segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O reencontro

Há meses, eu não retornava para cidade de São Paulo. O sentimento de rotina me tomou o rosto, a partir do momento, que eu pus os pés nas calçadas brutas dessa cidade. As pessoas apressadas caminhando entediadas, expressando um rosto insosso, como se tivessem vivido tudo que há no mundo. Depois da morte de Mariana, não via mais sentido continuar morando perto de lembranças.
Estava separado da minha mulher, dois ou três meses que eu não visitava minhas duas filhas. Como o meu pai também, não tinha talento para paternidade, entrei no primeiro beco que encontrei, sentei numa escada e vi os rostos entediados de todos na rua. Lembrei-me imediatamente de Mariana, ela atentava-se demais para a expressão nula e branca que as pessoas faziam quando caminhavam. Ela sempre dizia: “se fosse para imitar os rostos das pessoas quando estão no metrô, eu não ia saber fazer. Eles não têm expressão, eles olham e não querem ser olhados”. Eu ri de repente; ela dizia que a melhor maneira de esconder dos olhos atentos das pessoas era olhando-as de volta. Era esse o paradoxo: “você olha e se exibi gratuitamente para não ser visto. Só tem uma maneira de enfrentar o medo, enfrentando”. 
Meus olhos atentavam-se. De repente, percebendo cada detalhe dos movimentos, cada expressão vazia no olhar, os vestígios de humanidade perdendo-se no espaço, os imprevistos fugindo do controle. Ao observar tudo isso, eu entendi a beleza que eu não via numa cidade. Senti que tudo era um exuberante quadro de arte, uma espécie de balé, um estupendo e belo mau gosto, organizado em caos. No fundo, uma música imprecisa tocava no ar, era um som expressivo e denso.
Segui a música. Quando eu me aproximei, percebi que era um homem da minha idade que tocava uma flauta. Fiquei em silêncio, ouvindo uma música incomum tocada por uma pessoa desconhecida. Ele parou subitamente e me disse:
- nos conhecemos de algum lugar?
- não, nunca te vi na minha vida – eu respondi
- como é seu nome?
- Daniel, como é o seu?
- Joaquim
 Nós permanecemos calados, eu sentei ao lado dele. Não fiz mais perguntas, ele também não me fez mais perguntas. Eu fiquei tocado por aquela música estranha, não pude esconder as minhas lágrimas.
- qual é o nome dessa música?
- se chama “cinza”
- essa música tem história?
- tem sim, por que?
- porque, uma vez, uma amiga disse pra mim que todas as coisas no mundo têm memórias. É tudo uma questão de saber perguntar, é tudo uma questão de saber ouvir
Joaquim riu e respondeu:
- eu andava no bosque, estava perdido. Eu era o menino mais perdido no mundo. De repente, eu ouvi uma música, uma linda música. Eu era músico quando criança, sempre me expressei por sons. Quando eu segui essa música, me deparei com três ruas; nessa encruzilhada, tinha um velho cabeludo, muito bêbado, ele me olhou e eu, curioso, sentei para ouvir a música dele. O velho cabeludo disse que tinha feito pacto com diabo pra ser violeiro, tocava muito bem, nunca tinha visto alguém tocar tão bem na minha vida, quando eu perguntei de quem era aquela música que ele tava tocando. Ele tinha me dito: “essa música é de ninguém e o nome dela é cinza”.
- você nunca mais viu o velho?
- nunca mais. Mas, desde então, eu resolvi imitar aqueles sons. Eu larguei o violão, porque entrei em crise e decidi criar composições que eu chamo de “sentinelas cinzas”.  Eu toco pro ar, minhas canções são anônimas.

Eu fiquei silencioso, senti uma cumplicidade com esse flautista, parecia que a gente era grandes amigos. Não sei se ele me contou uma história verdadeira, mas também não me interessa. Algumas mentiras valem mais que algumas verdades falsas, eu senti alegria e dormi com menos culpa. Reencontrei algum conforto no meio da cidade. Não acredito que vivi infeliz a vida inteira, não acredito que tenho direito a felicidade eterna. Mas, ontem, conversando com esse rapaz flautista, tive a certeza que não estava certo e pude dormi com muitos desconforto engolindo meu cobertor. Nunca mais tive bons sonhos, mas tive uma recompensa. Tive alegria. 

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