sábado, 22 de fevereiro de 2014

Tudo termina em Auschwitz

Eu acordei com a minha mente silenciada. Naturalmente, isso é muito incomum, sempre estive acompanhado com pensamentos esparsos, contraditórios e imprecisos, acomodando-se no mesmo lugar. Sou um biólogo, estudo genética, estava empenhado na construção de um novo DNA, que seria capaz de criar uma nova espécie de ser humano no planeta Terra. É uma maneira, completamente nova, de reconstruir a humanidade, tentando corrigir os erros já existentes da espécie humana. É algo que seria capaz de criar um novo mundo, fundamentado em saber, conhecimento, respeito, verdade e justiça. De algo modo ou de outro, seria uma nova esperança.
Caminhei, então, até a padaria da esquina. Encontrei dois amigos meus. João (estudante de pós-graduação de filosofia) e outro amigo chamado Diogo (funcionário público no setor administrativo da Escola Municipal Hélio Freitas), eles estavam fugindo de suas responsabilidades cotidianas. Eu também era um fugitivo. Com o mundo aos meus pés, eu estava cansado. Estava desacreditado na possibilidade de criar esse novo homem; houve vários fracassos com minha coleta de dados e também houve erros grotescos com minha aplicação de metodologia. As coisas não estavam boas... As coisas não estavam boas...
- Alexandre, ô grande! – (os braços de João estavam abertos, recebeu-me com alegria), - quanto tempo, meu grande amigo, como vai você? Tu lembra do Diogo?
- eu lembro sim – eu respondi – e aí, como vai os estudos com a música?
- eu abandonei a faculdade de música, - respondeu Diogo, - hoje, trabalho no setor administrativo na escola Hélio Freitas. Estudo música como hobby
- ainda toca bandolim? – eu perguntei
- abandonei o Bandolim. Estou tocando agora gaita e voltei pro violão – respondeu Diogo
- e você, meu querido Alexandre, - perguntou João, - ainda faz aquele trabalho com biologia, ainda tá pesquisando?
- ah, trabalhava na coleta de dados da descrição de um DNA de uma cabra. Agora, estou trabalhando num projeto meu – respondi.
- sério? Qual é a ideia?
- acho que é um sonho, meu amigo
- tem sonhos que vale a pena – disse Diogo
- nesse caso, é um fracasso de um desejo que eu tive quando era um jovem estudante, - (eu dei uma pausa. Encarei o Diogo), - ô Diogo, tu se lembra que você já sonhou com música?
- ah! Meu Deus, você ainda se lembra disso! Lembro sim.
- que música? – perguntou João
- eu tinha 14 anos. Eu sonhei com uma melodia de música. Menino, foi uma coisa sobrenatural, eu dormi e vi as notas musicais. No dia seguinte, eu criei aquela música minha que está no meu primeiro cd
- “nenhuma cor e todas as cores juntas”, é essa, Diogo? – perguntou João
- é essa mesma, eu pedi até pra sua namorada da época, a Aninha, lembra? Pedi pra ela criar uma letra pra canção
- lembro. Fez um puta sucesso a música
- hoje, eu sou um músico desconhecido. Fazer o quê, eu até que gosto um pouco, né! – disse Diogo – Nunca tive muito talento pra lidar com o público e com gravadoras. Estou protegido no silêncio dos anônimos
- então, - eu disse, - Diogo, eu tive um sonho parecido
- você sonhou com música? – disse João
- Não. Eu sonhei com uma rede de moléculas e células que criariam uma nova espécie humana. Acordei, de repente, com essa ideia. Passei o meu primeiro, segundo e terceiro anos de faculdade, pensando nas possibilidades de criar uma nova espécie humana.  E criando maneiras de resolver os erros existentes dela
- mas isso não é brincar de Deus? – perguntou João
- eu ia resolver os nossos problemas da arcada dentária, dos ossos, da possibilidade de guardar mais informações do cérebro, da intelectualização dos sentimentos e da imaginação religiosa. Eu ia criar um Hércules, um Cristo, um Superman. Um homem muito melhor que os mitos, um homem muito melhor que os homens
- mas isso é muito ambicioso – disse Diogo, - eu até que gosto das imperfeições dos homens
- eu adoraria ver as imperfeições dos homens serem corrigidas – disse João, - separar a imaginação criativa da ignorância das religiões. Aumentar a nossa força no mundo, não ter problemas de artrose, dentes mais fortes, respiração mais duradoura e uma racionalidade precisa e objetiva. Eu adoraria que a gente não tivesse doenças sexualmente transmissíveis e que a gente fosse, de fato, espécies inabaláveis e indestrutíveis
- João, a razão é uma rainha surda. A emoção é o excesso necessário. Já disse e repito, eu gosto das imperfeições da humanidade
- inclusive os genocídios, os femicídios e a escravidão?
- meu, tudo que é conversa termina do mesmo jeito
- que jeito?
- tudo termina em Auschwitz. Será que é impossível começar uma conversa ou diálogo banal sequer, sem colocar o Hitler no meio? – disse Diogo
- pera aí, gente – disse Diogo, - pera aí, gente, deixa eu terminar o meu raciocínio
- Hitler modificou a história do pensamento – disse João, - não é possível pensar o mundo hoje sem falar de Auschwitz
- não foi o Hitler
- claro que foi
- não foi o Hitler, mas a paixão em torno do Hitler
- gente, deixa eu terminar o meu raciocínio
Começaram as discussões calorosas em torno de Auschwitz. O funcionário público, meu amigo Diogo, tinha razão. Quando o assunto era Hitler, era pior que ver discussão de futebol no dia de libertadores. Era pior do que discussões entre são paulinos e corintianos.
- posso terminar o que tava falando? – eu disse
- pode sim – eles responderam
- eu tinha sonhado com uma nova espécie humana. Trabalhei cinco anos, tentei coletar dados, tentei criar metodologias. E, hoje, quando eu acordei e tomei ônibus. Eu fracassei novamente na coleta de dados. A metodologia não é boa. De novo, fracassei como cientista
- você não conseguiu? – os dois perguntaram
- Não consegui
- essa é a prova que a ciência é insuficiente depois de Auschwitz
- essa é a prova que só a arte é capaz de entender a falta de lógica do mundo
Eu respirei fundo e respondi antes que começassem as discussões calorosas.
- essa é a evidência de que o homem é ineficiente para criar um novo homem. O homem é o fracasso do próprio homem em todos os sentidos. Em todos os sentidos. Só nos resta tomar café, tomar cerveja, fumar cigarros e falar, falar, falar e falar sem parar a respeito do mundo, a respeito das coisas. Falar a respeito de nada. E, mesmo assim, fingir algum sucesso, porque eu vou ganhar dinheiro com meu fracasso, amanhã vou escrever um artigo e vou ganhar dinheiro pra isso
-isso é bom! – disse Diogo
- isso é bom? – disse João
- é a minha dignidade, meus caros, minha dignidade

Me despedi deles. Eu fui embora com a minha mente silenciada. 

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