domingo, 27 de janeiro de 2013

A Fotografia


Na mesa, existe um copo d’ água que olha meio zarolho para um pedaço de pizza encardido e solitário. Em torno das coisas, o mundo respira poluição. Estamos em São Paulo, vivendo o mundo das coisas bonitas e solitárias da classe média. Descrevendo doenças da vida humana, a principal de todas no século XXI é a depressão. Como narrador, deste conto, posso dizer ao leitor que eu sou a única pessoa feliz do mundo.
(Devia falar menos. Devia mostrar mais os acontecimentos. Devia ser menos tagarela, afinal esse comportamento não dá o fundo de experiência que a palavra precisa. Tagarelice é fala vazia, mesmo em silêncio. É fala vazia).
A pizza encardida percebe o relógio alto e sedutor em cima da mesa. A mesa é passiva, aceita que as coisas pisam em cima dela. A negritude da mesa permitiu que objetos mais inúteis ficassem expostos em conforto na sua superfície. A mesa é uma esquecida do mundo, excluída pela sala de estar, mas é o maior objeto da sala. A pizza flerta com o relógio, este por sua vez ignora-a completamente.
O relógio, todo encurvado, belo e elitista avisa que são onze horas da manhã. Aspira um ar aristocrata, afinal enxerga os objetos todos de cima. Avisa sobre o tempo, mas pouco consegue descrevê-lo. Uma vez, um quadro de Paul Klee, um pouco descabido, “A máquina de Gojear”, perguntou ao relógio: como é que você se relaciona com o tempo? O relógio quase respondeu: na verdade, não me relaciono com ele, o tempo não passa para mim; só tenho a função de avisar que é a hora da hora; sou escravo do tempo. Mas não respondeu, o relógio é sempre arrogante com outros objetos, olhou-o com indiferença e disse: não é da sua conta. Avisando que já eram sete horas da noite.
Na sala de estar, entra um Homem.
                                                                                                                                             
