domingo, 5 de outubro de 2014

Impressões do filme "Asas do desejo" (1987)

Direção: Wim Wenders
Trilha sonora: Jürgne Knieper
Roteiro: Peter Handke, Wim Wender, Richard Reitinger








Eu vi esse filme, quando tinha catorze anos, foi uma revolução na minha vida. Fiquei muito feliz de revê-lo e de ficar novamente surpreendida com esse trabalho.  Para mim, esse filme possibilitou a minha mudança radical pelo interesse nessa arte, modificou meus hábitos, meus pensamentos e, sem dúvida, introduziu-me à ideia que o cinema poderia ser uma obra de arte. Posso dizer que esse filme foi a melhor introdução para conhecer o mundo cinematográfico através de outro ponto de vista. 

Foi um espanto, porque logo reconheci os códigos de Asas do desejo num filme norte-americano, chamado Cidade dos Anjos. Os anjos caminhando na biblioteca, lendo pensamentos, apaixonados pela humanidade, vestidos de preto e melancólicos. Os dois filmes compartilham desses mesmos signos, porém, não são os signos que  vão fazer o filme ficar bom, nem mesmo a escolha do tema, mas o modo como são trabalhados e arrematados que vai dar densidade e profundidade. Não tive a menor dúvida, quando comparei Cidades dos Anjos com Asas do desejo, são absolutamente incomparáveis. Cidades dos Anjos é um filme ruim. 


Asas do desejo

O filme inicia com um anjo sobre um prédio. Esse anjo está vestido com um sobretudo preto, cabisbaixo (como se carregasse o mundo inteiro em suas costas), melancólico, a cabeça baixa olhando para as pessoas que passam pelo trânsito de Berlim. Após minutos, aparece duas asas rapidamente, que somem depois, ele começa a caminhar entre os homens, anotando cada momento e situações que o anjo percebe no meio do caminho. Essa cena é fundamental, porque introduz algo que nos parece estranho; os anjos também sentem melancolia. Antes de tudo, há uma voz que fala sobre a experiência desse anjo melancólico, esse narrador constantemente vai repetir a frase: "quando uma criança era criança, fazia perguntas como: 'quem sou eu? Por que estou aqui? Quando o tempo termina e onde começa o espaço? Será que essa vida sob o sol é um sonho'". 

Essa narração vai mudar ao longo do filme, porque o fio condutor é a imagem do anjo melancólico que caminha entre os homens e sente inveja deles. A cena que demonstra esse sentimento nos anjos, é o diálogo, entre o anjo melancólico, Damiel (interpretado por Bruno Ganz), e Cassiel (interpretado por Otto Sander), que será a respeito das suas anotações que fizeram da vida dos humanos. Cassiel faz uma lista de situações boas e ruins que viu no meio do caminho. Damiel faz as mesmas observações, mas inclui observações a respeito da existência espiritual, ele diz que é maravilhoso saber e pairar sobre a humanidade, entretanto, gostaria de ver o mundo através do olhar de um ser humano, gostaria de sentir calor, o peso do corpo, ser cumprimentado, ter direito a maldade e o entusiasmo, sentir dor, ser selvagem. 

Ao fazer essas observações, os dois anjos voltam a pairar sobre a humanidade. Damiel encontra um circo, onde vai ver pela primeira vez a personagem Marion, uma bela trapezista. O circo está prestes a fechar as portas, porque os donos não conseguem pagar água e eletricidade. Marion, no meio do ensaio, pensa abandonar o circo, voltar ao trabalho de garçonete, ela está vivendo um momento de crise que precisa tomar uma decisão. Damiel lê os pensamentos dela, mas fica fascinado mesmo pela beleza de uma mulher humana. Marion está vestida de anjo, com grandes asas, fazendo movimentos leves no trapézio, expressando um olhar melancólico, mostrando sinais de desistência. Damiel enxerga o mundo como um anjo. Esse é o primeiro momento que mostra as diferenças de olhares. Os humanos enxergam o mundo com cores; ao contrário, as entidades espirituais veem o mundo em preto e branco. 

As pessoas do circo gritam: "olha! É um anjo passando...". Damiel pensa que alguém o viu, engana-se, o anjo era Marion. A bela trapezista, perdida em seus pensamentos, não ouve a cantada que fizeram para chamar atenção dela, continue firme em direção ao seu quarto. Fica muitos minutos em silêncio, alguém começa tocar uma música triste na sanfona. Marion vai ao quarto e coloca um disco com músicas modernas. Ela pensa nas possibilidades futuras, na decisão de abandonar o circo, na dualidade que é conversar consigo própria. Damiel escuta fascinado pela figura humana. A bela trapezista fica nua, mostra o seu corpo, como se estivesse sensualizando para alguém, amando-se; o anjo que não é visto e está aí, sente imediatamente desejo de amar como os humanos e deseja tocá-la. 

