sábado, 4 de outubro de 2014

Miopia

Daniel não consegue dormir, há dois meses. Ele trabalha muito, vive com a cabeça cheia de pensamentos desnecessários. É um homem culto, estudado e viajado. Não é alto, possui estatura mediana. Cortara todos os seus cabelos por conta de uma promessa, que tinha feito a si mesmo e não a Deus, nunca foi um homem religioso. Absolutamente, não acredita em Deus, mas lê literatura bíblica, da mesma maneira que devora poesias modernas. Ele sempre desejou ser poeta, mas percebeu (ainda bem) a falta de talento para escrever desde a juventude; rabiscara versos ruins e quando se casou, resolveu jogar todas as poesias fora. Daniel tinha se separado, há dois dias, e não se acostumara a dormir sozinho. Resolveu ler um livro, sentou-se e começou a leitura de Êxodo. 

Daniel estava lendo a segunda frase do texto, quando bateram a porta, a leitura, então, foi interrompida. Não sentiu medo, nem estranhou que uma visita estivesse o procurando tão tarde. No relógio da sala, indicava que era meia-noite. O homem calmo, sem cabelos, caminhou com passos largos em direção à porta. Olhou pela janela, viu uma figura enorme, cabelos negros, era um jovem de vinte anos. Sentiu, imediatamente, um sentimento adocicado e carinho pelo rosto do jovem ansioso e belo, que o esperava gravemente, Daniel abriu a porta. 

- ei! Natanael, nossa! Que surpresa te ver! -  Daniel abraçava-lhe. 
- tudo bom, tio? Eu queria uma ajuda sua. Posso entrar? - Natanael perguntou. 
- Claro, fica a vontade. Deseja algo para beber? 

Natanael sentou no sofá. Viu que o seu tio Daniel estava lendo a Bíblia, ao lado desse livro aberto, estavam outros livros de psicologia e psicanálise. Daniel não era acostumado a atender os seus pacientes em casa, quando era casado com Alice. Mas, depois do divórcio, tinha mudado esses hábitos, vendeu a clínica e passara fazer atendimentos na sua nova residência. Natanael perguntou:

- está tudo bem por aqui? É melhor atender aqui? 

Daniel lhe oferecia café. 

- ah! estou trabalhando mais do que deveria. Você quer açúcar?
- obrigado, tio, não gosto muito
- ah! estou trabalhando mais do que deveria, mas a gente se acostuma, né. É estranho dormir sozinho, depois de alguns anos de casado

Houve um breve silêncio. Natanael tomou dois goles de café. Daniel olhava para o espaço, perdido em seus pensamentos. 

- você disse que você queria uma ajuda minha?
- sim, tio. É que eu estou um pouco sem jeito pra falar.... 
- você pode começar pelo começo. Algo com seus pais?
- não, é algo com uma garota
- é a sua namorada?
- não, é a namorada de um amigo meu. Tio, ela é minha amiga, mas 

De repente, as luzes se apagaram. 

- acho que acabou a energia - Natanael disse. 


Daniel tentou acender as lâmpadas da casa. 


- acabou a energia mesmo. Será que acabou a energia em todo o quarterão? - Daniel colocava os óculos de grau, vestira um casaco, preparando-se para sair, - vou ver se acabou a energia em todo o quarterão, você vem comigo? Aproveita e me conta toda essa história.

- vamo, tio, eu vou com você sim 

As ruas estavam escuras. Havia saído todos de suas casas, as pessoas estavam assustadas. Daniel era míope e, quando estava sem óculos, principalmente, à noite, não costumava enxergar bem as coisas. Por isso, colocou os seus novos óculos de grau nos olhos. Por enquanto, enxergava todos os acontecimentos, percebeu que a escuridão havia tomado gradativamente toda a cidade. Natanael caminhava ao lado dele, parecia não estar preocupado com o escuro. Os dois caminhavam dentro da noite, a multidão vinha em direção contrária. Natanael correu indo ao encontro da massa inominável, preta, escusa e atraente. O jovem parecia querer o choque, era o seu maior desejo, estava fascinado pela multidão. Daniel gritava:

- Natanael, cuidado! Você vai se perder no meio da multidão!