Um Homem que possui o R.G. de número 45.398.431-7, uma conta de vinte mil reias no Banco Bradesco, que nunca mexeu, duas filhas que moram em Santa Catarina e cabelos brancos. Esse homem era funcionário público, trabalhava no cartório da cidade. Hoje ele é aposentado, caminha todas as manhãs no Pq. da Juventude ou no Jardim São Paulo, cultivando o hábito da boa saúde. Esse homem possui o sobrenome Silva.
Silva mora sozinho. É ele que entra na sala. Olha desconfiado para as coisas como se elas tivessem vida, quando o Homem não está entre elas. Senta em uma das cadeiras, aproximando-se da mesa. A mesa fica feliz, ansiando um sorriso em troca, mas nada acontece. O homem, apenas, senta. Bebe o resto d’água que sobrou do copo. A água entra no seu corpo, ele sente uma espécie de prazer, matou a sede que sentiu depois da corrida pelo parque. O relógio avisa que são onze horas e um minuto, esnobando o flerte da pizza. Silva mira a parede, apercebe, então, a fotografia.
A fotografia está pendurada na parede, mas ela é tão tímida. Revela algo no seu passado tão antigo. A imagem na fotografia é a expressão da alegria da juventude, do sonho revolucionário e dos amigos que acreditavam na revolução em 1960.  Silva vestia uma camisa azul, toda suja, na foto, comemorava o seu último ano novo feliz com esses amigos. Ao lado dele, a sua mulher Maria segurando a sua sobrinha Anita, enquanto a menina enxergava o céu. Dois amigos barbudos rindo despreocupadamente, enquanto cantavam uma canção alegre. Toninho tocava flauta, morreu torturado na Ditadura e nunca mais souberam do corpo dele. O da direita é Maurício, sonhador e poeta, nunca mais foi o mesmo depois do exílio, se matou em Londres. Maria era linda, sobreviveu as lembranças da Ditadura e se acostumou a viver sem a presença do seu irmão Toninho. Recentemente, ela tinha morrido de câncer. Silva e Maria já estavam divorciados uns dois anos. Ninguém sabia até hoje onde estava o corpo de Toninho. Mesmo depois do pentacampeonato do Brasil.
Toninho era um cearense esquecido pelos brasileiros. Um poeta anônimo. Ele conheceu Silva na estação Tietê, ambos tinham acabado de chegar na cidade de São Paulo, procuravam casa para morar. Silva foi fazer história na USP, Toninho procurava algum emprego decente para trabalhar e cantar nos barzinhos à noite. Eles passaram a conviver juntos, assinaram o contrato no lugarzinho da Bela Vista e dividiram o aluguel. Desse modo, Toninho apresentou a irmã dele para Silva, este ficou pasmo e apaixonado de repente. Maria estava de visita na casa do irmão, mas acabou ficando por culpa de Silva, apaixonou-se imediatamente pelo cabeludo e marxista.
Silva foi preso no Congresso da UNE de Ibiúna, Maria estava grávida de sua primeira filha, Toninho estava perseguido, fugindo junto com seu colega artista que tinha conhecido no grupo de teatro, chamado MauMau pelos íntimos. Até que no dia 28 de agosto, numa sexta-feira, ele tinha caído, foi a Maria que pressentiu, estava sozinha em casa. Às duas horas da madrugada, foi atrás do seu irmão, não encontrava notícias dele. A polícia não sabia onde estava, a Marinha e o Exército também não ajudavam nas informações.  Ela ficou desorientada e com muito ódio das autoridades brasileiras, não podia falar com Silva, porque ele estava preso, MauMau tinha sumido.
Às duas da madrugada, Maria ouviu um canto de passarinho, era um som triste, parecia uma despedida. Uma frase em cima da mesa, quase um mantra que Toninho escrevia por todos os cantos da casa: “ pra não dizer que não falei das flores”. Ela olhava a frase, sentia um choro difícil, a voz não saia com naturalidade, parecia que Maria tinha perdido a capacidade de falar. Entendeu finalmente, Toninho nunca mais voltaria para casa.  Maria sentiu o chute no ventre, era Marília dizendo – oia! Eu estou viva!  A mãe de Marília chorava em cima da cama, repetindo o mantra do irmão em silêncio.  Em um estrondo de um minuto, a voz rouca e dilacerante saía da boca de Maria, ela dizia para si mesma: É demais, minha filha! É demais!.
Depois da tortura, Silva sentia sede. O Homem da sala de estar olhando a fotografia, sentiu remorso da sede que nunca terminou, ele bebeu outro copo d’água. Mas não tinha mais lágrimas para chorar, elas secaram de tanto ódio calado.


A pizza encardida sonha em ser comida, Silva joga-a no lixo. Senta outra vez na cadeira, observa agora o rosto feliz da Marília na formatura da faculdade de Medicina. Marília era a sua filha mais velha, nasceu em 1968, depois do AI-5.  Relembrou uma cena que viveu com ela, quando morava no Chile:
- papai! Papai!
Abraçando forte a cintura. Sem jeito com as saudades, Silva também a abraçava, perguntando timidamente:
- como vai menina?
- Papai! Papai! Me perguntaram na escola o que eu queria ser quando crescer?
- o que você respondeu?
- respondi: não sei
- não sabe filha?
- sei o que eu não quero ser
- o que não quer ser?
- eu não quero ser herói
Ele se lembrava do som dessa frase: “Eu não quero ser herói”. Aquela voz aguda dizendo com tanta naturalidade uma frase dessas, não conhecia o que se passava, mas intuía o que os seus pais viviam, a menina quase predizia. Ele não queria ser herói, nem queria uma nação que precisasse desses heróis.
Ao lado da foto da Marília, estava Juliana. Era filha mais nova que teve no segundo casamento, ela tinha somente vinte anos. Silva nunca conseguiu estabelecer relações com Juliana, era uma menina muito quieta, quando criança precisou fazer consultas com fonologista, porque tinha problemas de fala. Juliana não sabia contar histórias, tinha nascido em 1990, era uma menina “apagadinha”, mas tinha os seus encantos. Nasceu no Brasil, um dia, ela viu o céu, apontou para ele e disse com dificuldade:
- não
A primeira palavra que ela disse foi um advérbio de negação. Marília já era uma jovem bonita, ouviu a palavra e falou para o pai:
- Pai! Essa menina disse não. Eu senti um medo de repente por essa criança, a primeira palavra dela foi logo um não.
Juliana repetia o “não” continuamente. Aprendeu a falar, conseguiu se tornar uma moça extrovertida, mas nunca estabeleceu relações com seu pai. Silva aprendeu a ficar em silêncio, enquanto Juliana falava como uma tagarela. Ambos criaram um abismo entre eles, não conseguiam ultrapassar essa barreira. Ele olhava a única foto que estava ao lado de Juliana, era uma foto do parque, fora esse momento que nasceu a primeira palavra na boca dessa criança. Talvez, naquele instante que a Ju pronunciou o advérbio “não”, o abismo entre os dois tinha nascido para sempre. Silva não era herói, nem conseguiu ser o pai de Ju.
O Homem olhava a fotografia de sua sala de estar. Não entendia a linguagem do tempo, nem o relógio sabia explicar. Ele perdia a capacidade de fala a cada segundo, quando negavam a possibilidade de imaginar o seu passado e contar a sua história. As fotografias eram objetos tímidos, imobilizavam histórias que ele só podia contar em silêncio, o único interlocutor de suas memórias era a pizza encardida que agora pouco ele tinha jogado no lixo. A pizza perdia o sabor e se misturava com o lixo da semana passada. Avisava o relógio que era meio dia. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Vírgulas, pausas e histórias