Cassiel caminha por Berlim, percebe que está cheio de ruínas. Pensa que a alma humana está muito amargurada, infestada de pensamentos de angústia, tristeza e melancolia, não consegue imaginar que a vida humana seja melhor que a vida dos anjos, mesmo invejando-a. Ele pensa em suicídio, não consegue morrer como anjo e não deseja morrer como humano. Tentar salvar um jovem suicida que está disposto a acabar com a sua vida, não consegue, aumentando ainda mais o seu pessimismo e mal estar no mundo. 

Após uma conversa com um desenhista, Damiel decide abandonar a vida como anjo. Esse desenhista explica as delícias da vida humana, como é gostoso sentir frio, fumar, tomar café, sentir o peso e etc; ele estende a mão, propondo amizade ao anjo melancólico. Damiel aceita, logo em seguida, conta essa novidade para Cassiel, ele diz: "vou fazer o mergulho, vou desistir de ser anjo e virar homem". Cassiel respeita a decisão, mas permanece anjo. 

Quando Damiel cai. O mundo se transforma, ele passa a enxergar as coisas com um olhar de humano. Sente dor, o gosto do sangue, percebe as cores que estão em volta. Imediatamente, vende a armadura, consegue duzentos dólares, compra roupas novas para procurar a trapezista. Não consegue encontrá-la, conversa com algumas crianças e diz que está doente de saudades. Esse é o primeiro sentimento de frustação humana que Damiel sente. 

Ele encontra Marion num Show de rock. A importância desse momento que ele é surpreendido pelo espanto, é o que transforma Damiel completamente em humano, dizendo que não se arrependeu em abandonar a sua existência espiritual. No final, o espectador entende que ele escreve esse processo de abandonar a sua vida anjo para se transformar cada vez mais em humano. Damiel faz a narração da sua história. 


A inveja dos anjos

A eternidade é um fardo para os anjos nesse filme. Em nenhum momento, Damiel abandona a sua condição de anjo somente por conta da trapezista. Essa decisão é tomada, pois ele percebe que a existência espiritual é absolutamente tediosa. Ele deseja uma vida igual aos humanos, pois sente um vazio ao perceber que é um anjo sem história, sem sofrimentos e sem direito à maldade. Ele deseja sentir o agora, fazer uma história e ser selvagem. 

A trapezista é um motivo que alimenta mais essa decisão, mas não é o principal motivo que move Damiel a tomar essa decisão. O anjo é uma figura que vive além do tempo, não tem corpo, não tem dúvidas e não tem sexo. Essa é uma diferença crucial entre "Cidades dos Anjos" e "Asas do desejo". O anjo do primeiro filme abandona a sua existência espiritual por conta da mulher, somente por causa do amor que sente por uma mulher humana. Damiel percebe as suas vantagens em ser uma entidade espiritual, por isso, a decisão não é fácil. 

No filme, Damiel observa constantemente figuras de artistas, possivelmente, porque eles são antenas do mundo. Eu tenho a vaga impressão que se Walter Bejamin estivesse vivo, ele escreveria sobre esse filme; pois, a Alemanha, que os anjos percorrem, é a mesma Alemanha arruinada pela Guerra, pelas mortes e por Auschwitz. É um filme que mostra artistas que também pensam abandonar essa condição, que mostra a dificuldade de continuar escrevendo poesia, mostra homens amargurados e irreconhecíveis, procurando algum espaço que ainda conta alguma história da infância deles. 

Assim, a contradição está nos anjos, mas também está nos homens, que, ao mesmo tempo, são belos e horríveis. São capazes de criar coisas devastadoramente maravilhosas, entretanto, criam máquinas de mortes, guerras desnecessárias, segregação e depressão. Os anjos sentem empatia pelos homens, porque percebem um vazio neles, encontram um lugar, onde eles podem compartilhar algum desconhecimento, algum fracasso. Nos homens, a dúvida da vida após a morte, o desconhecimento absoluto sobre a eternidade; nos anjos, a vida dentro da vida, o desconhecimento da efemeridade, do viver aqui e agora. 



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