No mundo, o dedo aponta
um caminho. Ele, um velhinho sem dente, enxerga uma garotinha bem bonita, com
um pequeno nascimento de seios amostra e usando vestido, vindo em sua direção.
Essa menina fica calada por meia hora. Ambos suspendem o tempo, ninguém comenta
de onde vêm e para aonde vão.
- você é filha do seu
João?
- não senhor, sou filha
dele não
- você é filha do seu
Francisco?
- não senhor, não conheço
ele não
O velho chamado Chiquibim
ainda tenta descobrir se a mocinha sem nome e título é filha de alguém da
vizinhança. Essa moça aponta o dedo e mostra um caminho.
- eu vim dali
Chiquibim direciona o olhar
para o caminho que o dedo anular da menina apontou. Ele enxerga duas árvores,
três pedras sobre o chão e um caminho vazio por onde nunca caminhou. Era um
espaço que nunca tropeçou, nunca teve curiosidade para conhecer. O velhinho
sentiu a ignorância abater o seu queixo, o vento assobiou seus ouvidos,
voltou-se à mocinha misteriosa. Ela não estava mais lá, tinha desaparecido. Chiquibim
ficou imóvel, olhando o espaço vazio do banco que essa menina estava sentada.
Ficou suspenso no ar, quase perdeu o fôlego de susto.
Dois dias depois, a neta
de Chiquibim chamada Nila foi visitá-lo. Nila era uma menina com muita
vitalidade e energia, uma garotinha bagunceira e desengonçada, por conta da
alta estatura, como dizia a vizinhança. Ela era filha da caçula da família que
morreu no parto, Nila era filha da filha mais nova e mais rebelde. Os
fofoqueiros da vizinhança sempre diziam: “pois é, seu Chiquibim, filha de peixe
peixinho é, essa daí quando crescer também vai te dá um trabalho”.
- vô!Vô! – beijando o
rosto do Chiquibim, quase não deixava o velho falar – Tenho uma história pra
contar, Vó, tu deixa que eu conte.
- é uma história da
escola
- não, Vô
- aconteceu alguma coisa
com seu pai?
- não
- então, é história de
quê?
- é uma história de
bruxa. Vô, eu conheci uma menina que é filha de bruxas, ela estuda comigo na
escola e a mãe dela sempre vive viajando no tempo pra tentar mudar as coisas no
futuro próximo. Essa menina também gosta de apontar caminho que os outros não
conhecem, ela mistura as coisas. Quando ela aparece, a gente fica confuso e
imóvel, não sabe se é sonho ou se é realidade.
Chiquibim ficou com os
olhos aguados e esguios, respirava anseio.
- essa menina é sua
amiga, Nila?
- minha melhor amiga, Vô,
um dia eu posso trazer ela pra você conhecer?
- Claro, claro, claro –
ele disse com pressa e fugiu para cozinha. Por longas horas, olhou o caminho
que essa menina apontou. Ficou imóvel e fixo no ar.
- você está confuso –
disse a bruxinha com doçura
- como você apareceu?
- xiu! – calou a boca do
velho com o dedo anular – não importa. Vim para te contar uma história.
- a minha neta!
- não está aqui, quero
dizer, não está no tempo da gente. Ela está no outro tempo. Preciso te contar
uma história, você está disposto ouvir?
Chiquibim concordou com a
cabeça.
- minha mãe morreu no
século XIV, não foi de peste de negra. Foi por causa da inquisição. Ela era uma
mulher muito bonita, ensinava as moças mais pobres as artes de cuidar do seu
próprio corpo e a mim deixou o seu livro de receitas das mulheres da família
- não entendo o que isso
tem a ver comigo
- se deixar que eu
termine a história, vai entender
- é claro, os médicos, os
padres e os homens não gostaram muito da ideia de mulher do povo ensinando
outras mulheres do povo. Dizia que isso era feitiço. A inquisição queimou a
minha mãe na fogueira.
A menina apontou o
caminho.
- foi ali! Vê? Nessa
árvore, minha mãe me contou um segredo. Antes de ter me dado, um livro de
receitas da família.