à Maria Manuela e outras que atravessaram meu caminho

A

- então, me conte tudo da sua vida
Aconteceu um arrebatamento. Desses desnecessários. Ela não sabia bem se olhava para o teto ou para o chão, soube apenas que algo iria mudar, mesmo sendo aparentemente uma cena banal.
- seis anos não são seis dias

B

Seis anos antes. Elas eram meninas, sonhavam sonhos de menininhas, desejavam desejos de românticos e nada sabiam que a realidade soprava outros ventos. Elas tinham uma turma, um monte de meninas que são mulheres hoje. Seguiram o seu rumo, se um dia todas se encontrarem numa esquina é bem capaz que nenhuma se reconheça mais. Devem viver muito bem, provavelmente, vivem. Com suas crises, seus sonhos novos, desejos e aventuras novas, todas as meninas de antes vivem como podem. São todas marcadas pelo tempo, vivem a vida que aconteceu pra elas.

C

- seis anos não são seis dias. Mas me conte tudo!
- eu fico com vergonha
- a gente dividiu a nossa vida juntos, vergonha de que?

D

Por intermédio de um segundo, ela olhou para si mesma e viveu a sua vida com tanta intensidade que não soube comunicá-la. O que poderia falar? Aliás, mesmo ouvindo atentamente a história da outra mulher, que um dia foi a sua amiga de puberdade, se perguntava e respondia para si mesma. Como não somos mais as mesmas! Fica impossível de contar tudo, sempre faltará o resto, realmente, seis anos não são seis dias. 
Aliás, - ela pensou -, o tempo não informa com palavras, as mudanças estão aí, inegáveis. Não somos mais meninas já quase mais de seis anos. Ela se transformou adulta e não vi isso acontecer. Não contei pra ela sobre minha primeira transa, meus sonhos desperdiçados, sobre o beijo que me deram no último ano do ensino médio e me marcou desde então, jamais contarei; até contarei, mas jamais será como antes. O tempo se perde no espaço. O tempo é só tempo, eu sou apenas o presente de mim mesma. O meu presente é o que está aqui, em silêncio, vivendo apenas. Sinto saudades, como eu sinto! Não é um sentimento ruim, fico feliz de saber que apesar de. O presente não é amargo, não é nostálgico, hermético. Ainda somos amigas, posso ainda contar tudo, mas sobre tudo que me aconteceu, é muita coisa, não saberia nem por onde começar. Já passou quase tudo. Algumas mágoas restaram nos caminhos, alguns sonhos se transformaram em restos, eu ainda sou tão insegura. Mas já não sou mais a menina de antes, isso tá marcado no meu corpo e na minha pele. Ela também! Nem a voz é mais a mesma.
- oh minha amiga, que saudade! Tenho tanto pra te contar...
Três segundos depois. Ela não contou sequer metade do que gostaria, apenas disse:
- oh minha amiga, que saudade!

