sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Conversas imprecisas

Paramos no primeiro bar que encontramos no caminho. Eu e Mariana não tínhamos lugar secreto; caminhar e caminhar pelas ruas era a nossa maneira de nos escondermos do mundo. Não nos conhecíamos desde a infância, ela era uma garota banal. Eu também sou apenas um cara banal. Ela estava mais calada do que de costume, eu estava com fome e sentei na primeira mesa que encontrei. Mariana tinha olhos esguios, castanhos fortes. Às vezes, os olhos castanhos de Mariana traíam suas intenções e revelavam suas angústias com profundidade. Era uma garota encantadora, traidora dela mesma, ambígua e um tanto carente.
Mesmo assim, eu gostava dela. Me apaixonei perdidamente por todas as mulheres que já foram minhas amigas. De todas, a única que consolidei uma relação densa e singular foi com Mariana. Sentiria saudades dela, se acaso acontecesse alguma coisa que fizesse a gente se desencontrar, eu confesso que sentiria saudades de Mariana. Mas, as coisas não duram para sempre. Seria ingênuo, eu acreditar que teria Mariana sempre ao meu lado. Enquanto, ela estiver aqui, me sinto bem, Mariana sempre foi uma boa amiga para quem eu revelo assuntos tristes e angustiosos.
A nossa relação sempre foi marcada por grandes desencontros. Ela podia ficar sem falar comigo dois, três até cinco anos. Mariana não me procurava, não me ligava para perguntar como eu estava. Eu não a procurava, não sentia interesse de saber quem ela namorava ou fugia (Mariana passava mais tempo fugindo de relacionamentos amorosos). A gente, às vezes, passava meses sem conversar, quando nos encontrávamos era sempre para trocar informações banais sobre filmes, literatura, quadrinhos e dúvidas que acontecia com as nossas vidas. Ela sempre me dizia que eu tinha talento para encontrar mulheres problemáticas. Mariana não me exigia; em troca, eu também não a exigia.
- eu uso você pra não ficar sozinha e carente; e você me usa nos seus filmes, combinado, Joaquim? – dizia Mariana sorridente
Eu balançava a cabeça concordando, sempre quando ela me dizia essa frase, ríamos porque a gente sabia que havia algo verdadeiro nela. Mesmo assim, nos mantínhamos. Hoje, essa minha amiga inquieta estava muito calada, não era costumeiro esse comportamento de silêncio.  (Isso merece uma digressão: há três silêncios em Mariana: o primeiro é o silêncio do Daniel, quando ele passa, Mariana o admira, vendo a sua maneira de falar. É o silêncio de ver uma coisa que sabe que não é vista. O segundo é o silêncio inquieto de Mariana, os olhos castanhos divergem no ar, ela afunda em pensamentos contrários e perde-se para sempre. O último silêncio é esse de hoje, um silêncio oco, essa espécie de comportamento não é comum, é estranho).  Não era do feitio dela um silêncio tão profundo. Os olhos de Mariana corriam soltos pela sala, ela respirava grave, pentelhando os horizontes imensuráveis. Ela era, de fato, uma mulher bonita, mas demorou muito para perceber isso. A autocrítica dela era furiosa, às vezes, equivocada.
- que está acontecendo?
- muita coisa, não sei por onde começar
A minha comida tinha chegado, Mariana só pedira coca-cola. Eu pedi um hambúrguer com batatas fritas. Esse é um momento crucial, estava com fome, mas sempre media os meus atos. Havia dois momentos importantes para realizar o ato da alimentação; primeiramente, separava os tomates, -- (eu não gosto de tomates), -- deixando-lhes ao canto do prato; depois, eu mastigava as beiradas do hambúrguer, comia lentamente, concentrando-me no gosto, o recheio vinha aos poucos como uma surpresa; por último, tomava o guaraná e comia as batatas fritas. Mariana encarava meus atos, esperou a “dêxa” como uma atriz, esperando um momento acabar e iniciar outro novo acontecimento, Mariana preparou-se e disse:
- eu nunca tive métodos pra comer
- você não discute comigo sobre os canudinhos – eu provoquei
- eu não acho que isso é necessário, eu não ligo pra canudinhos
- bom, a Isa acha importante discutir comigo sobre isso. – dei a última mordida no hambúrguer e disse - Você não vai falar o que está acontecendo?
- vou – ela pausou um momento – , você cortou as unhas, jô?
- cortei, olha só, - eu mostrei minhas mãos – essa era minha novidade. Parei de tocar violão
- sério! Por que?
- disse pra você no telefone, eu entrei em crise, Má, eu não quero mais tocar instrumentos de cordas. As trastes! São as trastes que atrapalham os semitons.  A afinação é muito ruim!
Mariana riu, mas não era um riso de deboche. Ela podia ser tudo, mas nunca julgava ninguém, gostava de histórias estranhas e pessoas desconhecidas. Penso que ela gostava de coisas assim para escrever suas literaturas inacabáveis, a vida era como um laboratório artístico aos olhos de minha amiga inquieta. Acredito que viramos amigos por causa desse interesse estranho em comum, queríamos densar as nossas vidas, como ela gostava de dizer. Eu, na verdade, dizia simplesmente que o objetivo da minha vida era me divertir.
- reencontrei com Anita – Mariana olhou-me grave, - me decepcionei com ela. É tão estranho, você passar o resto de sua vida, querendo rever alguém. E ver se essa pessoa resolve todos os seus problemas. Mas não, ela não vai resolver nada. Ela é uma garota previsível; sonhos toscos e vontades comuns, sabe. Eu fiquei decepcionada com ela, esperava mais dela, esperava mais
- você espera demais, Má! Sabe, eu sei que vou mudar de assunto, depois você continua o raciocínio. Mas eu conheço e sei coisas sobre música, mas quando eu tento tocar na flauta, eu não consigo realizar. Eu me sinto um merda.
- tá aprendendo tocar flauta? Ah é! Você me contou no telefone? Como anda os estudos?
- agora, tô tendo tempo pra estudar, mas quando eu sei o que eu quero com a música e não consigo realizar. Eu acho tão frustrante. É tão frustrante!
