Na
mesa, existe um copo d’ água que olha meio zarolho para um pedaço de pizza
encardido e solitário. Em torno das coisas, o mundo respira poluição. Estamos
em São Paulo, vivendo o mundo das coisas bonitas e solitárias da classe média.
Descrevendo doenças da vida humana, a principal de todas no século XXI é a
depressão. Como narrador, deste conto, posso dizer ao leitor que eu sou a única
pessoa feliz do mundo.
(Devia
falar menos. Devia mostrar mais os acontecimentos. Devia ser menos tagarela,
afinal esse comportamento não dá o fundo de experiência que a palavra precisa.
Tagarelice é fala vazia, mesmo em silêncio. É fala vazia).
A
pizza encardida percebe o relógio alto e sedutor em cima da mesa. A mesa é
passiva, aceita que as coisas pisam em cima dela. A negritude da mesa permitiu
que objetos mais inúteis ficassem expostos em conforto na sua superfície. A
mesa é uma esquecida do mundo, excluída pela sala de estar, mas é o maior objeto
da sala. A pizza flerta com o relógio, este por sua vez ignora-a completamente.
O
relógio, todo encurvado, belo e elitista avisa que são onze horas da manhã.
Aspira um ar aristocrata, afinal enxerga os objetos todos de cima. Avisa sobre
o tempo, mas pouco consegue descrevê-lo. Uma vez, um quadro de Paul Klee, um
pouco descabido, “A máquina de Gojear”, perguntou ao relógio: como é que você
se relaciona com o tempo? O relógio quase respondeu: na verdade, não me
relaciono com ele, o tempo não passa para mim; só tenho a função de avisar que
é a hora da hora; sou escravo do tempo. Mas não respondeu, o relógio é sempre
arrogante com outros objetos, olhou-o com indiferença e disse: não é da sua
conta. Avisando que já eram sete horas da noite.
Na
sala de estar, entra um Homem.
Um
Homem que possui o R.G. de número 45.398.431-7, uma conta de vinte mil reias no
Banco Bradesco, que nunca mexeu, duas filhas que moram em Santa Catarina e
cabelos brancos. Esse homem era funcionário público, trabalhava no cartório da
cidade. Hoje ele é aposentado, caminha todas as manhãs no Pq. da Juventude ou
no Jardim São Paulo, cultivando o hábito da boa saúde. Esse homem possui o
sobrenome Silva.
Silva
mora sozinho. É ele que entra na sala. Olha desconfiado para as coisas como se
elas tivessem vida, quando o Homem não está entre elas. Senta em uma das
cadeiras, aproximando-se da mesa. A mesa fica feliz, ansiando um sorriso em troca,
mas nada acontece. O homem, apenas, senta. Bebe o resto d’água que sobrou do
copo. A água entra no seu corpo, ele sente uma espécie de prazer, matou a sede
que sentiu depois da corrida pelo parque. O relógio avisa que são onze horas e
um minuto, esnobando o flerte da pizza. Silva mira a parede, apercebe, então, a
fotografia.
A
fotografia está pendurada na parede, mas ela é tão tímida. Revela algo no seu
passado tão antigo. A imagem na fotografia é a expressão da alegria da
juventude, do sonho revolucionário e dos amigos que acreditavam na revolução em
1960. Silva vestia uma camisa azul, toda
suja, na foto, comemorava o seu último ano novo feliz com esses amigos. Ao lado
dele, a sua mulher Maria segurando a sua sobrinha Anita, enquanto a menina
enxergava o céu. Dois amigos barbudos rindo despreocupadamente, enquanto cantavam
uma canção alegre. Toninho tocava flauta, morreu torturado na Ditadura e nunca
mais souberam do corpo dele. O da direita é Maurício, sonhador e poeta, nunca
mais foi o mesmo depois do exílio, se matou em Londres. Maria era linda,
sobreviveu as lembranças da Ditadura e se acostumou a viver sem a presença do
seu irmão Toninho. Recentemente, ela tinha morrido de câncer. Silva e Maria já
estavam divorciados uns dois anos. Ninguém sabia até hoje onde estava o corpo
de Toninho. Mesmo depois do pentacampeonato do Brasil.
Toninho
era um cearense esquecido pelos brasileiros. Um poeta anônimo. Ele conheceu
Silva na estação Tietê, ambos tinham acabado de chegar na cidade de São Paulo,
procuravam casa para morar. Silva foi fazer história na USP, Toninho procurava
algum emprego decente para trabalhar e cantar nos barzinhos à noite. Eles passaram
a conviver juntos, assinaram o contrato no lugarzinho da Bela Vista e dividiram
o aluguel. Desse modo, Toninho apresentou a irmã dele para Silva, este ficou
pasmo e apaixonado de repente. Maria estava de visita na casa do irmão, mas
acabou ficando por culpa de Silva, apaixonou-se imediatamente pelo cabeludo e
marxista.