E

Era provavelmente Março, Abril ou Fevereiro. Já estava tarde, chovia na Av. Paulista (cenário cinematográfico!). Uma menina de dezessete anos caminhava de madrugada por lá. Chorava muito, a narradora dessa história não vai dizer o motivo do choro, apenas dirá que no meio da Av. Paulista, pela madrugada, cenário de cinema, tal qual Bonequinho de Luxo, apenas faltando a Tiffany ‘s para observar as jóias, enquanto a moça come o seu café da manhã. A menina, em questão, atravessa a rua.
Sente um arrebatamento. Desses absolutamente necessários! Entende por um segundo tudo que lhe aconteceu, deseja tanto conversar com alguém. Ligaria para todas as amigas imediatamente, se ainda tivesse o número de telefone na agenda de seu celular. Ela se sente imensamente solitária, aprende aos poucos o que é silêncio.
Silêncio é sentir a chuva, enquanto os carros passam.  Nunca se perdoaria por não ter dito o que pensava das pessoas que estavam próximas e foram embora. Mas, possivelmente, jamais veria ninguém. Sozinha, se tornaria uma mulher, sem nem ao menos contar os erros e as descobertas no meio da manhã. Era Maio ou Agosto, ela completaria dezoito anos, finalmente entendeu que todos iriam embora um dia, mas que coisas marcariam pra sempre. Seguiria com algumas marcas, cresceria com elas, às vezes até sentiria falta de vivê-las outra vez, mas saberia daqui por diante que a vida dava outra vida.
Como estavam as outras meninas? Queria ter dado um abraço apertado em todas elas antes de continuar o caminho. Todas foram embora no meio da noite, ninguém se despediu direito. Não se perdoaria jamais. Apesar de, se vive.

F

Quem é aquela que olha?
Aquela menina de olhos distantes, de sonhos saudáveis. Ainda se irrita quando fala do mesmo homem.  Mexe com os dedinhos, coloca mais bebida no copo, deseja um desejo desconhecido, se esquece de pagar o IPTU, precisa muito de foco, precisa terminar coisas, pensa seriamente em esquecer esse cara de seis anos, não se lembra mais como faz equações de segundo grau. Acredita que a vida é bonita. Acredita em tanta coisa. Canta alto, sonha alto, dorme baixo, escuta tanto, fala muito, fala pouco. Diz. Olha para outra e também se pergunta:
O que será que aconteceu com ela?
Ela olha pro teto. Ela olha pro chão. Quase não fala, abre a boca ameaçando falar, fala duas ou três palavras, não completa frases, ri muito, escuta e balança a cabeça. Não paga condução, paga contas de luz, dorme muito, vadia demais. Vadia tanto! Ainda é tão insegura, sonha desejos ambiciosos, pouco acredita que é capaz de realizá-los. Nunca se apaixonara desde então. Tão bonita! Tão bonita! Tá com uma cara de mulher! Ela ainda pensa demais. Como pensa!

G

- Me conte desde o começo
- deveria então começar dizendo que toda a história começa na sexta série, mas são tantas vírgulas no meio do caminho, ninguém encontrou ainda o seu ponto final 
- é amiga! ainda somos nós, as mesmas! 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Vida


1

Chegou, eram seis da tarde. As grandes árvores eram apenas árvores, crianças brincavam na praça, pensou: nunca mais brincaria como as crianças com a inocência de quem se esquece de esperar a morte. Um senhor jeitoso sentou-se ao seu lado, usava um chapéu branco, era gordo e velho. Ela nem virou o rosto, sentiu apenas a presença.
Os meninos jogavam bola. A bola escapou do poder dos meninos, caindo perto dos pés da moça de cabelos ruivos. (A moça de cabelos ruivos é jovem, ela que olha as árvores, as crianças e pressente que o mundo é estranho. Essa moça deve ter vinte, vinte um ou vinte quatro. Por aí).
-  ei! – uma criança olhou pra cima, puxou as saias da moça e com autoridade disse: - ei! Moça, devolve a bola pra gente!
A moça de cabelos ruivos olhando pra baixo, não retrucou. Devolveu a bola. Sentou no banco. Não passava nada em sua cabeça. De longe, ouvia-se uma música, um homem tocava flauta. Ela ouviu a música.

