Ele
era um jovem fotógrafo, trabalhava em festas de casamento para conseguir algum
dinheiro fora do orçamento normal. Marcos tinha apenas vinte e dois anos de
idade, quando conheceu aquela pessoa que mudaria a sua vida. Ela se chamava
Anita.
Marcos
fotografou o rosto dessa mulher no casamento. Anita era a noiva. Ele enquadrou
a figura comum do casal feliz e fez um retrato banal que representa uma
felicidade matrimonial. Entretanto, ele enxergou os olhos enturvados e finos de
Anita, sentiu, na superfície da pele, um leve tremor. Nenhuma fotografia que
ele produziu nesse casamento, traduziu essa sensação breve e encantadora que
Marcos sentiu no minuto que cruzou os seus olhos com os olhos da noiva. Ele
sentiu um tremor curto que agitou os pelos do braço.
Duas
semanas depois. Marcos terminou o álbum de fotografias, fez um telefonema e
informou à Anita que o trabalho já estava pronto. Anita, então, estava diante
da porta, esperando o chamado de Marcos. Alguns demorados três minutos que
pareceram séculos na cabeça de Anita, ela esperou e esperou até que,
finalmente, foi atendida pelo fotógrafo anônimo.
-
você me ligou, me disse que o álbum já estava pronto. Eu vim buscar – disse
Anita
-
Ele está – Marcos fez uma pausa longa. Anita sentiu um leve desconforto.
-
E, então, - disse Anita, - não vai buscar?
-
Aaah sim! Eu vou
Marcos
foi procurar o álbum. Anita ficou sozinha na sala. Enquanto ele procurava as
fotografias do casamento, Anita pensava: “eu podia ter namorado esse carinha
aí; bonitinho ele é”. Marcos também pensava: “que mulher linda! Que mulher
jeitosinha! Que gostosa! Que gostosa”.
-
está aqui! – disse Marcos
-
aah! Obrigada – disse Anita, esperou o turno do silêncio e reiterou para
diminuir o desconforto – você tirou fotos bonitas
-
é! É sim! É o meu trabalho!
Anita
foi embora rapidamente. Três dias seguintes, ela voltou e falou as mesmas
coisas. Os dois só discutiram banalidades, o clima ainda continuava tenso e
cheio de subentendidos.
-aah!
Você tirou fotos bonitas!
-
é o meu trabalho!
Anita
foi embora. Marcos ficou suspenso. A sala era bagunçada, tinha uma mesa no
canto esquerdo que estava preenchida com trabalhos antigos, fotos velhas e
papéis em branco. O tapete branco, que recebia os clientes, ficava entre a mesa
e uma planta falsa, era o único espaço vazio naquele ambiente. Marcos, às
vezes, dormia lá com suas fotografias favoritas. Dessa vez, ele foi embora e
foi dormir na sua casa.
Anita
demorou quatro anos para reencontrar Marcos. Ele olhava fotografias, estava obcecado
com as imagens de Anita que fotografou no casamento. Ela, em silêncio, estava
suspensa e imóvel diante da porta entreaberta. Marcos percebeu a presença
feminina, espionando seus gestos, enxergou-a e foi recebê-la.
Eles,
novamente, se repetiram. Conversaram banalidades:
-
aah! Você tirou fotos bonitas!
-
é o meu trabalho!
Anita
foi embora. Passaram dois anos. Marcos ficou ainda mais apaixonado pela imagem
da noiva de olhos pretos e criou um feitiço. Toda a vez que cantasse uma valsa,
a imagem de Anita lhe daria um beijo na boca. Assim, começou uma nova rotina.
Na
terça-feira, a valsa foi cantada.
-
eu te amo
-
eu te amo
Um
beijo longo. Na quarta-feira, a valsa foi cantada.
-
eu te amo
-
eu te amo
Um
beijo longo. Na sexta-feira, a valsa foi cantada.
-
eu te amo
-
eu te amo
No
sábado, no domingo, na quinta-feira, todos os dias da semana, essa cena se
repetia frequentemente. Marcos ficava mais apaixonado, encantado e alegre com
essa mulher. Quando trabalhava, não parecia mais o mesmo homem, o amor alegrava
a sua rotina. A imagem de Anita, toda à noite, saía do retrato e dava longos
beijos na boca, ele esquecia o mundo. Sempre adormecia. Na quarta-feira, ele
adormeceu sereno e relaxado em cima do retrato da bela noiva.
Anita
abandonou o seu primeiro marido, tinha viajado para Argentina, Espanha,
Paraguai e Califórnia, tinha encontrado outros amores, tinha perdido contato
com muitos amigos no Brasil, tinha se transformado em outra pessoa. No entanto,
ela não tinha se esquecido de Marcos. Ela foi procurar esse homem. Estava lá.
Anita estava concreta, outra vez, parada diante da porta vendo um homem
adormecido.
Ela
estava pronta, estava disposta para fazer a sua vida acontecer. Anita iria
revelar o seu divórcio com o primeiro marido, as suas mudanças internas e
externas e, finalmente, aquele amor calado que escondeu por muitos anos. Essa
mulher estava pronta para concretizar as palavras ensaiadas por anos, que foram
sufocadas nos últimos encontros com Marcos para não demonstrar nenhuma emoção
ou atração, afinal era uma mulher casada.
Ele
acordou, olhou a fotografia com doçura e, depois, viu o rosto concreto de
Anita. Mudou radicalmente a expressão do rosto. Marcos era um homem perplexo.
