segunda-feira, 28 de outubro de 2013

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À Nathália Ferraz

“O anjo da morte, que em certas lendas se chama Samael e do qual se conta que o próprio Moisés teve de o afrontar, é a linguagem. O anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa faz a linguagem? - , mas é precisamente esse anúncio que torna a morte tão difícil para nós. Desde tempos imemoriais, desde que tem história, a humanidade luta com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele se limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris apenas se pode arrancar aquele anúncio que, de resto, ele nos viera fazer. O anjo não tem culpa disso, e só quem compreende a inocência da linguagem entende o verdadeiro sentido desse anúncio e pode, eventualmente, aprender a morrer.”
(Agamben. Ideia da morte)

Foi na segunda-feira. As duas jovens escritoras sentaram e conversaram sobre os casos de amor. Era quase meia-noite, elas estavam sobre a grama e enxergaram a lua, nenhuma das duas sabiam sobre os segredos da existência, mas elas não eram proibidas de pensar e realizar conversas banais sobre esse assunto.
- não acredito nisso, ná – disse Lóri
- não acredita em grandes destinos e em grandes amores. Não acredita? Não acredita que uma pessoa pode reverberar a sua vida de cabeça pra baixo e fazer do seu coração, um grande trapezista
- eu até acredito! Só não acredito que uma pessoa só muda a minha vida. Eu acredito que muitas pessoas mudam minha vida. Sei lá. Bom, e também, Ná, você acredita nisso?
- acredito em amor, Lóri, - disse Ná – acredito demais. Acredito em coisas bonitas; sabe, quero uma pessoa. Não é uma loucura?
- querer uma pessoa?
- pois é. Não se bastar sozinha
- sei lá. Sei lá. Algumas ausências são mais presentes. Algumas presenças são miúdas; quase não é percebida. Mas, você devia ter se acostumado com a solidão, porque, você escreve tão bem
- se a escrita tivesse junto anticorpos pra saudades (rindo). Mas você disse bem. Como será possível?
- o quê?
- algumas pessoas nos afetam mais que outras
- sei lá. Deve ser a força de alguns encontros
As duas riram.
- Lóri, eu namorei um rapaz que só falava mentiras. O cara já tinha feito de tudo, mas era lorota, sabe, segundo ele, até puto ele já foi. É por isso que eu reconheço mentira de longe, gente que não escuta você, joga experiência na sua cara, não deixa você terminar a frase, sabe?
- sei! Desconsidera a experiência do outro
- isso!Isso! Bom, mas ele foi o primeiro cara que eu transei. E foi até bom, mas ele era um idiota
- (risos)
- você ri. Ele chegava pra mim, sem fôlego, parece que tinha corrido umas trezentas maratonas. Na frente da igreja, me beijava e me dizia: essas velha que não paga serviço. Eu ficava com aquela cara de interrogação. Ele falava: eu sou garoto de programa, acabei de chupar uma velha e ela não me pagou o serviço
- Nossa! Mas era tudo lorota?
- Tudo, Lóri, mas aprendi a diferençar, né, o que é mentira do que é verdade. Aqui na faculdade tem muitas pessoas assim
- (risos)
- e foi com ele que aprendi tudo sobre sexo
- Eu tenho uma amiga que fala que a minha vida amorosa é muito badalada. E tenho outro amigo que diz o contrário. Ele fala pra mim assim: “a sua vida sexual é muito badalada, a sua vida amorosa anda bem abatida”.  Não sirvo pra namoros não
- ah tadinha! Vou colocar você no colo (risos)
- mas, sobre sexo, eu aprendi tudo com um professor meu. Ele foi o meu professor de violão, acabei toda encantadinha, tinha dezessete anos e ele me pegou pela mão
- que que aconteceu?
-o de sempre. Devios, curvas e outros amores. Ele casou, a gente ainda se encontrava e era maravilhoso. Claro que era! O que é proibido sempre aumenta o fogo
- tipo assim, Tristão e Isolda