- reencontros são tão desconfortantes – disse Mariana
- nem sempre, alguns são cômicos. Revi um colega da escola, ele estava correndo afoito e me disse, olhando pra mim, meio perdido. Pegou na minha mão, Má, e me disse: “eu vou ser pai”. Repetiu de novo, ainda mais afoito e perdido: “eu vou ser pai”
- ficou sabendo que aconteceu com Mau?
- ele sumiu, né! A última vez que vi ele foi no mês passado, ele passou na sua casa, né?
- passou, estava estranho. Ficou pálido quando eu disse que estava saindo com uma pessoa
- você ainda está saindo com Daniel ainda?
- ele também sumiu, falamos por telefone. Nunca mais soube notícias dele. Eu não sei, Jô, eu devia fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer, estou muito perdida e um pouco cansada de tudo isso
- viver é boring, tentar encontrar um sentido oculto nas nossas ações, conhecer pessoas, criar vínculos. É tão cansativo! Mas eu não sei, a gente não tem muita opção
- que opção a gente tem? – perguntou-me curiosa
- a única é nos manter indo –  eu respondi impreciso
- já falei pra você da minha teoria sobre a Vani dos Normais 
- não me contou não
-  Joaquim, a Vani é uma mulher gostosa, sexy e tesuda, mas a aparência dela não condiz com a essência dela. Ela é uma mulher frustrada, porque ela se comporta como uma Beyoncé, mas não tem peitos e nem bunda, por isso, que a gente ri dela. Porque ela não é concretamente quem ela diz ser
- faz sentido – eu ri – ela é Beyoncé com corpo de Vani
- isso! Por exemplo, no filme Os normais 2 , não tem uma cena que ela está com vestido vermelho, atravessando o corredor do hospital, sensualizando total pra todos os médicos. A música de fundo é Me deixas louca na voz de Elis Regina. Você lembra dessa cena?
- lembro sim
- eu cheguei nessa teoria por causa dessa cena. Vani é uma heroína gostosa na essência, mas isso não é coerente com a aparência. Por isso, a gente ri dela. Vani é uma gostosa frustrada. Na verdade, a gente ri por causa dessa frustração. Eu adoro a Vani.
- bom, eu te disse – eu encarei os olhos da Mariana, - eu te disse que a gente só gosta de gente estranha
- não me coloca no meio do jogo, você que arruma mulheres problemáticas, você tem antena pra isso, Joaquim
- e você precisa se apaixonar, - ela encarou-me e eu reiterei o raciocínio -, eu não gosto, quando eu me sinto apaixonado e você não. Me sinto bêbado e sinto que você tá rindo de mim
Mariana não me respondeu, olhou-me confusa e disse:
- estou escrevendo novos contos
- sobre o que?
- sobre os desajustados, acho que vai ser os piores contos da minha vida
- você é engraçada, Mariana, quando você terminar, me dê, eu quero ler
- tudo bem, eu dou sim
Quando eu saí daquele bar, passei dois anos sem rever Mariana. Não sei como ela ficou. Eu estou triste, fiquei sozinho esses tempos. Estava apaixonado, mas levei um pé na bunda, Mariana conversou comigo ao telefone mês passado.
- que aconteceu? – perguntou Mariana
- Cândida sumiu, me deu um pé na bunda
- que aconteceu?
- eu não sei, acho que ela ficou com medo, sei lá, ela não me deu satisfação. Só sumiu, não atende nenhuma ligação minha
- Cândida era aquela menina que tinha síndrome do pânico, não gostava de sair de casa e era muda
- era ela sim, era uma menina tão linda, você ia gostar dela, Má. Ela sumiu
- todo mundo decepciona alguém, é normal que isso aconteça. Não é assim que você fala, talvez, ela seja uma pessoa que pode valer a pena sentir saudades
- eu falo sim, mas eu, agora, nesse momento, eu tô um pouco puto com ela, eu sei que vai passar. Mas ainda estou puto com ela

Essa foi o último diálogo que tive com minha amiga. Em todo caso, Mariana não era um reencontro desconfortante, era uma presença carinhosa que sempre me agradou. Eu não reencontrei Cândida, sinto saudades da presença silenciosa dela, foi uma pessoa que valeu a pena sentir saudades. Cândida foi uma lacuna. Mariana me disse que amores interrompidos são sempre furiosos e que a gente é preenchido também por lacunas. Entrei no último bar que conversamos, estava sozinho, comi um lanche. Não reencontrei ninguém. No bar, usando minha metodologia para comer um lanche, vi uma cena emocionante na minha frente, um homem abraçando outro homem, eram dois íntimos que não se viam por causa do curso do tempo. Pensei: “os reencontros em São Paulo são imprevisíveis”. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Diário

Mariana sabia muito pouco sobre filosofia, literatura e política. Cada dia mais, ela tinha uma sensação que ficava mais perdida, afundada em livros e informações jornalísticas expostas na internet. A jovem estudante de filosofia, interessada por assuntos difíceis e por alemães, rabiscava palavras, duas ou três, para escrever no final de cada página do diário, como um sinal de fracasso, que não entendia o mundo, não entendia a arte, não entendia ela mesma. Ela fracassava na sua ambição de interpretar os passos dessa sociedade que fazia parte como mais uma anônima.
Atenta e delicada, Mariana fixava os olhos na folha de papel e assoprava o lápis, este objeto fazia um movimento de vai e vem. O lápis indo e vindo, indo e vindo, até cair no chão. (Lembrete: os sons miúdos aumentam de tamanho, quando há uma pessoa atenta para ouvir). Ela caminhou até a janela e viu uma lua soberba, brilhando, no céu vazio e sem estrelas de São Paulo. O vento acariciava seus pensamentos, eles, pouco a pouco, adormeciam.
Com tantos piolhos existenciais, restaram apenas uma reflexão. A lua estava minguante. Mariana acreditava que essa era a lua das bruxas; ela criava um pensamento, uma ilusão que pudesse acreditar. Tempos atrás, a jovem estudante tinha perdido a crença com as religiões para sempre. Por isso, sentiu necessidade de criar algo que fugisse de sua imaginação terrena, alimentando o seu lado infantil, adornando suas fantasias impossíveis. A lua era a sua maior invenção.