Silva
foi preso no Congresso da UNE de Ibiúna, Maria estava grávida de sua primeira
filha, Toninho estava perseguido, fugindo junto com seu colega artista que
tinha conhecido no grupo de teatro, chamado MauMau pelos íntimos. Até que no
dia 28 de agosto, numa sexta-feira, ele tinha caído, foi a Maria que
pressentiu, estava sozinha em casa. Às duas horas da madrugada, foi atrás do
seu irmão, não encontrava notícias dele. A polícia não sabia onde estava, a
Marinha e o Exército também não ajudavam nas informações. Ela ficou desorientada e com muito ódio das
autoridades brasileiras, não podia falar com Silva, porque ele estava preso,
MauMau tinha sumido.
Às
duas da madrugada, Maria ouviu um canto de passarinho, era um som triste,
parecia uma despedida. Uma frase em cima da mesa, quase um mantra que Toninho
escrevia por todos os cantos da casa: “ pra não dizer que não falei das
flores”. Ela olhava a frase, sentia um choro difícil, a voz não saia com
naturalidade, parecia que Maria tinha perdido a capacidade de falar. Entendeu
finalmente, Toninho nunca mais voltaria para casa. Maria sentiu o chute no ventre, era Marília
dizendo – oia! Eu estou viva! A mãe de
Marília chorava em cima da cama, repetindo o mantra do irmão em silêncio. Em um estrondo de um minuto, a voz rouca e
dilacerante saía da boca de Maria, ela dizia para si mesma: É demais, minha
filha! É demais!.
Depois
da tortura, Silva sentia sede. O Homem da sala de estar olhando a fotografia,
sentiu remorso da sede que nunca terminou, ele bebeu outro copo d’água. Mas não
tinha mais lágrimas para chorar, elas secaram de tanto ódio calado.
A
pizza encardida sonha em ser comida, Silva joga-a no lixo. Senta outra vez na
cadeira, observa agora o rosto feliz da Marília na formatura da faculdade de
Medicina. Marília era a sua filha mais velha, nasceu em 1968, depois do AI-5. Relembrou uma cena que viveu com ela, quando
morava no Chile:
-
papai! Papai!
Abraçando
forte a cintura. Sem jeito com as saudades, Silva também a abraçava,
perguntando timidamente:
-
como vai menina?
-
Papai! Papai! Me perguntaram na escola o que eu queria ser quando crescer?
-
o que você respondeu?
-
respondi: não sei
-
não sabe filha?
-
sei o que eu não quero ser
-
o que não quer ser?
-
eu não quero ser herói
Ele
se lembrava do som dessa frase: “Eu não quero ser herói”. Aquela voz aguda
dizendo com tanta naturalidade uma frase dessas, não conhecia o que se passava,
mas intuía o que os seus pais viviam, a menina quase predizia. Ele não queria
ser herói, nem queria uma nação que precisasse desses heróis.
Ao
lado da foto da Marília, estava Juliana. Era filha mais nova que teve no
segundo casamento, ela tinha somente vinte anos. Silva nunca conseguiu
estabelecer relações com Juliana, era uma menina muito quieta, quando criança
precisou fazer consultas com fonologista, porque tinha problemas de fala.
Juliana não sabia contar histórias, tinha nascido em 1990, era uma menina
“apagadinha”, mas tinha os seus encantos. Nasceu no Brasil, um dia, ela viu o céu,
apontou para ele e disse com dificuldade:
-
não
A
primeira palavra que ela disse foi um advérbio de negação. Marília já era uma
jovem bonita, ouviu a palavra e falou para o pai:
-
Pai! Essa menina disse não. Eu senti um medo de repente por essa criança, a primeira
palavra dela foi logo um não.
Juliana
repetia o “não” continuamente. Aprendeu a falar, conseguiu se tornar uma moça
extrovertida, mas nunca estabeleceu relações com seu pai. Silva aprendeu a ficar
em silêncio, enquanto Juliana falava como uma tagarela. Ambos criaram um abismo
entre eles, não conseguiam ultrapassar essa barreira. Ele olhava a única foto
que estava ao lado de Juliana, era uma foto do parque, fora esse momento que
nasceu a primeira palavra na boca dessa criança. Talvez, naquele instante que a
Ju pronunciou o advérbio “não”, o abismo entre os dois tinha nascido para
sempre. Silva não era herói, nem conseguiu ser o pai de Ju.
O
Homem olhava a fotografia de sua sala de estar. Não entendia a linguagem do
tempo, nem o relógio sabia explicar. Ele perdia a capacidade de fala a cada
segundo, quando negavam a possibilidade de imaginar o seu passado e contar a
sua história. As fotografias eram objetos tímidos, imobilizavam histórias que
ele só podia contar em silêncio, o único interlocutor de suas memórias era a pizza
encardida que agora pouco ele tinha jogado no lixo. A pizza perdia o sabor e se
misturava com o lixo da semana passada. Avisava o relógio que era meio dia.
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