2

Trocaram olhares. O senhor jeitoso olhou para mocinha de cabelos ruivos, sentiu uma espécie de alegria, desejou intensamente ser jovem de novo. A moça de cabelos ruivos sorriu, estava vulnerável, toda a seriedade que imprimia por causa dos seus olhos, quase que desapareceu completamente. O sorriso que transmitia era sério, como uma alegria séria.
De repente, ela sentiu que alguma coisa de importante iria acontecer. Sentiu que o mundo acariciava os seus pés, achava que as pessoas podiam ser bonitas. Ela se sentiu tão bonita.
- você, mocinha, entende que as crianças não são boazinhas?
- entendo
- qual é a tua cor favorita?
- eu gostava de azul
- não gosta mais
- não sei mais
- a juventude é uma coisa tão bonita, pena que é tão desperdiçada pelos jovens. Aproveite menina, aproveite o seu corpo como ninguém, aproveite cada minuto dos seus olhos, aproveite a sua boca, a sua voz e os seus desejos. Lute por cada pedacinho de tempo que lhe sobrar com pessoas especiais, não se esqueça que um dia as coisas acabam. Aproveite, menina. Tente não engravidar cedo, é muita vida dentro de você, talvez não esteja preparada, os homens nem sempre entendem isso. Aproveite, menina. Aproveite. O tempo é selvagem, devora cada minutinho da sua vida, é um monstro invisível, ele ataca você e nem percebe. Ele leva embora os seus amigos, os seus filhos e seus amores; mas aproveite. Porque, selvagem ele é, mas também é, por incrível que pareça, um bom amigo às vezes! Deixa a vida te surpreender, não espera por notícias boas e nem ruins. Só vale a pena quando a vida te dá de graça o que você nem pediu.
- isso é um conselho?
- isso é um desabafo
- então, vem cá, você é feliz?

3
O velhinho sorriu. Sorriso inefável. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Velhinho da Vitrine



Sobrancelhas atentas. Pensamentos voam. Os traços graves sinalizam um ar de seriedade, não é exatamente tristeza (também não é alegria). Os olhos quase fechados enxergam o horizonte, está desconfiado. Ele escuta passos.
Uma moça espia o velhinho pela vitrine. O velhinho do quadro olha para a moça da vitrine ou só espera que ela o compre? A moça olha-o embasbacada, pensa, nossa que velhinho bonitinho, acho que ele sonha um sonho triste... O velhinho está desconfiado com a moça, percebe: ela não tem dinheiro para comprá-lo.  A tristeza vira realidade, a moça bonita da vitrine vai desaparecendo de sua visão, a alegria vai sumindo, o velhinho se sente sozinho e sem amigos. Até hoje, ele espera que a moça da vitrine retorne, só para olhar um sorriso bonito. 
As orelhas atentas, os olhos ainda mais desconfiados, desejam a todo momento que aquela moça ressurge no meio de tantos os outros. A multidão esconde os rostos, vez ou outra, uma velhinha grã-fina enxerga o velhinho da vitrine. Mas e a moça? Cadê ela? O velhinho queria tanto ser amigo dela, não cobraria nenhum juro para isso.
O velhinho enturva, os traços entortam. Ele é torto, tão grave. A vitrine o impede de enxergar o mundo, por isso ele enxerga o mundo tão grave. Até hoje, ele procura a moça. 