Mariana escreveu: “ (...) a lua minguante é a verdadeira lua das bruxas, é a lua dos intervalos. É a lua que está entre a fase nova e a fase cheia. São nos intervalos que a gente se transforma, é no limiar que as coisas, pouco a pouco, viram.  O devir. Aliás, palavras bonitas essas, né: 'devir, etéreo'; um dia um rapaz que namorei me disse que a palavra que combinava comigo era o verbo flanar,  (quando Felipe falou isso, eu achei de uma delicadeza!...); lendo um romance encontrei a palavra irremissível misturada com as frases, foi como encontrar um amor, apaixonei-me imediatamente. Não sei nem se estou escrevendo coisa com coisa, acho que não, provavelmente não, estou escrevendo palavras desconexas e inventando fatos. Eu estou assim, por exemplo, minguante”.
Dois minutos, em desassossego, ela olhou inconformada para própria caligrafia, olhando a janela, engolindo o lápis na boca; questionou-se sobre o futuro e, nesse momento, o presente se distraiu e virou um passado inconsistente. Pensou: “o que vou escrever? O que vou escrever?”. Sentiu vontade de jogar o diário no lixo, sentiu-se enojada com todas essas palavras. Era uma mulher infantil e impotente, só sabia tagarelar e tagarelar sobre as coisas que não conhecia. Quando criança, um tio, bagunçando seus longos cabelos cacheados, disse a ela: “você tem uma cara de menina mentirosa”. Mariana riu, afinal, o seu tio bêbado que paquerava meninas de dez anos e ensinava como beijar na boca, estava certo. Era uma menina mentirosa, hoje, era uma mulher mentirosa. Às vezes, mentia tanto que acreditava nas próprias coisas que contava, como se fossem histórias reais, sentiam elas como verdadeiras e vividas com toda a intensidade que enfurecia seu peito. Mariana densava a sua vida com enredos inexistentes.
Pensou e falou baixinho como se conversasse com espíritos: “o que eu vou escrever?”          
- você podia escrever sobre a vida misteriosa das baratas. – Mariana sentiu um cheiro de cigarro, não virou-se, imediatamente, para enxergar quem era, esperou a voz feminina terminar o raciocínio - Apesar que -- (a voz feminina hesitou) --as baratas já estão ficando fora de moda. Escreve sobre as galinhas, escreve sobre elas fugindo assustadas para não virarem comida na janta. Escreve como as galinhas conquistaram a falsa liberdade
- já fizeram um conto sobre isso
- já fizeram?
- sim, o nome é “Uma galinha”
- escreva sobre o ovo, então, - Mariana virou-se devagar e enxergou a mulher que falava com língua presa; sentiu nervoso e, assustada, a jovem estudante ficou em silêncio. A escritora, fumando, continuou o raciocínio, falava como uma estrangeira – sabe, menina, eu nunca consegui entender o ovo. Uma vez, eu escrevi um conto sobre o ovo. Juro! É o meu maior mistério, é o único conto que eu não entendo
- eu li – gaguejava – eu li –  Mariana gaguejava e tentava esconder o nervosismo do impacto – eu li eu li eu li
- você leu? – Clarice (a escritora de língua presa) perguntou.
- eu li esse conto na adolescência, foi o primeiro conto que eu li seu, foi esse conto que me atraiu pro seu mundo. Eu fui seduzida pelas palavras, pareceu feitiço, sei lá, bruxaria
Clarice riu. Ela tragava um cigarro, sentou-se na cadeira de balanço e viu a folha rabiscada com algumas palavras.
- você quer ser escritora?
- acho que eu quero
- achar não é o mesmo que ter certeza, – Clarice fumou -  você sabe que eu nunca quis ser escritora. Eu sempre fui amadora. Amo escrever, quando eu não escrevo é porque estou morta
- uma vez eu falei essa frase pro meu primo, Clarice... Posso te chamar assim?
- pode
- eu falei isso pro meu primo. Sabe. Sobre esse negócio de ser amador, sabe, ele riu da minha cara. Disse que não há só amor nessa palavra, também há a palavra dor. Ele disse pra mim que eu era uma garota engraçada, porque não rimava amor com dor, mas gostava da palavra amador por conta dessa interpretação etimológica
Clarice tinha mudado a expressão do rosto, não ria, mas também não ficou nervosa com a observação. A escritora colocou os óculos, fumou.
- seu primo tem senso de humor. Mas não sei por que as pessoas riem com coisas que não são engraçadas? Amor e dor não são coisas engraçadas. Você, menina, sabe das consequências disso tudo?
- disso o que?
- quando você tinha 16 anos, menina, um velho falou pra você que literatura não se faz com bons sentimentos. Você, sem dúvida, pensou sobre essa frase, não? Você tem um péssimo gosto de pensar sobre as coisas, sabia. E tem outro gosto terrível, nada elegante da sua parte, você faz perguntas demais
- eu tenho medo. Clarice, eu acho que sou covarde. Você sempre teve uma ironia trágica nos seus textos, principalmente, A hora da estrela, aquele livro é foda. Desculpa o palavrão. Mas, enfim, sei lá, Clarice, você sabia usar o que tinha, eu acho que eu não sei, eu acho que eu sou uma covarde. Sou muito covarde, uma impostora, talvez
- você tem tempo pra aprender a densar seus defeitos. Menina, você tem noção das consequências da frase do velho?
- literatura não se faz com boas intenções?
- isso!Você sabe o que tá falando ou fala isso da boca pra fora?
Mariana calou-se, ela fixou os olhos no movimento dos braços, era outro vai-vem. O braço ia e voltava; toda volta, Clarice tragava saboreando a fumaça. Os olhos da escritora eram mais penetrantes de perto. A jovem estudante ficou paralisada e hipnotizada com a visão de mulher que assombrou a sua vida inteira.
- você não sabe, né? Eu também não sabia quando eu tinha a sua idade? Quantos anos você tem?
- 20 anos
- escrevi Perto do coração selvagem, era uma menina jovem que sentia demais como você. Fiquei pasma comigo, quando eu escrevi A cidade sitiada, esse livro, por resto de minha vida, eu serei agradecida por ele
- mesmo você não sabendo das consequências de tudo, você escreveu?
