quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Todas as tentativas de visitar você

- Foi no domingo. Tentei te ligar, você não estava em casa. Aí, você me mandou uma mensagem assim: “Joana, não dá pra você passar aqui em casa hoje, porque fiz uma cirurgia. Estou um pouco debilitada”. Tentei te ligar na quarta-feira, mandei outra mensagem, perguntando: “você está livre esse domingo?”. Você me respondeu: “não estou em São Paulo, Joana, essa semana estarei trabalhando em Santa Catarina”.
Depois de três anos, quando contemplei vinte e cinco anos, desisti de reencontrar você. Arranjei um namoradinho, não era aquela paixão avassaladora, era somente outra distração pra não cair no tédio e não pensar em suicídio. Estava com muitas leituras atrasadas na Universidade, mas tinha decidido que assumiria abertamente o meu diálogo com a Clarice. De alguma maneira, minha amiga, estava tomando as minhas decisões com a literatura. Não eram as certas, não eram as erradas. Eram as minhas, tinha a ver com a vida que tinha construído até agora. Eram aquelas escolhas que eu podia ter, né
- no domingo, você tentou me visitar de novo, não é?
- você não estava em casa. Aí, eu sonhei com você. Na verdade, eu sonhei com uma casa vazia, o espaço era branco. Eu estava muda. Lembrei dos versos de Ana C.: “tenho uma vida branca a minha espera:     ”.
- não entendi, Joana, como você sonhou comigo se você, na verdade, sonhou com um espaço vazio?
- é isso, S. L.. Eu sonhei com isso. Eu sonhei com o vazio. Não sei; eu posso falar uma loucura. Mas, eu tenho uma mística com o vazio e os desencontros.
- como é isso?
- o desencontro é um encontro que não ocorreu. É um limiar entre o possível e o imaginável. É como aquele corpo que antecede a entrega, suspira o ar do outro e o ato não acontece. É o passo que antecede o outro e volta pra trás. E te obriga, sabe, te obriga a fazer outro rumo, te coloca em outro lugar
- o que isso tem a ver com o vazio?
- a vida não tem forma, não é. Tenho a impressão que os encontros são muito raros, minha amiga, por isso, deixa marcas. Mas o que é persistente é isso, é um passo no abismo. É um passo no vácuo. O desencontro é isso, te obriga caminhar pelo vácuo, te obriga criar novas situações. Mas. Minha amiga, esse espaço vazio, esse limiar do que não é concreto até a sua materialização, isso tudo, minha amiga, eu tenho um medo.
- medo de quê?
- é o espaço do impossível. Onde a imaginação preenche todas as lacunas.