- que segredo foi esse?
- o assassino da família
- você
A água quente que estava
no forno, caiu na mão direita de Chiquibim. Nila entrou assustada e viu que a
sua amiguinha do colégio estava sentadinha no chão, olhando sem curiosidade
para o teto. Ela percebeu uma tensão no ar. A pequena bruxa disse:
- Nila, não fique assim
com essa cara de quiabo mal preparado, você percebeu que eu era uma garota
diferente das outras e você precisa aprender o que é morte
- por que eu preciso
aprender isso? – disse Nila com tom choroso
- porque vai ver o seu
vôzinho morrer
Foi devagar. A água
fervente deveria ter uma substância ácida. Chiquibim soltava um som de gemido,
as peles desgarravam-se, ficando em carne viva. Nila sentiu um odor
verborrágico, ficou imóvel, não podia agir. A bruxinha sorriu, esperando o
homem sumir de suas vistas.
- Nila, não peço perdão,
não sou menina, sou uma mulher – a pequena bruxa, de repente, se transformou em
uma mulher linda e sensual diante dos olhos de Nila. – você me olha assim,
desse jeito, não sabe que sente raiva, eu também me senti assim, vi minha mãe
morrer assim. Você tem todo direito de sentir raiva de novo, tem direito de
querer matar alguém. Eu também tenho direito de pedir perdão a você – um olhar
curto e meigo surgiu dos olhos da bruxa. Ela sumiu.
Nila ficou imóvel, os braços
apertavam os ombros. Não tinha consciência se era tristeza, não tinha
consciência se era ódio pelo estranho assassinato de Chiquibim. Ela se
encostava ao canto da cozinha e fechou os olhos de tanto chorar em cima dos
joelhos.
- filha! Filha! Filha!
- hã? – com lágrimas nos
olhos
- venha querida, estava
te procurando em todos os cantos da casa. Que que foi? Está triste?
- um pouco
- minha filha, venha cá –
por longos minutos, o pai abraçou a menina -, eu te entendo, mas a gente
precisa se despedir do vô Chiquibim
- ele morreu, papai?
- sim, minha querida,
morreu, ele já estava velhinho, morreu de uma doença que degenera aos
pouquinhos as lembranças das pessoas mais velhas. Lembra que eu falei pra você.
Ele foi aos pouquinhos esquecendo de todo mundo, de esquecer e de cansaço,
morreu.
Por longas horas, Nila
abraçou o pai.
- ele não morreu por
causa de nenhuma bruxa não?
- que isso, menina,
estava tendo esse mesmo pesadelo de novo?
- papai, sabe o que é
curioso? Eu tive muito medo disso, mas não tive medo da bruxa que levou o meu
pai, só não gostei de ver meu vô Chiquibim sumindo
- ora, você não teve medo
da bruxa? Por que? Não era uma bruxa má?
- era uma moça bonita,
papai, estava fazendo o que tinha prometido pra mãe dela. Ela falou pra mim que
eu podia me vingar dela quando eu ficar grande
O pai sorriu devagar,
abriu os dentes como se mascasse chicletes. Nila caminhou até o caixão do vô
Chiquibim. O vô usava o terno azul, estava muito bonito para um homem morto.
Ela, então, sentou no fundo, encolhidinha, viu de longe a pequena bruxa. Ambas
trocaram olhares, sorriram como se entendessem.
Nila viu uma formiga
caminhando com sua folhinha na cabeça. Ela, com um rosto sem expressão, pisou
na formiga, pegou a folhinha e assoprou ao vento. Sorriu maliciosamente. A
pequena bruxa sumiu, quando Nila olhou não estava mais lá. No velório do vô
Chiquibim, chovia uma chuvinha amarga, breve, os olhos piscavam com cada gota que
caía. Ela olhou a morte da formiga. Nila entendeu. Havia cometido o primeiro assassinato
banal, aquele era o misterioso momento que deixava de ser ignorante, suspirava
uma inocência cruel. Sorriu.
Ela e o pai voltaram para
casa. A rotina voltou pesadamente para vida dos dois. Nila sorriu.
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