- escrevi, - Clarice mexeu os dedos, levantou-se, caminhou até a janela, - aaah! A lua minguante. Isso é lua de bruxa, sabe quanto tempo a gente demora pra aprender magia, menina?
- não
- o resto de nossas vidas, a gente morre por conta de feitiços
- você foi covarde também, Clarice
- Isso é uma acusação, anda querendo me contrariar, menina?
- por que você não fez nada?
- Eu fui impotente
- você foi covarde, devia ter, sei lá, continuado, devia sei lá, ter escrito sobre Hélio Pellegrino, sobre tortura, sobre violência e sobre as coisas que afetavam o mundo na sua época. Por que você não escreveu coisas que tinha sangue? Por que você preferiu escrever histórias de donas de casas e epifanias cotidianas? Às vezes, eu me sinto tão perdida, às vezes, eu acho que dou razão demais pros outros. As coisas que falam sobre você, te chamavam de alienada
- nunca escrevi livros pros outros
- o que você fazia? Por que você escrevia assim?
- porque era o que tinha. Porque a gente não escreve pra mudar o mundo. Eu sei, menina, eu sei que você tem sede de vingança, eu sei que você tem fome por outras possibilidades. A vida não tem nada de original. Eu sei, sei mesmo que sente desejo por surpresa, originalidade. Eu sei de tudo isso. Mas, você precisa entender,
- você fugiu, Clarice?
- eu estava como você, perplexa com o mundo. Eu era uma mulher impotente, triste e transtornada. Eu não entendia o que estava acontecendo, era minha santidade, menina, não entender era o que preservava minha humanidade diante das coisas. Não entender é tão vasto que ultrapassa qualquer entendimento
- você não sabe como as coisas estão hoje. Como tudo está uma bagunça, como as coisas estão ambíguas, como é difícil entender o mundo, as pessoas e a via láctea. Eu não sei o que fazer. Eu fico perplexa
- então, - Clarice encarou os olhos inquietos da jovem escritora -, menina, a gente não vai alterar nada por conta desses textos. Não vai alterar nada.
- isso não é conformismo, Clarice?
- não acreditem nas almas boas que usam as minhas frases, no entanto eu nunca tive a ambição de ser a bússola
- então, por que a gente faz isso?
- a gente escreve pra desabrochar, menina, pra desabrochar pra vida
As mãos da Clarice flutuavam no ar. Mariana observava, hipnotizada, os movimentos dos braços da escritora, escutava como uma apaixonada o som da língua presa (que parecia uma voz de uma mulher estrangeira) daquela soberba e elegante estrangeira do próprio país. Clarice desapareceu no minuto que Mariana piscou os dois olhos. A jovem estudante tinha mania de perder o instante presente para sempre, o tempo presente furtava-se e ela não sabia voltar. As coisas não eram mais as mesmas. Olhando a lua minguante, Mariana começou a falar em voz alta:
- eu escrevo pra me desabrochar, mas é possível desabrochar no mundo de entranhas abertas, feridas não cicatrizadas e rostos banhado a sangue? Posso te ouvir, me perguntando; você não quer ser parecida comigo? Eu respondo que não. Não acho que quero ser parecida com alguém, não acho que quero ser inimitável sozinha. Quero desabrochar, desabrochar pro mundo
Mariana colocou a caneta na boca e continuo o raciocínio:

- mas, sempre, à noite, as bruxas se encontram e fazem os teus feitiços. Sempre anoitecendo.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Os pobres

Maurício era um rapaz comum, frequentava reuniões do movimento estudantil e era adepto dos ideias do comunismo. Ele estudava economia, mas estava em crise em relação a sua profissão. Era um homem sozinho, só tinha uma vó esquizofrênica como parente viva. Naquele dia, ele tinha visitado Mariana, gostava dela para falar besteiras e despreocupar-se com as decisões futuras. Ela era uma mulher sensível, tinha uma capacidade de tranquilizá-lo quando precisava. Maurício abraçava o corpo miúdo de sua amiga e sempre dizia: “você sempre diz o que é preciso ouvir na hora que é preciso dizer. Acho que é um dom que você tem”.
Entretanto, Maurício foi até a casa de sua amiga. Apertou a campainha, chamou o nome dela e Mariana não estava em casa. Ele se sentiu abandonado, caminhou perdido pelas ruas e percebeu que a cidade tinha mudado muito depois desses três anos. A casa das flores vermelhas, que existia na infância dele, tinha sido demolida uns cinco meses atrás para construir um prédio da empresa Delta. Pensou: “Lucros imobiliários! Lucros imobiliários!”. Maurício, (Mau como era chamado por Joaquim e Mariana), se sentia enforcado por muita angústia e era um dia, mais do que os outros dias, que ele precisava muito conversar com Mariana. Caminhou, então, hoje seria um dia que teria que suportar a companhia da própria sombra. Há meses, não se suportava como humano.
- me dê uma dose de conhaque com mel
- é só isso – disse o dono do bar
- só isso – respondeu Maurício
Um miserável, sedento e imundo, sentava ao lado do jovem estudante. Era um homem porco, limpava o nariz com a manga da camisa, banhava-se com álcool. Brincava com canivete, trocando o instrumento de uma mão para outra, uma mão para outra, uma mão e outra mão. Assim, em movimentos repetitivos, ritmos rápidos, lentos, o homem mais desgraçado do bar brincava com a arma como uma criança brinca com fogo, sorrindo. Maurício fingiu não se importar com o cheiro do miserável, estava autocentrado em suas angústias, sentia saudades do riso de Mariana. Onde será que ela estava agora? Perguntou-se.
- é mulher – disse o desgraçado
- oi?
- um homem com esses olhos sofre e – ele cuspiu no chão – e quando sofre assim é dor de corno ou morte de mãe
- minha mãe morreu já faz algum tempo já
- então, é mulher mesmo, garoto?
- não, é uma amiga, sinto saudades dela, só isso
- é casada?
- não
- namora um amigo seu?
- não
- é feia?
- não. É uma das minhas melhores amigas!
- são as piores – o miserável sorriu como um velho sedento de ódio – as amigas são aquelas que mais machucam o coração
- não estou assim por causa de Mariana – Maurício falou rápido, tentado desviar do diálogo. Bebeu o resto do conhaque com um gole só.
