrindo pra cima dos homens.  O animal pensa que é mais feliz que toda a humanidade. Vou jogar algo nele.

3
Saí correndo. Acho que matei aquele cachorro.
Não importa. Um cão é sempre um cão.
 O homem é um ser irracionalmente racional.

4
Mano, advérbios é foda! – só consigo pensar nisso, enquanto transo com Diego. Acho que vou desistir de ser escritor.
Ei Marcos, cê tá bem? – perguntou Diego
Mano, - respirei longamente -, estou naqueles dias sabe. Matei um cachorro hoje, vindo pra sua casa.
Marcos olhou pra mim com um ar de tanta normalidade. Peguei o baseado, fumei e ele falou:
Matar um cachorro! – tossiu – por que?
eu tava com muito ódio – coçando a barba – da felicidade e da inocência do cão. Aí, pra me resolver, mano, peguei a garrafa de cerveja que eu tava tomando e joguei em cima dele. Só acertei na cabeça, vi um pouco de sangue jorrando e saí correndo. Um cão é um cão, ninguém vai sentir falta dele
mas – disse Diego – é só por isso que está longe hoje?
- Diego. Sou um merda, não tenho nada, não sou nada e tenho dentro de mim toda a babaquice e idiotice da humanidade. A burguesia tanto fez que conseguiu me viciar com seus valores, sou um deles, sou uma máscara de mim mesmo. Sabe qual é a pior lógica disso tudo?
- é a essa falta de nexo nisso tudo?
- Não é não. É justamente a lógica disso tudo. Aquele cão merecia morrer, porque eu quis.
- o que você vai fazer?
- nada

5
Não tive coragem de cometer suicídio.

6
Passei naquela rua de novo. Vi o animal deitado no asfalto, a cabeça toda ensanguentada. As pessoas passavam por cima do animal e não viam, pisoteavam e se pudessem até sambariam em cima do cão. É muito bom sorrir das desgraças alheias. Confesso que também fiquei com um gosto de alegria na boca. O cão estava morto e humilhado. Eu quase senti que a vida era boa.
Acho que acabei morrendo no dia seguinte. Não me recordo a data. Também não interessa muito, a vala que eu fui sepultado foi de indigente. Morri como um animal, ninguém sabia o meu nome. Fui morto, na verdade, me mataram, por que? Eu não lembro. Acho que eu estava lá, sendo eu mesmo e morri. 

sábado, 9 de março de 2013

Mitos e anônimos: o caso de Leila para sempre Diniz





Como escrever? Ela que já foi um mito para as mulheres, já foi uma musa para os homens, já foi uma atriz que ganhou prêmios. Hoje, ela é anônima. Quarenta anos (e poucos), depois da Ditadura Militar Brasileira. Quem é Leila Diniz? Um nome. Uma figura. Uma vadia. Alguém.
- Bruna! – me fala um amigo – você tem que escrever algo sobre ela. Faça uma  dramaturgia que imita a figura imaginária que o mundo criou dela
- ah! Um dia eu faço...

Três pontinhos. Um dia eu faço. Esse dia nunca vem, ele passa, passa e continua distante. Passa o ano, vai outro e dias e horas. Me falam sobre Madonna, Marylin Monroe, Audrey Herburn e entre outros. Mas cadê aquela que, em pleno período da Ditadura Militar, tirou uma foto que iria mudar a vida das mulheres e ia deixar a alta burguesia carioca, absolutamente pirada. Aquela que tinha uma série de contradições, mas que, mesmo assim, com a sua irreverência, palavrões e risada, segundo Carlos Drummond de Andrade, “Leila para sempre Diniz, feliz na lembrança gravada: moça que sem discurso nem requerimentos soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão”. Ela que ninguém conhece mais, ninguém que nasceu em 1990 sabe sequer que existiu. Mas existiu.

Hoje, ela poderia ser uma lenda. Uma espécie de Vênus estranha que adora o mar e que recita aquele poema do filme Edu, coração de ouro:

“Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar
O mar é das gaivotas que nele sabem voar
Brigam Espanha e Holanda porque não sabem
O mar é de quem sabe amar”

Ou então. Com aquelas tiradas famosas que explicitam a Geni, que o Chico Buarque um dia cantou, a moça que dá pra todo mundo. Aberta pro mundo. Generosidade de corpo e alma. As frases que marcariam a presença para sempre Diniz:
“eu dou pra todo mundo, mas não dou pra qualquer um”
“Tarso: você gosta de mulher?
Leila: Gostei de mim quando fui tomar banho de mar pelada de noite em Parati e tinha aquela água brilhando com a lua. Você quer morrer, fica com aquelas gotinhas prateadas no corpo, divina e maravilhosa”

“Jaguar: Amar e ir pra cama não é a mesma coisa?
Leila: Não. Eu acho bacana ir pra cama. [...] Agora, eu não acredito nessa coisa do amor possessivo e acho chato. Você pode amar muito uma pessoa e ir para cama com outra. Isso já aconteceu comigo.”

