segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A morte do vovô Chiquibim

No mundo, o dedo aponta um caminho. Ele, um velhinho sem dente, enxerga uma garotinha bem bonita, com um pequeno nascimento de seios amostra e usando vestido, vindo em sua direção. Essa menina fica calada por meia hora. Ambos suspendem o tempo, ninguém comenta de onde vêm e para aonde vão.
- você é filha do seu João?
- não senhor, sou filha dele não
- você é filha do seu Francisco?
- não senhor, não conheço ele não
O velho chamado Chiquibim ainda tenta descobrir se a mocinha sem nome e título é filha de alguém da vizinhança. Essa moça aponta o dedo e mostra um caminho.
- eu vim dali
Chiquibim direciona o olhar para o caminho que o dedo anular da menina apontou. Ele enxerga duas árvores, três pedras sobre o chão e um caminho vazio por onde nunca caminhou. Era um espaço que nunca tropeçou, nunca teve curiosidade para conhecer. O velhinho sentiu a ignorância abater o seu queixo, o vento assobiou seus ouvidos, voltou-se à mocinha misteriosa. Ela não estava mais lá, tinha desaparecido. Chiquibim ficou imóvel, olhando o espaço vazio do banco que essa menina estava sentada. Ficou suspenso no ar, quase perdeu o fôlego de susto.
Dois dias depois, a neta de Chiquibim chamada Nila foi visitá-lo. Nila era uma menina com muita vitalidade e energia, uma garotinha bagunceira e desengonçada, por conta da alta estatura, como dizia a vizinhança. Ela era filha da caçula da família que morreu no parto, Nila era filha da filha mais nova e mais rebelde. Os fofoqueiros da vizinhança sempre diziam: “pois é, seu Chiquibim, filha de peixe peixinho é, essa daí quando crescer também vai te dá um trabalho”.
- vô!Vô! – beijando o rosto do Chiquibim, quase não deixava o velho falar – Tenho uma história pra contar, Vó, tu deixa que eu conte.
- é uma história da escola
- não, Vô
- aconteceu alguma coisa com seu pai?
- não
- então, é história de quê?
- é uma história de bruxa. Vô, eu conheci uma menina que é filha de bruxas, ela estuda comigo na escola e a mãe dela sempre vive viajando no tempo pra tentar mudar as coisas no futuro próximo. Essa menina também gosta de apontar caminho que os outros não conhecem, ela mistura as coisas. Quando ela aparece, a gente fica confuso e imóvel, não sabe se é sonho ou se é realidade.
Chiquibim ficou com os olhos aguados e esguios, respirava anseio.
- essa menina é sua amiga, Nila?
- minha melhor amiga, Vô, um dia eu posso trazer ela pra você conhecer?
- Claro, claro, claro – ele disse com pressa e fugiu para cozinha. Por longas horas, olhou o caminho que essa menina apontou. Ficou imóvel e fixo no ar.