O Pedido de Namoro


Namore comigo, prometo te amar até quando o meu amor acabar por ti. Quantas vezes quer fazer amor comigo? 500 ou 1001? Eu faço amor com você até quando um dos dois enjoar! Juro! Fala que sim vai, se falar não, eu vou ter que aprender de novo a viver sozinha. Se ficar comigo, te faço a pessoa mais separada e sozinha do mundo! Se ficar comigo, prometo que te darei uma desilusão amorosa inesquecível e ainda deixo um filho pra criar.
A gente vai trepar muito no começo. Mas, depois, você vai dormir ao lado esquerdo da cama e vai esquecer a cor dos meus olhos. Namore comigo, vai, prometo que você vai ficar doente de tanto relembrar o sabor do meu beijo e das minhas mãos quando notar a minha ausência definitiva na sua vida. Por que agradecer? Você vai ficar mais sozinha comigo do que antes. Por que esse olhar de gratidão? Por que você abana o rabinho pedindo atenção? O que você quer de mim? Eu vou te dar o meu amor, muito, muito, em quantidades ainda maiores, em excesso e, depois, eu vou  esquecer de você tão rapidamente que é capaz de encontrar-lhe no supermercado e não recordar o seu nome. Ainda quer namorar comigo?
Namore comigo. Eu sou quem você procura, tenho os olhos e o corpo dos seus sonhos. Só esqueci de dizer que eu também cago e gosto de fazer algumas coisas bizarras no sexo. Eu não presto, estaria na fogueira da Inquisição hoje, se ainda existisse isso, talvez por atentado ao pudor ou mesmo por subversão dos bons valores e do comportamento cristão. Mas acho mesmo que a gente devia namorar, tentar morar juntos, dividir apartamento e dizer um pro outro o quanto a gente se ama. Eu poderia tentar agora mesmo, olhar nos seus olhos e dizer: eu te amo.  Correndo um risco, um tenebroso risco, de a qualquer momento, tudo isso ser desmascarado e nós dois descobrirmos que todo esse amor que um sentia pelo outro não era mais do que um grande engano. Ainda namora comigo.  

sábado, 12 de janeiro de 2013

O Espelho


No meu quarto desarrumado, vejo um espelho sombrio, meio azul, espiando o meu corpo. A reflexão desse espelho não é real, (não sei se é delírio ou ilusão?), o que eu vejo nesse espelho é só uma menina. Eu não gosto do que vejo. A tecnologia dos espelhos é muito franca, captura a alma dessa menina, tão repleta de monóxido de carbono, que cega os meus olhos e sufoca meus pulmões. Estou sem ar, é muito veneno. É um caos.
São ideias sujas que essa menina conserva na mente. Elas estão misturadas com as roupas do chão, espalhadas como sangue ao redor da cama. São sonhos maiores que o pobre corpo, é uma alma tão inculta, uma menina tão mentirosa vive enganando ela mesma, é a mais atingida pelo seu próprio veneno. Sinto toda a sua desorganização profunda atravessando suas veias, ela é um perigo para o mundo.
Não sei bem se a menina que eu vejo, sou eu. Não gosto dela. Mas e se for, menina? e se você, pequena, também ser eu? São vários eus nos seus e nos teus, é uma loucura-doida-neurótica, anormal e sem cura. Olhar-me bem fundo nos teus olhos, menina, é perceber um corpo que não é meu, um rosto incomum que não pode ser meu. Não vou me acostumar com tua companhia. Nem com tudo isso. Esse sangue que escorre em mim todos os meses. Esse corpo que estava acontecendo (sem eu perceber) e me assustava todo o dia.
Não poderia imaginar. O que estava sucedendo era algo pior do que se podia imaginar, a imagem que refletia no espelho era de uma mutante ambulante em transformação. Tudo que eu conhecia em mim ganhava volume como massa de bolo que coloca fermento e cresce. O sabor do bolo era amargo, a floresta negra que sondava o meu ventre, insurgia em mim sentimentos perigosos como o medo de ficar grávida, o desejo por todos os homens do mundo e o gosto do inferno. Estava em processo, me transformando pouco a pouco em uma criatura inventada, eu seria o que eles queriam uma mulher. 
O perigo estava ali em frente aos meus olhos. Confrontava com essa menina. Tinha nascido nessa condição social, meu sexo era feminino, eu era mulher inevitavelmente, será que eu já era assim e nunca tinha percebido? Não, tinha algo antes. Algo que não mencionei para essa menina. Mais que isso, eu não queria me perceber mulher, não tinha vocação para ser essa criatura tão louca. Seria muita responsabilidade, não estava preparada para isso.
Nasci mulher, mas não tenho a mínima ideia de como ser uma. O que seria uma mulher? O que é essa criatura estranha de rituais estranhos? Será que isso é uma das coisas que a gente tem que descobrir sozinha? Nenhum adulto me explicaria. Um belo dia, eu acordaria e não reconheceria mais você, menina, que está aí me espiando; não sei se esqueceria de você, pequena, ou não permitiria relembrar a menina que um dia eu fui. Sei apenas que um dia você seria o meu passado. Destruiria você para sempre, os adultos iriam me obrigar fazer isso com você, pequena. Eu te mataria, porque eu devo virar uma mulher. Será que destruir é oficialmente a minha primeira atitude feminina? Será que as mulheres que eu mais admiro já se destruíram um dia? O que vem depois da destruição?
Dentro de mim, eu sentia uma responsabilidade enorme. Tinha nascido depois de signos e mitos de mulheres libertárias, escritoras, atrizes e intelectuais feministas. Eu me sentia como um reflexo de todas elas. Ei menina que me olha assustada! Ser mulher implica numa grande responsabilidade social. Você não é mais menina, eu que sou uma mulher.
A menina fica brava, mas faz o juramento:
Pois se é assim. Eu aceito. Aceito ser essa criatura estranha com rituais estranhos. Eu juro por Deus menstruar todos os meses, aceito todas as consequências disso. Juro ser complicada e misteriosa até para mim mesma. Juro! Até a morte me separar de mim, ser essa criatura neurótica que bagunçará a cabeça de todos os homens. Eu aceito. Passo o batom como um ritual de passagem, entro na seita e finjo que te entendo, mulher. Caso com você até a morte nos separar. 