- isso menino! Isso menino! Você faz o que da vida?
- sou estudante
- e estuda o que?
- economia
- então você é rico? Tem como me emprestar dinheiro pra pagar mais bebidas pra eu e você. Pera! Pera, garoto, fica aqui. Me escuta. Eu sei que você não quer me escutar, ninguém quer me escutar. Você sequer está disposto começar uma conversa comigo? Eu te imploro, senta aqui, não vai embora. Pague mais duas bebidas, converse um pouco comigo
Maurício sentou-se ao lado do homem, como se senta perto de um filhote que está perto da morte e o único sentimento urgente é a pena. O jovem estudante sentiu muito pena do miserável, pensou que conversar com esse velho, talvez, fosse um ato de generosidade. Pediu mais bebidas.
- você sente pena de mim? – um sorriso malicioso apareceu no rosto do miserável – pode falar. Você sente pena de mim? Diz pra mim, só responda sim ou não. Sente pena de mim?
-  sim
- eu sou um homem pobre, garoto. Não, eu não sou só um homem pobre. Eu sou um homem miserável. Você já conheceu um homem miserável? Um homem que faz coisas que não são dignas? Já conheceu? É de se ver que não conheceu. Eu sou um homem desgraçado que também é pobre. É possível ser pobre e não ser desgraçado ao mesmo tempo?
Maurício não respondeu, bebeu mais um pouco de conhaque.
- é possível, garoto. Minha mãe era uma mulher pobre, você parece um garoto pobre, essas pessoas daqui são pessoas pobres. Ser pobre não é o mesmo que ser miserável. Ser miserável é algo que você, garoto, não consegue imaginar. Você ri? Você ri de mim, garoto? Isso, menino, a tragédia dos outros é muito engraçada não?
Maurício engoliu desconforto, não riu mais, permaneceu calado.
- você não é da política, né? Como é que falam? Você não é um desses bostinhas revolucionários, é? Militante, não é assim que falam?
- sou comunista
O velho soltou uma gargalhada, pediu outro conhaque.
- pode por na conta desse garoto aqui, ele vai pagar tudo. Não sei por que, garoto, não sei qual é o motivo, mas gostei de você. E porque eu gostei de você, vou falar algumas coisas. Você quer mudar o mundo?
- quero
- quer acabar com a miséria do povo?
- quero
- quer fazer alguma coisa importante da sua vida?
- quero
- então, não seja um homem romântico. Vai por mim, na minha época, os homens românticos eram os primeiros covardes que morriam ou fugiam. Pobres não se encontram em estatísticas, garoto. Você entendeu?
- acho que sim
- não romantiza os pobres. Eles são mais espertos do que os chefões imagina. Né não, chefe, traz outra aqui? O garoto paga, não paga, garoto?
- pode trazer mais uma. Só posso pagar mais uma
- não se preocupe – o velho beijou o jovem Maurício – não se preocupe, garoto, você tem um futuro brilhante. Não desperdice com sofrimentos efêmeros. Você ainda não sabe o que é sofrimento. Você já trepou com uma mulher bonita?
Maurício enrubesceu, encolheu-se e escondeu a cabeça.
- você é um garoto ainda? Um garoto virgem? – o miserável apoiou a mão esquerda no ombro do garoto – um menininho virgem que bebe conhaque? Os militantes de esquerda não mudaram muito nos tempos de hoje. As coisas parecem que só mudaram de roupa, mas continuam as mesmas
- eu já tive uma garota
- já
- já vi uma garota nua
- olha! – o velho sorriu – isso não é um grande passo, né! Menino, vai trepar com mulheres bonitas, não desperdice a sua vida querendo mudar um mundo que não quer ser mudado. Os pobres não são anjos caídos do céu, e todos nós, garoto, todos nós temos os nossos dias, você me entende? Aquele dia que a gente faz uma coisa e na verdade quer fazer outra. Que mal me pergunte? Quantos anos você tem?
- dezenove anos
- é um jovem bonito, é um jovem bonito
O velho miserável caiu no chão de tão bêbado. Maurício ajudou o velho levantar-se, colocando em uma cadeira. O homem desgraçado não falava mais palavras com nexo, ele xingava todos que encontrassem o seu caminho. Maurício abandonou o velho miserável naquele bar, solitário e pequeno, repousado no silêncio dos embriagados.
No dia seguinte, Maurício encontrou Mariana. Ela estava mais encantadora do que nunca, sorriu aprisionando o jovem estudante naquela alegria esfuziante. Ele tinha sonhado com a sua amiga, estava aliviado por encontrar uma alma íntima. Mariana sorriu e disse:
- que aconteceu?
- eu te procurei ontem, encontrei um velho no bar que me falou coisas estranhas, Mari, era um velho miserável. Mas você está tão linda, parece até que aconteceu algo maravilhoso com você ontem?
- e aconteceu, mas não quero falar
- por que? Aprontou alguma coisa?
- não aprontei nada – Mariana estapeou o ombro de Maurício – é que não é nada demais, Mau, é uma coisa sem importância
- bom, uma hora que quiser conta, eu vou estar pronto pra ouvir. Mas queria tanto conversar com você, Mari, tanto e agora...
- agora não quer mais?
- não é isso, parece que agora não importa mais, entende? Parece que passou – Maurício engoliu as bolachas com manteiga.
- bom, isso é bom não é? Quando eu te liguei você tava tão aflito e angustiado
- e você parece que está tão feliz, mais feliz do que nunca
- eu conheci uma pessoa
Maurício mudou a expressão do rosto completamente, ficou branco, engoliu os restos das bolachas com pressa. Mariana não parava de sorrir, mostrando a felicidade exótica que exibia nas bochechas. O jovem estudante decidiu que não ia mais encontrar Mariana a partir daquele dia, seria a última vez que ele veria a Mariana sorrir assim por causa de outro homem. Sentiu vontade de matar, sentiu ânsia de cometer um homicídio, ficou enciumado.