Natanael correndo cego, não conseguiu ouvir os gritos do tio. Perdeu-se entre os outros, a escuridão comeu todo o seu corpo, não conseguiu mais encontrar os ecos de alguém que o reconhecesse, Natanael perdeu o nome. Tornara-se, para sempre, uma entidade que era pertencente a multidão plástica, bela, escura e inominável. Não conseguiu mais encontrar saídas, tinha esquecido a sua história, não lembrava mais o nome dos seus parentes, esqueceu completamente suas lembranças, tinha perdido o seu rosto. Natanael ficou inominável, perdeu a cor, era escuro. Fez um mergulho cego na multidão. 

Daniel tentou correr em direção ao Natanael, porém, percebeu que a multidão subia a ladeira com agressividade. Essa multidão queria destruir, era a serpente que engolia o ovo, comia o mundo e devorava quem quer que fosse. Escondeu-se da multidão, desceu até o esgoto. Os ratos riam, alguns contavam piadas, (esses animais insignificantes eram seres acostumados com a escuridão), era um dia de glória para esses ratinhos. Daniel sentiu que o coração estava inquieto, ficou estarrecido por ver uma multidão, violenta e agressiva, caminhando indestrutível e feroz na sua frente. Fugir dela, era o mesmo que fugir da morte. Um rato percebeu que ele estava sozinho e angustiado. Não era um rato comum, ele se chamava Hamlet. 

- você está com medo da multidão? - disse Hamlet

Daniel estranhou, quando os ratos começaram a falar?, perguntou-se intimamente e não conseguiu encontrar nenhuma resposta racional. Diante de todo o absurdo, conversar com um rato também não parecia ser tão incomum. 

- meu sobrinho se perdeu na multidão - disse Daniel 
- o seu sobrinho foi engolido por ela, que pena! Nunca mais ele vai voltar. Sinto muito! Vocês seres humanos são convencidos facilmente por coisas monumentais. Ainda bem que vocês não conheceram os dinossauros. Nenhum de vocês seria capazes de destruir um gigante. Desculpe a sinceridade, mas vocês são muito covardes - disse Hamlet 
- o que era a multidão? - perguntou Daniel. 
- a multidão é vocês. Por incrível que pareça! 
- como?
- esses eventos sempre acontecem na História. Não sei explicar, moço. Sei o que é a multidão. A multidão é vocês. A primeira vez que eu vi isso na minha frente, eu também era humano. Sorte a minha! Eu era amigo de uma bruxa, pedi para que ela me transformasse em animal, - Hamlet riu, - ela tinha um ótimo senso de humor, de todos os animais que ela podia me transformar, a bruxa me transformou em um rato. Veja só! 

Hamlet ria, ia abandonar Daniel no escuro. Daniel implorou para que ele ficasse, Hamlet não sentia muita empatia pelos humanos. Na realidade, detestava a humanidade. Porém, abriu uma exceção, dessa vez, resolveu, (talvez, por pena), que iria ajudar esse homem fraco e elegante, que tinha medo do escuro e dos esgotos. 

- você po...dia me ajudar a sair daqui? - pediu Daniel. 
- até poderia, mas quero algo em troca, - disse Hamlet
- qual...quer... qualquer... coi... sa - praguejava Daniel, sentia frio 

Hamlet ensinou o caminho que levava Daniel para as ruas novamente. Eram caminhos estreitos, Daniel não era alto, portanto, sentiu necessidade de ter uma estatura mais baixa. Sentiu nojo de pisar nas águas sujas, não conseguira suportar o cheiro de fezes e comida podre. Hamlet era muito falador, contava piadas demais. 