Espelho II

Sobre o tempo e a memória 


Procures a palavra memória nos dicionários. Achaste algo? Nada, não é... Passando perfume, limpando a cara da sujeira e da poluição da cidade de São Paulo, ora eu me lembro do meu rosto antigo que muito se parece com este de agora. Ligo o rádio, fito-me demoradamente e percebo uma espécie de déjà vú, em algum outro momento, eu já fizera essas mesmas ações que agora estou repetindo. Estranho? Ainda não. São coisas cotidianas, feitas rapidamente sem reflexão, nem tudo da vida precisa realmente pensar, tem certas coisas que a gente só faz mesmo. Só por fazer.
Memória... Memória... Então, como essa palavra me persegue! O significado de dicionário é insuficiente para lidar com a sensação de um cheiro antigo de perfume, um odor amigo que me dava tanta alegria, como humor. Aí que saudades de Má! , uma amiga do Ensino Fundamental que, hoje, não deve nem lembrar que era a sua maior confidente das paixões secretas da meninice. Concluo: ela já deve ter casado.
Molho o rosto. Na minha adolescência, fiz um texto sobre os espelhos, hoje nem lembro e nem gostaria mais de relembrar as palavras que eu deixei nessa marca do passado. Fito-me outra vez. A minha pele branca se distrai quando é observada por mim, sou quase um Narciso. A memória não devia ser como um cofre, deixando as lembranças perdidas dentro de nós, cadeados traumatizam sonhos; de repente a gente perde o exato instante que deixamos de ser o que éramos; não tem volta, o tempo é um monstro selvagem, corre de assustado, come todos os seus filhos. Limpo-me com uma toalha, os meus olhos quase esquecem que estão olhando os mesmos olhos, sorrio para mim mesma, brinco de pentelhinha sorridente, as sobrancelhas levantam-se com espanto e encaram-me com tom de desafio, como se se perguntassem: tens coragem de ser o que quer ser, mocinha?
Procuro a palavra memória no dicionário? Não sei se preciso. Perco a ideia de tempo enquanto vivo a efemeridade do dia. A vida-a-vida é intragavelmente mais insuperável que a ideia de teorizá-la, (alguém importante deve ter falado isso). Não consigo explicar a realidade, tem coisas que gosto de lembrar, e outras que me deixo esquecer. Aí que saudades do tempo que eu jogava bola com os meninos, não tinha medo de ficar suja de lama e corria mais rápida que o vento. Isso é muita nostalgia ou será que já era uma afirmação da vida que eu vivo hoje? Alguém importante também dizia que toda criança anseia tornar-se adulto, todo adulto envelhece. 
Fito-me outra vez. Mudei algo nesse minuto? Como  será que eu era meio minuto atrás e como estou agora? O tempo foge das minhas mãos. Envelheci alguns séculos essa semana, mas esqueci de contar para os mais velhos. Apago a luz, fecho a porta do banheiro. O espelho nunca muda, permanece espelho. 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Coisas sobre estar sozinho