- você está confuso – disse a bruxinha com doçura
- como você apareceu?
- xiu! – calou a boca do velho com o dedo anular – não importa. Vim para te contar uma história.
- a minha neta!
- não está aqui, quero dizer, não está no tempo da gente. Ela está no outro tempo. Preciso te contar uma história, você está disposto ouvir?
Chiquibim concordou com a cabeça.
- minha mãe morreu no século XIV, não foi de peste de negra. Foi por causa da inquisição. Ela era uma mulher muito bonita, ensinava as moças mais pobres as artes de cuidar do seu próprio corpo e a mim deixou o seu livro de receitas das mulheres da família
- não entendo o que isso tem a ver comigo
- se deixar que eu termine a história, vai entender
- é claro, os médicos, os padres e os homens não gostaram muito da ideia de mulher do povo ensinando outras mulheres do povo. Dizia que isso era feitiço. A inquisição queimou a minha mãe na fogueira.
A menina apontou o caminho.
- foi ali! Vê? Nessa árvore, minha mãe me contou um segredo. Antes de ter me dado, um livro de receitas da família.
- que segredo foi esse?
- o assassino da família
- você
A água quente que estava no forno, caiu na mão direita de Chiquibim. Nila entrou assustada e viu que a sua amiguinha do colégio estava sentadinha no chão, olhando sem curiosidade para o teto. Ela percebeu uma tensão no ar. A pequena bruxa disse:
- Nila, não fique assim com essa cara de quiabo mal preparado, você percebeu que eu era uma garota diferente das outras e você precisa aprender o que é morte
- por que eu preciso aprender isso? – disse Nila com tom choroso
- porque vai ver o seu vôzinho morrer
Foi devagar. A água fervente deveria ter uma substância ácida. Chiquibim soltava um som de gemido, as peles desgarravam-se, ficando em carne viva. Nila sentiu um odor verborrágico, ficou imóvel, não podia agir. A bruxinha sorriu, esperando o homem sumir de suas vistas.
- Nila, não peço perdão, não sou menina, sou uma mulher – a pequena bruxa, de repente, se transformou em uma mulher linda e sensual diante dos olhos de Nila. – você me olha assim, desse jeito, não sabe que sente raiva, eu também me senti assim, vi minha mãe morrer assim. Você tem todo direito de sentir raiva de novo, tem direito de querer matar alguém. Eu também tenho direito de pedir perdão a você – um olhar curto e meigo surgiu dos olhos da bruxa. Ela sumiu.
Nila ficou imóvel, os braços apertavam os ombros. Não tinha consciência se era tristeza, não tinha consciência se era ódio pelo estranho assassinato de Chiquibim. Ela se encostava ao canto da cozinha e fechou os olhos de tanto chorar em cima dos joelhos.
- filha! Filha! Filha!
- hã? – com lágrimas nos olhos
- venha querida, estava te procurando em todos os cantos da casa. Que que foi? Está triste?
- um pouco
- minha filha, venha cá – por longos minutos, o pai abraçou a menina -, eu te entendo, mas a gente precisa se despedir do vô Chiquibim
- ele morreu, papai?
- sim, minha querida, morreu, ele já estava velhinho, morreu de uma doença que degenera aos pouquinhos as lembranças das pessoas mais velhas. Lembra que eu falei pra você. Ele foi aos pouquinhos esquecendo de todo mundo, de esquecer e de cansaço, morreu.
Por longas horas, Nila abraçou o pai.
- ele não morreu por causa de nenhuma bruxa não?
- que isso, menina, estava tendo esse mesmo pesadelo de novo?
- papai, sabe o que é curioso? Eu tive muito medo disso, mas não tive medo da bruxa que levou o meu pai, só não gostei de ver meu vô Chiquibim sumindo
- ora, você não teve medo da bruxa? Por que? Não era uma bruxa má?
- era uma moça bonita, papai, estava fazendo o que tinha prometido pra mãe dela. Ela falou pra mim que eu podia me vingar dela quando eu ficar grande
O pai sorriu devagar, abriu os dentes como se mascasse chicletes. Nila caminhou até o caixão do vô Chiquibim. O vô usava o terno azul, estava muito bonito para um homem morto. Ela, então, sentou no fundo, encolhidinha, viu de longe a pequena bruxa. Ambas trocaram olhares, sorriram como se entendessem.
Nila viu uma formiga caminhando com sua folhinha na cabeça. Ela, com um rosto sem expressão, pisou na formiga, pegou a folhinha e assoprou ao vento. Sorriu maliciosamente. A pequena bruxa sumiu, quando Nila olhou não estava mais lá. No velório do vô Chiquibim, chovia uma chuvinha amarga, breve, os olhos piscavam com cada gota que caía. Ela olhou a morte da formiga. Nila entendeu. Havia cometido o primeiro assassinato banal, aquele era o misterioso momento que deixava de ser ignorante, suspirava uma inocência cruel. Sorriu.
Ela e o pai voltaram para casa. A rotina voltou pesadamente para vida dos dois. Nila sorriu.


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