- tipo isso, quando eram dois adúlteros. Amor gostoso só funciona na bagunça; ele é meio pervertido e caga regras. Esse foi o problema, cagou regras demais, bagunçou a minha vida
-(risos) quantas posições estranhas do Kama Sutra emocional você fez, Lóri?
-Só não acho que foi todas, porque, você sabe, você sabe. Eu interrompi o amor e, às vezes, dói
- Amor interrompido é mania de escritor. A gente se acostuma com a tempestade, Lóri
- acho que é pra tirar o tédio, a gente inventa aventuras
- mas a gente podia fazer diferente hoje, falar de um assunto mais leve, sabe
- como assim?
- a gente podia fugir das etiquetas amorosas. E sair do lugar comum dos escritores jovens que fazem grandes e longos devaneios sobre fossas e pessoas que saíram pela porta dos fundos e deixou a gente aqui pra contar as histórias
- o que a gente podia conversar?
- Não sei, fala de você, Lóri, fala sobre os seus escritos, fala de alguma coisa boa, tava gostando de você falando. Eu falo demais
-ah! Sei lá
- você está bem?
- estou sim, hoje sim. Você tá bem?
- não sei, eu descobri um negócio. Menina, eu tava lá conversando com uma menina e descobri, Lóri, eu descobri que eu não posso, sabe, não tenho vida pra queimar
- como assim?
- eu descobri que eu vou morrer
- (risos)
- é sério! Morreu o meu avô e a moça que me viu crescer que morava na frente da minha casa. Fiquei apavorada, não conseguia dormir. Menina, eu colocava a mão no peito pra sentir se o meu coração batia. Falei pra minha mãe, ela fez essa mesma reação
- (risos) você quer que eu conte uma coisa que eu me envergonho também?
- por favor!
- eu quando achei que estava grávida, porque transei sem camisinha, fiz o meu primeiro teste de gravidez errado. Sabe o que eu fiz pra abortar o bebê. Eu plantava bananeira no meu quarto pro sangue subir na minha cabeça
- (risos) você não sentiu  remorso não? Eu dei soquinhos na minha barriga pro bebê sair, socava e não tinha nada lá dentro
- menina, fiz isso também, plantava bananeira, dava soquinhos na barriga e, depois, chorava e chorava
As duas riram.
- eu descobri que eu vou morrer, Lóri, eu preciso fazer alguma coisa na minha vida
- tá em conflito né. Eu sei lá, tenho vontade de morrer jovem, às vezes, tenho preguiça de viver. Eu acordo, tomo café da manhã, escovo dentes, é muito raro, sabe. É muito raro acontecer um encontro
- sei lá, eu prefiro ficar cansada de viver do que morrer. Lóri, o meu Deus é de amor, não faz sentido, entendeu. Nada faz sentido, a experiência que eu tive com ele foi só de amor, a morte pra mim é um anúncio esquisito. Ela não faz sentido, entende, nada faz sentido sabe
- deixa eu ver (coloca a mão no peito). Seu coração ainda está batendo, agora, nesse momento, você está viva
As duas riram.
- (Ná joga o cigarro longe) O que eu faço?
- eu não sei. Eu não tenho medo da minha morte, às vezes, eu desejo ela. Tenho mais medo da morte que toca as pessoas que eu amo. Isso, eu morro de medo. É igual aquele caso, sabe, do nosso amigo que se matou com vinte anos. Menina, aquilo me machucou fundo. O menino tinha a minha idade
- é sim. Não posso ficar falando essas coisas pra todo mundo. Posso falar isso pra você, porque você tem uns parafusos a menos
- (risos)
- você tem, né, Lóri – Ná riu – eu também tenho, tenho uns cinco parafusos a menos
 Continuaram com olhos na lua, não encontraram respostas. Ná respirou fundo, não entendendo nada. Lóri coçou a cabeça, não entendendo nada. As duas riram. O riso, nesse momento, era a única maneira que as duas tinham de fugir das etiquetas existenciais, ambas não entendiam o que falavam, por isso, se comunicavam assim. Essa experiência ultrapassava qualquer modo de entendimento e, nesse momento, a falta de compreensão do mundo formava um acontecimento que só traduzia na sensação de vazio. Elas estavam alegres, porque não entendiam.


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