- eu acho que vou embora – disse Maurício
- mas já? – respondeu Mariana
- já
Maurício pegou a sua blusa, vestiu e caminhou até porta. Ele deu um último beijo no rosto de sua melhor amiga e foi embora. Mariana nunca mais viu Maurício de novo, nunca mais encontrou vestígios da presença dele na cidade. A última notícia que soube de Maurício era que tinha se formado na faculdade com excelentes notas e bons créditos. Era um homem decente e trabalhador, namorava uma mulher linda, diziam as más línguas que era um homem possessivo e controlador de suas namoradas.

Numa manhã, Mariana comendo bolachas com manteiga e um pouco de leite, assistindo um programa sensacionalista de crimes. Viu um rosto conhecido, escondendo-se das câmaras de televisão. Uma foto 3x4 mostrava uma figura envelhecida, escandalizada por lentes selvagens da câmara, olhos carinhosos, um rosto coberto por uma barba, era Maurício. Ele era suspeito de um crime passional, tinha matado a mulher com uma faca no coração, guardando as peles da esposa nas gavetas do amante e o coração tinha oferecido para o cachorro. O amante tinha sido misteriosamente atropelado. Maurício, na televisão, escondendo-se como um rato assustado, olhava do mesmo jeito. Mariana sentiu pena, ela engoliu o leite, saiu para trabalhar perturbada. Eles não eram mais as mesmas pessoas. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A colecionadora de músicos

Tenho poucos amigos escritores. Na verdade, intimidade mesmo com amigos artistas, eu tenho com três. Às vezes, quando preciso muito, converso sobre o meu processo de escrita com eles (Joaquim, Maurício e Clarice). Sempre escrevi diários desde criança, é uma forma de não perder o que me acontece e encontrar as amarras da minha vida. Com poucos amigos artistas, conversas, sobre processos de escrita, os livros e a arte em geral, ficam muito restritas; (na verdade, esse tipo de conversa quando estamos imersos na banalidade é quase uma raridade). É difícil conversar sobre isso sem causar espanto; como se os artistas fossem algo incompreensível, um vírus HIV, um mago, um marciano e etc.
Não gosto do olhar que causo quando começo falar de prosa, da dificuldade de escrever e da ideia que tenho do mundo. Eu não me considero a melhor pessoa do mundo, não estou numa Torre de Marfim e, ao mesmo tempo, me sinto responsável pelo mundo. Fico perdida, não sei como agir. Não gosto de falar de arte, quando estou perto das pessoas, evito assuntos assim; o que é curioso, é que a arte sempre foi a minha vida, é o caminho que percorri para encontrar a expressão da minha individualidade. Quando eu falo isso, não quero parecer uma pessoa que sofreu muito, porque não conheço sofrimento; eu acho que me diverti bastante. Mas quero dizer que alguma coisa incomum acontece quando nós, artistas, falamos de arte, é comum uma sensação de estranhamento entre a multidão.
Queria dividir meu processo de escrita com artistas como vocês. Por isso, vou contar alguns pensamentos que guardo na minha cabeça. Vou contar para vocês como se contassem para os meus amigos, vou tratar vocês com alguma intimidade. Eu moro em São Paulo, desde que eu me conheço por gente, a cidade e as diferenças sempre fizeram parte da minha trajetória. Quando eu escuto minha mãe falar do nordeste e do meu pai falar do Paraná, é o mesmo que ouvir histórias de gregos, não consigo ter nenhuma relação com isso. Sou uma pessoa sem raízes.
Certa vez, conversando com um conhecido, ele me disse:
- Mariana, eu li, uma vez, um artigo sobre os filhos de migrantes, dizem que nós temos saudades de um lugar que não conhecemos
Ele era um artista que não tinha intimidade comigo, o nome dele não importa. Mas isso ajuda vocês, artistas, entenderem um pouco sobre mim. Eu escrevo sobre a cidade, escrevo sobre pessoas sem raízes, sobre relações efêmeras e feiura. Sei que há diferença entre morar em São Paulo, Ceará e Paraná. Quando conheci essas três cidades, logo percebi que a cidade, que eu tive na minha infância, era feia. E, diferentemente das crianças do nordeste ou das crianças de “pé vermelho do Paraná”, eu inventava as minhas brincadeiras no Shopping Center. Esse espaço foi um lugar lúdico, o que é algo de um tremendo mau gosto em comparação a infância pobre e miserável da minha mãe e do meu pai; às vezes, eu pensava: “podia ter tido tudo que eu poderia ter tido, mas a infância deles tiveram mais. Eles tiveram barro, sol, ar livre e terra de verdade. E vieram pra cá, morar aqui, morar em São Paulo”.
O Shopping Center é também um espaço de memória. Quando eu tinha uns seis anos, eu sonhava fugir e morar para sempre no Shopping D.. Depois de alguns anos, conclui que a minha vida sempre foi um culto ao império da decadência, da quantidade e do consumo incessante. Na adolescência, entre 13 e 14 anos, eu comecei a minha coleção. Namorei o meu primeiro violeiro, depois, namorei um baixista e fui namorando outros músicos no caminho. Já vou explicar devagar, calma, meus queridos artistas, vou explicar com calma.
Há pouco tempo, reencontrei uma amiga chamada Anita, ela sempre foi uma menina bonita. Era uma moça um pouco tímida, muito religiosa e criamos um vínculo quando estávamos na puberdade. Anita, um dia, me disse:
- só considero namoro algo com mais de dois anos
- bom, eu prefiro a palavra “namorar” do que a palavra “ficar”, mas, às vezes, eu uso a palavra ficante. Nunca achei elegante essa palavra, mas às vezes eu uso. Fazer o quê? Isso foi invenção da nossa geração – eu respondi.
Eu tenho mania de listas, escrevo listas para tudo. E, com namorados, a minha lista é mental, nunca escrevi no meu diário. Eu diria até que tenho uma metodologia, critério, esquemas e teorias sobre isso. Já vou explicar, artistas, já vou explicar. A minha coleção começou quando eu tinha 13 anos (mais ou menos!), namorei um menino chamado Robério, cabelo ruivo, olhos castanhos, tocava violão e guitarra. Era um menino gentil, gostava de rock brasileiro, não entendia muito de música, tocava rápido, conhecia poucas referências musicais. Era meio tonto, mas era bonito.
