domingo, 27 de janeiro de 2013

A Fotografia


Na mesa, existe um copo d’ água que olha meio zarolho para um pedaço de pizza encardido e solitário. Em torno das coisas, o mundo respira poluição. Estamos em São Paulo, vivendo o mundo das coisas bonitas e solitárias da classe média. Descrevendo doenças da vida humana, a principal de todas no século XXI é a depressão. Como narrador, deste conto, posso dizer ao leitor que eu sou a única pessoa feliz do mundo.
(Devia falar menos. Devia mostrar mais os acontecimentos. Devia ser menos tagarela, afinal esse comportamento não dá o fundo de experiência que a palavra precisa. Tagarelice é fala vazia, mesmo em silêncio. É fala vazia).
A pizza encardida percebe o relógio alto e sedutor em cima da mesa. A mesa é passiva, aceita que as coisas pisam em cima dela. A negritude da mesa permitiu que objetos mais inúteis ficassem expostos em conforto na sua superfície. A mesa é uma esquecida do mundo, excluída pela sala de estar, mas é o maior objeto da sala. A pizza flerta com o relógio, este por sua vez ignora-a completamente.
O relógio, todo encurvado, belo e elitista avisa que são onze horas da manhã. Aspira um ar aristocrata, afinal enxerga os objetos todos de cima. Avisa sobre o tempo, mas pouco consegue descrevê-lo. Uma vez, um quadro de Paul Klee, um pouco descabido, “A máquina de Gojear”, perguntou ao relógio: como é que você se relaciona com o tempo? O relógio quase respondeu: na verdade, não me relaciono com ele, o tempo não passa para mim; só tenho a função de avisar que é a hora da hora; sou escravo do tempo. Mas não respondeu, o relógio é sempre arrogante com outros objetos, olhou-o com indiferença e disse: não é da sua conta. Avisando que já eram sete horas da noite.
Na sala de estar, entra um Homem.
                                                                                                                                             
Um Homem que possui o R.G. de número 45.398.431-7, uma conta de vinte mil reias no Banco Bradesco, que nunca mexeu, duas filhas que moram em Santa Catarina e cabelos brancos. Esse homem era funcionário público, trabalhava no cartório da cidade. Hoje ele é aposentado, caminha todas as manhãs no Pq. da Juventude ou no Jardim São Paulo, cultivando o hábito da boa saúde. Esse homem possui o sobrenome Silva.
Silva mora sozinho. É ele que entra na sala. Olha desconfiado para as coisas como se elas tivessem vida, quando o Homem não está entre elas. Senta em uma das cadeiras, aproximando-se da mesa. A mesa fica feliz, ansiando um sorriso em troca, mas nada acontece. O homem, apenas, senta. Bebe o resto d’água que sobrou do copo. A água entra no seu corpo, ele sente uma espécie de prazer, matou a sede que sentiu depois da corrida pelo parque. O relógio avisa que são onze horas e um minuto, esnobando o flerte da pizza. Silva mira a parede, apercebe, então, a fotografia.
A fotografia está pendurada na parede, mas ela é tão tímida. Revela algo no seu passado tão antigo. A imagem na fotografia é a expressão da alegria da juventude, do sonho revolucionário e dos amigos que acreditavam na revolução em 1960.  Silva vestia uma camisa azul, toda suja, na foto, comemorava o seu último ano novo feliz com esses amigos. Ao lado dele, a sua mulher Maria segurando a sua sobrinha Anita, enquanto a menina enxergava o céu. Dois amigos barbudos rindo despreocupadamente, enquanto cantavam uma canção alegre. Toninho tocava flauta, morreu torturado na Ditadura e nunca mais souberam do corpo dele. O da direita é Maurício, sonhador e poeta, nunca mais foi o mesmo depois do exílio, se matou em Londres. Maria era linda, sobreviveu as lembranças da Ditadura e se acostumou a viver sem a presença do seu irmão Toninho. Recentemente, ela tinha morrido de câncer. Silva e Maria já estavam divorciados uns dois anos. Ninguém sabia até hoje onde estava o corpo de Toninho. Mesmo depois do pentacampeonato do Brasil.
Toninho era um cearense esquecido pelos brasileiros. Um poeta anônimo. Ele conheceu Silva na estação Tietê, ambos tinham acabado de chegar na cidade de São Paulo, procuravam casa para morar. Silva foi fazer história na USP, Toninho procurava algum emprego decente para trabalhar e cantar nos barzinhos à noite. Eles passaram a conviver juntos, assinaram o contrato no lugarzinho da Bela Vista e dividiram o aluguel. Desse modo, Toninho apresentou a irmã dele para Silva, este ficou pasmo e apaixonado de repente. Maria estava de visita na casa do irmão, mas acabou ficando por culpa de Silva, apaixonou-se imediatamente pelo cabeludo e marxista.
Silva foi preso no Congresso da UNE de Ibiúna, Maria estava grávida de sua primeira filha, Toninho estava perseguido, fugindo junto com seu colega artista que tinha conhecido no grupo de teatro, chamado MauMau pelos íntimos. Até que no dia 28 de agosto, numa sexta-feira, ele tinha caído, foi a Maria que pressentiu, estava sozinha em casa. Às duas horas da madrugada, foi atrás do seu irmão, não encontrava notícias dele. A polícia não sabia onde estava, a Marinha e o Exército também não ajudavam nas informações.  Ela ficou desorientada e com muito ódio das autoridades brasileiras, não podia falar com Silva, porque ele estava preso, MauMau tinha sumido.
Às duas da madrugada, Maria ouviu um canto de passarinho, era um som triste, parecia uma despedida. Uma frase em cima da mesa, quase um mantra que Toninho escrevia por todos os cantos da casa: “ pra não dizer que não falei das flores”. Ela olhava a frase, sentia um choro difícil, a voz não saia com naturalidade, parecia que Maria tinha perdido a capacidade de falar. Entendeu finalmente, Toninho nunca mais voltaria para casa.  Maria sentiu o chute no ventre, era Marília dizendo – oia! Eu estou viva!  A mãe de Marília chorava em cima da cama, repetindo o mantra do irmão em silêncio.  Em um estrondo de um minuto, a voz rouca e dilacerante saía da boca de Maria, ela dizia para si mesma: É demais, minha filha! É demais!.
Depois da tortura, Silva sentia sede. O Homem da sala de estar olhando a fotografia, sentiu remorso da sede que nunca terminou, ele bebeu outro copo d’água. Mas não tinha mais lágrimas para chorar, elas secaram de tanto ódio calado.