- adivinha só: o que é que um rato perguntou para um ser humano? - perguntou Hamlet

- não sei - respondeu Daniel

- podemos trocar uma ideia? 
podemos, mas acho que eu vou sair perdendo. - Hamlet ria da própria piada que tinha acabado de contar. 

Do outro lado do esgoto, havia um boteco. Era o único lugar que tinha luz, o resto estava coberto da noite e das trevas. Hamlet puxou a barra da calça de Daniel, insistindo para que ele olhasse para baixo. 

- você vai ficar nesse boteco aí, tudo bem, mas você vai ter que me comprar um queijo, se você não quiser que eu faça algo contra você, tudo bem?

- tudo bem, - Daniel continuo parado. Era um contraste muito intenso. O único lugar que tinha luz, era o lugar mais sujo e marginal da cidade. 

- vai comprar um queijo pra mim! - Hamlet modificou a sua expressão alegre, estava nervoso com a demora de Daniel. 

-Já estou indo - Daniel disse. 

Daniel caminhou até o boteco. O dono que era um homem arrogantemente narigudo, feio e gordo. Aproximou-se dele e disse:

- o que você quer? - perguntou
- eu quero queijo
- qual queijo? 
- qualquer um 

Daniel pegou o primeiro queijo que viu. Pagou ao Hamlet a ajuda que lhe devia. O pequeno animalzinho devorou rapidamente o seu queijo, depois do pagamento, foi embora sem olhar para trás. O homem de estatura alta, passos finos, voltou para o boteco. Pediu um copo d'água. O dono do boteco disse que não tinha água nesse lugar, se quisesse algo para beber tinha que ser apenas cachaça. Daniel não estava em condições para resistir, pediu cachaça. Quando a cachaça venho, engoliu-lha com gole só. Percebeu duas mulheres, que pareciam prostitutas, e um negro conversando animadamente sobre a multidão, que devorava tudo, eles estavam na outra mesa, afastados por alguns milímetros de distância de Daniel. 

- tava na hora disso acontecer - uma das mulheres disse
- eles bem que merecia todo esse sangue - outra mulher disse
- era um jovem garoto, não sei, será que precisava dessa violência? - perguntou o homem negro

Daniel interrompeu a conversa. Perguntou, curioso:

- o que aconteceu? 
- a multidão estava brigando - disse o homem negro
- um jovem acabou morrendo - uma das mulheres disse 
- o cachorro também, - outra mulher disse 
- sangue - todos falaram, praticamente, ao mesmo tempo. 

Daniel ficou preocupado, pagou a cachaça, correu até direção da multidão, que devora tudo que ver. Estava com medo. Será que o jovem que morreu era Natanael? Um transeunte correndo assustado, gritando: "meu filho! meu filho!", tropeçou numa pedra e quase caiu em cima de Daniel. Nesse momento, os óculos de Daniel caíram. Ele não conseguiu mais ver, onde estavam os seus óculos, não conseguia mais ver as formas das coisas. As luzes voltaram, todos ficaram alegres de repente. Daniel não conseguia enxergar, percebeu que algo se movia, a visão traduzia a deformidade do mundo. As ruas não estavam mais escuras. Cadê a multidão? Daniel ficou desesperado, não via mais as coisas, tudo parecia que tinha sumido. No meio da rua, ajoelhado, perdendo toda a esperança, Daniel gritou. 

Ele tinha acordado no seu sonho, desesperado. Daniel estava gritando a mais de duas horas. A porta estava trancada, quando ele acordou, percebeu que estava sozinho. Natanael tinha deixado dois livros de psicanálise em cima da mesa. Ele tomou um copo d' água, olhou a única fotografia que tinha com seu sobrinho. Sentiu uma pequena melancolia. Procurou os seus óculos, encontrou em cima da Bíblia, lembrou-se que não tinha terminado a leitura de Êxodo. Daniel voltou a ler. 

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