Desde então, estabeleci parâmetros: meus namoros não duram mais de dois meses; namoro somente músicos; preciso fugir de todos. Por que músicos? Estou firmada em um desejo que não realizei, queria ser musicista ou cientista quando criança, no entanto, não servi para estudar química e não tinha paciência para estudar teoria musical. Pode ser qualquer tipo de músico? Como toda e qualquer coleção, sempre há aquelas peças mais valiosas.  As minhas peças valiosas são: 1) um violeiro que toca a escola do violão brasileiro (Rafael Rabelo, Dilermando Reis e Baden Powell), sempre achei que as mãos de um violeiro quando toca esse estilo fossem hábeis e livres; 2) um pianista que entendesse de impressionismo francês e tocasse Debussy, isso sempre foi sonho de criança. Sempre fui apaixonada pela figura mítica dos românticos de um pianista triste, sozinho, que sonha com uma musa; 3) um gaitista que tocasse clássicos do Blues.
Meu melhor amigo é um ex-músico, sempre dedicou a sua vida aos instrumentos de cordas. Ele nunca soube dos meus métodos, critérios e invenções literárias que estabeleci por conta dessa coleção. Na verdade, Joaquim não sabe dessa coleção, ele só ri dessa minha preferência por músicos. Ele tira sarro de mim e me chama de tiete.
De qualquer maneira, é estranho falar assim, meus queridos artistas, a minha coleção e o meu processo de escrita estão conectados. É, basicamente, a mesma coisa que acontece quando eu conheço um músico. Ele está com o instrumento, tocando, eu o vejo, distraído, em seguida, me interesso; o meu nível de interesse cresce por causa das músicas, se eu escuto uma música que me apaixona e me afeta, pode ser um sinal de romance imediato. (Muitas vezes, -- isso é uma pausa, -- eu conheci músicos tão medíocres que, na minha cabeça, eu pensava. Nossa! Esse cara toca um instrumento, mas eu entendo mais de música do que ele. Óbvio! Eu nunca falei isso para eles, os músicos usam a música para chamar as meninas, não vou abalar o ego frágil deles). Eu beijo, converso, encanto, seduzo e, depois, simplesmente, abandono. Não sofro quando abandono alguém, eu desapareço com muita facilidade.
Todos os músicos acontecem por acaso. A relação mais curta que eu tive foi com violeiro do Vila Lobos (era assim que eu o chamava), conheci-o ensaiando a música "Trenzinho Caipira", fiquei apaixonada rapidamente. Conversamos, beijamos e, depois, semanas seguintes, não nos vimos mais. A relação mais larga foi com o guitarrista libriano, ele sempre me encarou quando passava em frente a loja de instrumentos que trabalhava; quando eu quis, ele também; depois, abandonei-o simplesmente. Na minha lista de músicos, as figuras mais dominantes são guitarristas, violeiros e baixistas. Isso significa que já conheci bons músicos, outros medíocres e alguns irrelevantes.
A cada músico que me acontece, eu estou desatenta. Para sair da minha desatenção, a pessoa precisa tirar do meu lugar de distração (com boa música, é fácil sair desse lugar rapidinho). Eu sou, de repente, arrastada para um espaço atemporal e fico ludibriada como uma cobra que escuta um som de cantiga para sair do que a encobre. Passo horas hipnotizada pelo outro, ouvindo-o tocar, depois, ouvindo-o falar, depois, sentindo a pele distraidamente tocar as minhas mãos. A primeira parte do corpo erotizada, sem dúvida nenhuma, são as mãos. O toque desloca os pensamentos para outros lugares, fazendo cair no esquecimento.
Anita, uma vez, me disse:
- você é muito nova, Mariana, você nunca se apaixonou de verdade
Concordei rapidamente com ela. Anita falava como uma mulher de setenta anos, não sei, se é carinho em demasiado, atenção comigo, talvez.  Não sei, eu prometi não revelar a vida amorosa dela. Mas, em contraponto, eu tenho a vida amorosa mais sincera do mundo, admito que as pessoas sejam coisas, a memória seja efêmera e o gozo, uma peça descartável. Eu admito o que a modernidade fez com as minhas relações.
E, sendo uma escritora, temas como amor e paixão são bem frequentes na minha cabeça. Justamente, são lugares comuns na literatura ocidental, é um lugar comum dizer que tratar as pessoas de maneira descartável, fazendo sexo somente por diversão, tratando os outros como peças de coleção. É uma atitude antimoral, quando uma mulher age assim. Anita, provavelmente, gostaria de viver uma experiência como comercial de margarida. Ela é machucada por uma insegurança que não conhece direito. Talvez, eu também seja, talvez, somos parecidas. Talvez.
Eu nunca mais a vi, mas continuei a minha coleção. Esses dias, eu namorei um gaitista que tocava blues.  A cada músico que eu conheço, invento um título novo, consigo sintetizar alguma memória, crio novos argumentos de sedução. Acredito que bons poetas sabem seduzir uma pessoa; às vezes, de maneira imprecisa, sem método; noutras, de maneira distraída, intelectualizando metodologias. A sedução é uma técnica que consiste em aprisionar o leitor na história narrada. Quando encantamos com a beleza, é fácil enganar com mentiras; mas a beleza não sustenta a atenção do leitor por muito tempo. Ter um bom corpo, a boca sendo fitada por boca, olhos penetrantes são coisas que ajudam embriagar o leitor. É preciso criar modos da atenção do leitor não se desviar para outras coisas. Seduzir é uma técnica que consiste em saber escolher as boas palavras e saber escolher os bons silêncios. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Quando os nerds fazem a festa

Era o último dia de aula. Eles tinham quase dezoito anos, estavam terminando um período de suas vidas. Joaquim e Maurício eram meninos espertos, passavam às tardes de quartas-feiras e às tardes de sextas-feiras matando aula para ler quadrinhos e falar sobre música.  Mariana era uma menina rápida, olhos alertos, passava à tarde escrevendo possíveis contos e momentos do seu dia escolar em um caderno comum com linhas e capa dura.