As perguntas que eu escuto


Deixa eu tentar um rascunho. Queria explicar pra você, como é gostoso acordar de bem com alma. Não sei se você iria entender, leitora. Aprendeu desde criança que era importante ter um homem ao seu lado, nunca enfrentou o veneno de sua companhia a sós, nunca enxergou o doce perigo do seu próprio silêncio.
Eu teria que explicar também outras coisas meio clichês. Coisas como a delícia de estar com alguém. Aí! (suspiro longo) Como seria bom acordar e ter um amorzinho do meu lado! Um namoradinho gostoso pra chamar de meu amor. Mas gosto tanto da minha solidão.
Nessas ocasiões de paqueras ou novas amizades. Sempre me perguntam: quem você é?
- eu respondo com raiva, quase sem vontade de responder. Me chamam de Pequena, quando criança eu era a garota que conversava com o vento. Só converso com o olhar, (e divido a vida através do silêncio), não com a boca. Quem é experto, percebe rápido a minha habilidade de debochar com a minha respiração.
Sempre me perguntam: qual é o seu estilo de música favorita?
- Eu dou uma gargalhada. As pessoas se assustam com a minha risada alta. Eu respondo: eu gosto do som do riso.
Sempre me explicam coisas sobre o ar, a terra e Deus. Sondam se eu tenho religião, digo: deixa o Deus em paz, a Terra é dos homens. 
Sempre me perguntam: você é uma garota tão bonita, por que não tem namorado?
- Sabe pra que que serve os meus olhos? Moço, os meus olhos são grandes, servem pra seduzir. Mas eu mato o primeiro que me olhar e roubar o meu coração. Não quero que ninguém rouba nada meu. Eu quero dar, sempre fui uma menina dada, acha que não daria o meu coração se não me pedissem? Aí que vontade de arranjar um amorzinho! Acho que vou arranjar um hoje pra não dormir sozinho. Pode ser você, pode ser qualquer um que quiser ficar comigo, qualquer um que me pedir.
Mas não quero que ninguém perturbe o meu silêncio. Não precisa adivinhar os meus pensamentos, não quero namoro por telepatia, gosto de carne e pele. Posso até dar o segredo do meu corpo, se você não quiser procurá-lo, afinal não tem nada de transcendental. É o corpo que eu tenho, eu luto com ele e enfrento o mundo com os meus dois braços. Tenho sonhos maiores que a minha estatura. Mas o meu corpo não é um sonho, tem dias que eu esqueço de passar fio dental na minha boca e outros que esqueço de depilar as minhas pernas.
Meu querido, olha pra minha boca, ela pode ser sua, mas não suga a minha alma inteira. Deixa ela comigo. Aprendi gostar das minhas loucuras, gosto de saber que dentro dessa confusão inteira tenho capacidade de odiar e amar ao mesmo tempo. Sinto muito prazer em ser humana. Não consigo controlar o meu ódio, mesmo tendo um amor enorme no meu sangue. Sou inteira animal, minhas palavras são aranhas e gozo. Não pense que existe santidade no meu rosto, engano muito bem, mesmo desenganando. Sou uma ótima mentirosa, por isso que as pessoas se apaixonam fácil por mim.
Agora, se, depois disso, você quiser ir embora. Não vou impedir. Guardarei a tua lembrança como um viajante. Talvez, eu guardarei a tua memória em retratos, mas não. Fotos estragam. As pessoas não vão entender, eu também vou ter preguiça pra explicar, mas guardarei a tua lembrança como um segredo. Minha pele sempre saberá o seu nome.
Me perguntam sobre muitas coisas ao meu respeito. Me esqueço de responder, outras eu deixo o silêncio responder por mim. Quando me perguntam coisas complicadas, eu respondo: eu não sei.