No meu quarto desarrumado, vejo um espelho sombrio, meio azul, espiando o meu corpo. A reflexão desse espelho não é real, (não sei se é delírio ou ilusão?), o que eu vejo nesse espelho é só uma menina. Eu não gosto do que vejo. A tecnologia dos espelhos é muito franca, captura a alma dessa menina, tão repleta de monóxido de carbono, que cega os meus olhos e sufoca meus pulmões. Estou sem ar, é muito veneno. É um caos.
São ideias sujas que essa menina conserva na mente. Elas estão misturadas com as roupas do chão, espalhadas como sangue ao redor da cama. São sonhos maiores que o pobre corpo, é uma alma tão inculta, uma menina tão mentirosa vive enganando ela mesma, é a mais atingida pelo seu próprio veneno. Sinto toda a sua desorganização profunda atravessando suas veias, ela é um perigo para o mundo.
Não sei bem se a menina que eu vejo, sou eu. Não gosto dela. Mas e se for, menina? e se você, pequena, também ser eu? São vários eus nos seus e nos teus, é uma loucura-doida-neurótica, anormal e sem cura. Olhar-me bem fundo nos teus olhos, menina, é perceber um corpo que não é meu, um rosto incomum que não pode ser meu. Não vou me acostumar com tua companhia. Nem com tudo isso. Esse sangue que escorre em mim todos os meses. Esse corpo que estava acontecendo (sem eu perceber) e me assustava todo o dia.
Não poderia imaginar. O que estava sucedendo era algo pior do que se podia imaginar, a imagem que refletia no espelho era de uma mutante ambulante em transformação. Tudo que eu conhecia em mim ganhava volume como massa de bolo que coloca fermento e cresce. O sabor do bolo era amargo, a floresta negra que sondava o meu ventre, insurgia em mim sentimentos perigosos como o medo de ficar grávida, o desejo por todos os homens do mundo e o gosto do inferno. Estava em processo, me transformando pouco a pouco em uma criatura inventada, eu seria o que eles queriam uma mulher.
O perigo estava ali em frente aos meus olhos. Confrontava com essa menina. Tinha nascido nessa condição social, meu sexo era feminino, eu era mulher inevitavelmente, será que eu já era assim e nunca tinha percebido? Não, tinha algo antes. Algo que não mencionei para essa menina. Mais que isso, eu não queria me perceber mulher, não tinha vocação para ser essa criatura tão louca. Seria muita responsabilidade, não estava preparada para isso.
Nasci mulher, mas não tenho a mínima ideia de como ser uma. O que seria uma mulher? O que é essa criatura estranha de rituais estranhos? Será que isso é uma das coisas que a gente tem que descobrir sozinha? Nenhum adulto me explicaria. Um belo dia, eu acordaria e não reconheceria mais você, menina, que está aí me espiando; não sei se esqueceria de você, pequena, ou não permitiria relembrar a menina que um dia eu fui. Sei apenas que um dia você seria o meu passado. Destruiria você para sempre, os adultos iriam me obrigar fazer isso com você, pequena. Eu te mataria, porque eu devo virar uma mulher. Será que destruir é oficialmente a minha primeira atitude feminina? Será que as mulheres que eu mais admiro já se destruíram um dia? O que vem depois da destruição?
Dentro de mim, eu sentia uma responsabilidade enorme. Tinha nascido depois de signos e mitos de mulheres libertárias, escritoras, atrizes e intelectuais feministas. Eu me sentia como um reflexo de todas elas. Ei menina que me olha assustada! Ser mulher implica numa grande responsabilidade social. Você não é mais menina, eu que sou uma mulher.
A menina fica brava, mas faz o juramento:
Pois se é assim. Eu aceito. Aceito ser essa criatura estranha com rituais estranhos. Eu juro por Deus menstruar todos os meses, aceito todas as consequências disso. Juro ser complicada e misteriosa até para mim mesma. Juro! Até a morte me separar de mim, ser essa criatura neurótica que bagunçará a cabeça de todos os homens. Eu aceito. Passo o batom como um ritual de passagem, entro na seita e finjo que te entendo, mulher. Caso com você até a morte nos separar.
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