Eram três adolescentes espertos, ambiciosos e esquecidos por toda a escola.(A incompreensão dos adolescentes é a única característica que essa espécie de ser humano dividi; afora isso, cada ser humano é um, cada narrativa é única e singular). Era o último dia de aula, eles não queriam estar na escola. Por isso, escolheram simplesmente não ir e festejar uma possível liberdade em outro lugar. A vida, quando obriga terminar algo, parece ser muito promissora e generosa. Os destinos parecem ser menos cruéis, não há violência na existência.
Mariana assistiu à última aula de física da escola (que era a primeira do dia em sua grade escolar), ouvindo músicas brasileiras, carregando um caderno comum, não se despediu de nenhuma colega e não escutou ninguém.  No fundo do coração, desejou que todas se ferrassem e até disse um palavrão quando saiu pelo portão da frente: “foda-se todos vocês”. Matou aula assim e caminhou sozinha no deserto da cidade.
Joaquim e Maurício não entraram na escola, ficaram observando todos os estudantes caminhar até a sala de aula. Eles ouviram as choradeiras, as promessas de eternidade e viram os últimos beijos na boca entre adolescentes curiosos. Jogaram uma lata de coca-cola na cabeça de dois bobos, xingaram uma menina e riram de todos, chamando-os de babacas, estúpidos e toscos.  Prometeram não voltar nunca mais àquele lugar, pintaram seus rostos, fizeram caras de maus garotos e caminharam até o Shopping Center.
Mariana conversou com um velhinho ocioso, sempre teve mania de conversar com desconhecidos.
- como vai você? – perguntou Mariana
- estou estranho. Hoje uma tive notícia estúpida. Você tem quantos anos?
- eu tenho 16 anos
- então, você não teve ainda oportunidade de ouvir uma notícia estúpida. Você sabe o que é uma notícia estúpida?
Mariana não respondeu.
- imagina você na sua casa, alegre e achando que a vida é plena. De repente, alguém bate na sua porta e surpreende com uma notícia estúpida. Você não sabe se você mata o mensageiro ou se mata você mesmo; porque percebe como viveu uma vida miserável. Você sabe o que é ter uma vida miserável? Você sabe o que é sofrer de verdade e estar no fundo do poço e ter coragem suficiente de desgraçar a sua vida por causa de uma notícia estúpida?
- eu não sei – Mariana respondeu inconsequentemente
- claro que você não sabe – o velho cuspiu saliva no chão e disse - , mas, ao menos, tem uma estúpida coragem de admitir que não sabe. O que você quer da vida, menina?
- eu quero ser escritora
O velhinho soltou uma gargalhada, Mariana sentiu vergonha.
- você quer ser escritora? Você quer ser escritora mesmo? Responda, menina, é isso que você quer?
Mariana balançou a cabeça positivamente.
- então, você vai ter que sofrer. Sofrer de verdade, menina, que ofício desgraçado que você foi escolher. Menina, sofrer de verdade, menina, não é fazer tipo de sofredor, não é fingir que sofre. Menina, não é só isso, não bastar sofrer pra escrever textos, sofrer é a condição necessária; sofrer igual um cachorro fudido, esfomeado e solitário no meio da rua, depois de ser atropelado centenas de vezes por carros de gente rica. Menina, você quer ser escritora? Você quer ser escritora de verdade, é isso que eu ouvi? Então, menina, você vai ter que perder a sua inocência. E vai ter que perder as suas boas intenções.
Mariana, forçosamente, abriu um sorriso juvenil.
- você é escritor?
 O velho arregalou os olhos. Mariana viu uma tristeza rabugenta, perambulava a face e desfazia o riso. Esse velho rangia os dentes que nem um porco, por um minuto, ela sentiu empatia e não sorriu mais. Ele, então, disse:
- sou, fiz de mim um parasita e você – ele bufou e abriu um sorriso largo -, você, menina, tem essa curiosidade ácida. Isso pode te ajudar a ser quem você quer ser. E os seus olhos, seus lindos olhos castanhos, menina, acho que é parte do seu corpo que não é inocente
O velhinho sorriu e beijou Mariana no rosto. Ela olhou-o ir embora como se observasse um ponto no infinito.
Joaquim e Maurício caminharam velozes ao Shopping Center. Eles assustaram todos que paravam em seu caminho, principalmente, crianças; pareciam integrantes da banda Kiss. Maurício mostrava a língua, Joaquim engolia um braço plástico e batia no chão com força. Derrubaram copos de vidros, gritavam palavrões e corriam na escada rolante. Maurício subiu no banco e gritou: “estamos aqui pra tocar terror!”. Joaquim quebrava brinquedos de crianças. Ambos entupiam-se de salgadinhos.
Os seguranças, vendo a bagunça, correram atrás dos moleques. Eles fugiram longe, correram como nunca correram na vida. Suados, risonhos, sentaram-se em um lugar seguro longe do mundo.
- o mundo não será mais o mesmo. Vamo fazer a revolução, Joaquim
- eu já perdi a fé na humanidade, Mau, - disse Joaquim, jogando o saco de salgadinho no chão, - mas, hoje, eu estou feliz
- e depois como vai ser?
- depois é um mistério que estou com preguiça de me preocupar
Ficaram alguns minutos em silêncio, bebendo restos de refrigerantes. Mariana estava sentada em uma mesa do Mc’ Donalds, a última vez que ela se sentou lá. A menina não comia carne uns seis meses, foi a maior comemoração de sua vida, comprou um X-burguer com batatas fritas e coca-cola, comeu solitária e silenciosa. Era o última dia da escola, eles entraram no Mc’Donalds e sentaram em frente a Mariana; Joaquim e Maurício conversaram em voz alta e riram. Era o primeiro dia de liberdade dos prisioneiros, estavam ferozes, serenos e vingativos.  Todos sorriam, a malícia misturava-se com Ketchup.

Era o último dia de aula do ensino médio, Mariana estava solitária, Joaquim ria pela última vez como idiota, Maurício sentia a ambição brilhar nos olhos pela última vez. Eles estavam violentos e sedentos por dentro. Eles desejavam um novo mundo. Mariana aprendeu rir menos, tornou-se amiga dos dois ex-idiotas da escola. Nunca mais conseguiram separar os vínculos que fizeram naquele dia, continuaram os mesmos animais prisioneiros do mundo.