“Cafuné na cabeça, Malandro, até de macaco”

“ – caralho
- o que é isso Leila?
-  você sabe o que é, Yoná, só não está ligando o nome à pessoa”

E muitas outras frases. Eu que lia essas frases, ficava imaginando, mano, que vontade de usar elas. Todo dialeto solto, dito com absoluta espontaneidade, sendo uma afronta ao comportamento normativo feminino e, principalmente, a língua portuguesa, bela e perfeita, entre as mulheres. Uma mocinha, tão bonitinha, dentucinha, de trancinha, não deveria agir como um moleque (dizia a sociedade, dizia a moral e os bons costumes).
Mas. No seu diário, que ela escrevia desde quando tinha quatorze anos, Leila mesma se explicaria:
“(...) Sei que me arrisco a ficar sozinha e mesmo a um isolamento maior e absoluto, mas eu pago pra ver. Não é só atitude, é necessidade, é ser. Não vou deixar de procurar em mim, saber minhas coisas, meu caminho, minhas verdades e ser como sou. Fiz essa escolha, essa opção na vida e acho que ela vale as consequências. Não vou parar pra me acomodar às coisas mais ‘bonitinhas e limpas’, às situações protetoras (que são limitadoras e podadoras), prefiro ficar aí. No meio da briga, no meio da zona, nua. Parando em tudo que me interessar”

O que é a Leila Diniz? Não acho que o mundo precisa de mais mitos. Pobre nação é aquela que precisa de heróis. Mas recordar os mortos e os possíveis ensaios de liberdade dessa nação brasileira é talvez a obrigação de todo e qualquer artista.  As vozes dos mortos ainda pairam os gritos dos vivos. Os sonhos, dessa juventude de 1968, ainda não acabaram. Leila foi um cometa, deixou rastros, estão invisíveis. Mas estão aqui.
- quando é que você vai escrever a história da Leila Diniz, Bruna?
- vou seguir o que ela ensinou a outras mulheres do seu tempo. Vou escrever a minha história, vou dar asas a minha voz, vou tentar marchar junto com o meu tempo. Vou errar, vou fazer merda. A história da Leila é um passado de todas as mulheres, mas também é o meu presente. Luto pra ser eu mesma, porque o mais difícil é sempre tornar-se aquilo que já é e sempre foi.
- então, tu não vai escrever sobre ela?
- não, eu vou escrever a minha história. Vou escrever sobre mim. Escrever sobre mim é escrever também sobre a minha geração. Eu quero a minha geração gritando o que os mortos cerraram de gritar. É isso. A história não para. Eu nunca vou escrever nada sobre a Leila Diniz. 



Indicações de Leitura:

as citações foram todas retiradas (algumas foram retiradas na minha memória):
SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Perfis Brasileiros: Leila Diniz uma revolução na praia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
outro livro: 
VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que não terminou. 3 edição. São Paulo: Editora do Brasil, 2008. 

sábado, 2 de março de 2013

O ATOR


Uma parte de mim é corpo inteiro. Outra parte é fragmento.
Tenho som e silêncio ao mesmo tempo. Sou uma orquestra estranha,
Andante, minto aos semideuses com estupendos chapéus. Eles que andam, entediados,
entre nós e me questionam: “ És um homem completo?”
E digo: “Sou inteiro. Sou um corpo completo.”

Acordo pela manhã. Procuro imediatamente a minha cabeça.
Não me recordo se eu a deixei na gaveta de cima ou na gaveta de baixo.
Procuro, procuro e procuro: “Cadê a minha cabeça?”... Penso. Bato de cara com a parede do banheiro. Eis um Espelho! Vejo um pescoço, perdi o meu rosto e não consigo encontrar. Para resolver esse problema, eu recorto a minha bunda. Arrumo-a no pescoço. Falo: “Hoje eu vou sair com cara de bunda!...”

Vou ao escritório, durmo o dia inteiro em cima da mesa.
Sonho constantemente com a vizinha pelada em cima de mim.
Mas, sempre quando passo por ela, naquela padaria da esquina, eu esqueço de perguntar o seu nome. Derramo café por entre as minhas pernas. Saio como um desastrado e vou direto ao escritório. Morto pela vergonha, quando estou diante de uma mulher bonita.
PÁ! Batem na minha mesa. É o meu chefe... Não respondo, balanço sempre com a minha cabeça positivamente. Digo que sim, encontrarei os relatórios para SGM& Company. 

Ao sair do trabalho, eu vou direto pro bar. Encontro Dinho e Marcelina se agarrando pelos cantos, converso com Dingo sobre poesia, arte, cinema, minha falta de grana e os meus sonhos com a vizinha gostosa. Ele ri.

Quando menos, eu percebo, estou sozinho. No meio da madrugada. Não quero olhar o relógio. Vejo um copo com algo alcoólico em cima da mesa (há essa hora, já não me interessa mais o que é. Eu só bebo, sem mágoas, bebo, talvez, para esquecer). E volto ao começo:

Uma parte de mim é corpo inteiro. Outra parte é fragmento.
Fragmentos de sonhos que esqueci de realizar
Fragmentos desse líquido que acabo de beber
Fragmentos desse ar estúpido que respiro
Pelo, água, ar e cílios
Vou me perdendo pelos cantos
Uma hora eu me esqueço de achar

Meu braço direito se revolta comigo separando do meu corpo. Veja! Sai andando pelo salão, - eu que aprendi ser destro a vida inteira, sou obrigado a aprender ser canhoto. – ele prefere dançar e rodopiar nas mesas, ao som de Gardel, do que ficar comigo. Não o culpo, eu também se eu fosse o meu braço, não suportaria a minha presença e dançaria por entre as mesas. Me deixaria com a cara de bunda.

Minha perna também se desvencilha do meu corpo, ela me pesa. Não consigo me equilibrar, estou com uma perna só. A perna direita sai em direção ao meu braço, eles preferem dançar. Eu fico canhoto e sem equilíbrio. Não consigo encontrar o meu eixo, fico mau humorado, sem jeito com o meu corpo.

Meus fragmentos se dispersaram. Nada na minha vida é retilínea. Todo o meu corpo se compõem por partes que não são minhas. Sou uma máquina estranha chamada ser humano, mas também não sou máquina. Quando os semideuses me perguntam: “És humano?” Eu respondo: “Sou uma parte do fragmento inteiro, a outra parte não consigo encontrar”.