A pizza encardida sonha em ser comida, Silva joga-a no lixo. Senta outra vez na cadeira, observa agora o rosto feliz da Marília na formatura da faculdade de Medicina. Marília era a sua filha mais velha, nasceu em 1968, depois do AI-5.  Relembrou uma cena que viveu com ela, quando morava no Chile:
- papai! Papai!
Abraçando forte a cintura. Sem jeito com as saudades, Silva também a abraçava, perguntando timidamente:
- como vai menina?
- Papai! Papai! Me perguntaram na escola o que eu queria ser quando crescer?
- o que você respondeu?
- respondi: não sei
- não sabe filha?
- sei o que eu não quero ser
- o que não quer ser?
- eu não quero ser herói
Ele se lembrava do som dessa frase: “Eu não quero ser herói”. Aquela voz aguda dizendo com tanta naturalidade uma frase dessas, não conhecia o que se passava, mas intuía o que os seus pais viviam, a menina quase predizia. Ele não queria ser herói, nem queria uma nação que precisasse desses heróis.
Ao lado da foto da Marília, estava Juliana. Era filha mais nova que teve no segundo casamento, ela tinha somente vinte anos. Silva nunca conseguiu estabelecer relações com Juliana, era uma menina muito quieta, quando criança precisou fazer consultas com fonologista, porque tinha problemas de fala. Juliana não sabia contar histórias, tinha nascido em 1990, era uma menina “apagadinha”, mas tinha os seus encantos. Nasceu no Brasil, um dia, ela viu o céu, apontou para ele e disse com dificuldade:
- não
A primeira palavra que ela disse foi um advérbio de negação. Marília já era uma jovem bonita, ouviu a palavra e falou para o pai:
- Pai! Essa menina disse não. Eu senti um medo de repente por essa criança, a primeira palavra dela foi logo um não.
Juliana repetia o “não” continuamente. Aprendeu a falar, conseguiu se tornar uma moça extrovertida, mas nunca estabeleceu relações com seu pai. Silva aprendeu a ficar em silêncio, enquanto Juliana falava como uma tagarela. Ambos criaram um abismo entre eles, não conseguiam ultrapassar essa barreira. Ele olhava a única foto que estava ao lado de Juliana, era uma foto do parque, fora esse momento que nasceu a primeira palavra na boca dessa criança. Talvez, naquele instante que a Ju pronunciou o advérbio “não”, o abismo entre os dois tinha nascido para sempre. Silva não era herói, nem conseguiu ser o pai de Ju.
O Homem olhava a fotografia de sua sala de estar. Não entendia a linguagem do tempo, nem o relógio sabia explicar. Ele perdia a capacidade de fala a cada segundo, quando negavam a possibilidade de imaginar o seu passado e contar a sua história. As fotografias eram objetos tímidos, imobilizavam histórias que ele só podia contar em silêncio, o único interlocutor de suas memórias era a pizza encardida que agora pouco ele tinha jogado no lixo. A pizza perdia o sabor e se misturava com o lixo da semana passada. Avisava o relógio que era meio dia. 

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