***
- e aí, o que aconteceu depois, Joana, conta tudo que aconteceu antes do nosso reencontro?
- não sei como te contar; lembra de uma história? Quando eu era criança e você me contava a história do bailarino feiticeiro?
- nossa! Você ainda se lembra dessa história. Lembro sim
- Tenho a impressão
(barulho incompreensível)
- Tenho a impre, (barulho incompreensível), tenho a impre (barulho). O que é isso, S. L..?
Alguma coisa mexeu debaixo das almofadas do sofá. Elas ficaram suspensas. Em um salto de tempo, um maravilhoso gato preto pulou em cima da mesa. O animal cheirou os cabelos negros de Joana, como se a cumprimentasse com votos de boas vindas.
- Joana, esse é o Prometeu, ele é bem barulhento e gosta de chamar atenção
- Deve ser um gato leonino!
As duas riram. O gato preto fechou os olhos rapidamente, deu um salto como um fugitivo. Pulou em cima do pé direito de Joana, ela percebeu o movimento do animal e empurrou as pernas na direção contrária para fugir do ataque repentino de um felino. O vento assoprou as vestes de Joana, ela escondeu os pés. O gato foi embora, caminhando elegantemente até o seu pote d’água.
- então, continue a história, Joana
- então, tenho a impressão de ter conhecido esse bailarino feiticeiro que você falou pra mim
S. L. mudou a expressão do rosto, fez uma expressão pálida, parecia assustada.
- isso não é possível, Joana! Isso é fábula! É fantasia!
- então, deixa eu contar. Estava assistindo uma peça de teatro com Marcelo, aquele namoradinho que te falei. De repente, vi uma figura branca subindo as escadas. Falei pro Marcelo: “esse é o bailarino”. Ele me perguntou: “que bailarino?”. Eu respondi: “não sei o nome dele, não conheço ele pessoalmente, não somos amigos. Mas, eu sempre imaginei ele. Na verdade, eu conheço ele das histórias que eu ouvia dele. Não tinha certeza se ele existia, mas eu era tão íntima daquela figura da minha imaginação que ele acabou virando um dos meus melhores amigos”
- e aí?
- aí, eu fui atrás do bailarino. Aí que está. Fui atrás dele, mas não conseguia me aproximar dele. Começou com as escadas, elas eram imensas, nunca conseguia chegar no topo. A partir do momento que comecei a subir as escadas, o Marcelo ficava para trás. Aí, eu nem chegava perto do bailarino, mas também não voltava pro chão. Subia as escadas sem parar
- Meu Deus! E a peça?
- Não tinha relógios. Não conseguia voltar no tempo. Tinha que subir as escadas, não tinha escolha, entende. Vislumbrava o bailarino de longe e, a cada passo, eu me afastava de Marcelo. Fiquei apavorada, estava preocupada, já estava atrasada pra peça. Estava desesperada, porque as horas passavam e já estava ficando tarde pra pegar o metrô. Também, eu já estava sem fôlego de tanto correr.
- e o bailarino?
- você ainda consegue se lembrar da história do bailarino?
- algumas coisas
- era um bailarino muito bonito, tinha saído de sua cidade, porque queria acabar com a maldição que jogaram em cima dele. Quando ele crescesse e ficasse adulto, o bailarino mataria o pai e se deitaria com a mãe.
- Aaaah sim! Aí, ele foi buscar respostas, ninguém o ajudou. Ele foi parar em outra cidade que ele acabou ajudando
- isso! Ele conseguiu solucionar o enigma da esfinge e, com isso, as pestes da cidade foram embora. Mas o bailarino não queria ser rei, então, não casou com a mulher prometida dessa cidade
- e a cidade lhe pregou uma maldição. Uma maldição terrível!
- todos os cidadãos arrancaram os seus pés e despersonalizaram ele e foi assim que se transformou em um feiticeiro. Foi um presente para aguentar o castigo de viver sem os seus pés e sem a solidez do seu corpo. O bailarino caiu em profunda angústia. Passou a buscar os seus pés, andando em cidade a cidade, ficando cada dia mais triste e desesperançado. E desde então, todos os lugares que ele passa, o bailarino perde uma parte do seu corpo. Ele consegue curar a si próprio, por conta dos seus feitiços; mas, essa magia é falha, toda a vez que ele cura uma fragmentação do corpo, ele se deforma. Ele só resolveria a angústia dele, quando, um dia, ele encontrasse os seus pés. A busca dele é por esta parte do corpo que não encontra em lugar nenhum
- o que aconteceu, Joana, por que você ficou tão triste esses últimos dias que você não conseguiu me encontrar? Nada disso faz sentido.
- eu encontrei esse bailarino depois de tantos desencontros. S. F., eu não sei como falar isso pra você, talvez você ache que eu estou te sacaneando. Mas, eu quase chorei de emoção e acho que, de certa maneira, fiquei ainda mais assim
- assim como?
- menos satisfeita e plena com a minha condição. Vou terminar de contar a história.
- pode terminar!
- o bailarino olhou para mim, S. F.. Olhou pra mim com tanta tristeza e eu não pude recusar minha vida. Então, me dei pra ele. Eu dei de presente o meu pé direito, estava cansada, não conseguia alcançar o topo da escada. Olhei os olhos dele e arranquei minha perna direita. Fiquei desequilibrada e cai diretamente no chão. A minha visão ficou embaçada; mas eu pude ver, minha amiga, pude ver; o bailarino abriu um sorriso. Desde então, tenho a impressão que eu fiquei manca por dentro. Por isso, eu queria te visitar, só que nenhuma tentativa deu certo.

S.L.F. enxergou os pés de Joana, faltava o pé direito. Elas trocaram olhares. 

Um comentário:

  1. Gostei muito do conto Bruna! E a parabenizo com gratidão!
    Fiz sua leitura como que dá a mão a um estranho, e se deixa levar, tão assim, sem luta e sem segurança... por não saber, possivelmente, aonde pode chegar!

    Parabéns moça!

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