-
você?
-
oi – Anita disse – desculpa, eu te acordei?
-
É você mesmo. – (pausa) – Mas, você está com outro rosto
-
já passou um tempinho depois que eu me separei
-
quando você se separou?
-
um ano
-
faz um pouco mais de cinco anos que não nos vemos. Você cortou o cabelo? Está
com outros olhos
-
que olhos?
-
Não sei. Seus olhos estão mais atentos
-
e os seus, mais cansados
Ele
sorriu devagar.
-
acho que que é porque eu acordei agora - (uma fotografia estava grudada na
boca, ele se livrou dela e colocou sobre a mesa) – veja só! Dormi no trabalho
de novo
-
estava dormindo com minha foto?
Marcos
não disse nada. Anita pegou a fotografia. Ambos não sabiam o que fazer com os
olhos.
-
você sentiu minha falta?
-
De você? Não sei. Eu senti saudades dessa daqui
-
troca as noites que você anda passando com essas fotografias com uma noite
comigo, uma mulher de verdade?
Ele
não respondeu. As coisas reagiram sozinhas. Aconteceu um longo beijo. Ela
passou à noite com esse fotógrafo. Marcos viveu uma noite com essa mulher,
sentiu a concretude daquele corpo e, por um momento, questionou a realidade
daquela situação. O fotógrafo desejou a solidão, havia algo nos seus feitiços
que protegia contra esses sentimentos. Quando ele estava com a imagem da noiva,
não tinha medo de ficar sozinho, acostumara-se com a vida solitária e com o
beijo de uma mulher falsa. Estranhava o beijo de uma mulher verdadeira.
-
o que você sente?
-
eu? – disse Marcos – eu? Eeeu, eu, acho que, acho que é misturado
-
é coisa boa?
-
também é
-
é coisa ruim?
-
é sim. Eu sinto medo, meu amor, medo
O
casal ficou imóvel. Não continuaram com a conversa, fizeram amor de novo no
chão.
***
-
você imaginou?
-
não tinha passado na minha cabeça
-
eu preciso te dizer uma coisa. Eu me separei do meu marido, porque não suportei
viver uma relação mentirosa. Eu pensei várias vezes dizer que queria você, mas,
sei lá, tinha medo de ser rejeitada. Deixei várias vezes o momento passar,
então, pra te esquecer, eu viajei, conheci duas ou três pessoas diferentes
-
você teve outros namorados?
-
tive mais uns dois
-
hã! – ele engoliu seco – você gostou?
-
gostei – Anita fugiu dos olhares de Marcos -, mas não era isso. Eu queria estar
aqui. Agora, eu sei, vai parecer meio ridículo, eu queria estar aqui, queria
estar com você
Ele
ficou sem jeito com seus olhos.
-
eu não sei, -- ele respirou fundo --, também tive uma outra mulher na minha
vida
Ela
diminuiu o fôlego, fixou o olhar no rosto de Marcos.
-
ela também foi importante na minha vida quando você partiu. Foi uma mulher que
me fez ser uma pessoa diferente. Agora, eu não sei o que fazer
-
você vai deixar ela?
-
não sei
-
vai me deixar?
-
não sei
-
o que vai fazer?
-
Anita, eu me apaixonei por sua imagem no casamento. Fiquei obcecado por sua
espessura do rosto, por sua pele e por seus olhos. Você tinha olhos inocentes e
até toscos. Agora não! Você tem olhos atentos. Mas, eu me apaixonei por sua
imagem de noiva, eu fiquei encantado por ela, eu dormia com o seu retrato todos
os dias
Anita
engoliu o ar seco.
-
Anita, não sei se estou sendo claro, se você está me entendendo. Eu fiquei
muito apaixonado por você no seu casamento. O seu noivo não percebia a raridade
de figura que você era e que você não é mais
-
mas, eu não entendo. Marcos, as pessoas mudam, você também mudou. Não entendo
onde você quer chegar com isso?
-
eu fiz um feitiço. Quando você sumiu, eu fiz um feitiço pra te esquecer
-
que feitiço você fez?
Ele
mostrou a fotografia que dormia todo dia e cantou uma valsa. A imagem da noiva
apareceu e dançou a valsa. Anita observou aquela aparição, estava paralisada. A
ilusão da mulher parecia mais real que ela própria, uma mulher concreta,
presente e impregnada de tempo, memória e emoções. A noiva riu e disse:
-
eu te amo
Marcos
não respondeu. A noiva insistiu.
-
eu te amo
Anita
também disse um pouco apavorada, quase esbaforida e sem fôlego, sem certeza, se
era o momento certo para repetir aquelas palavras que aquela mulher falsa
repetira tão facilmente para Marcos:
-
eu te amo
Marcos
ficou em dúvida, sentiu vontade de beijar as duas mulheres, sentiu vontade de
retribuir o amor para as duas figuras, sentiu desejo por ambas. Ele não sabia
como reagir, não sabia o que fazer com o corpo. Anita reagiu:
-
você não vai falar nada
A
noiva repetiu:
-
eu te amo
Marcos
coçou a cabeça. Anita disse:
-
você vai ficar aí. Que realidade você quer?
A
noiva repetiu:
-
eu te amo
Marcos
disse:
-
eu quero as duas
Anita
ficou sem saber o que fazer com o corpo. Ela, sem pensar uma frase de efeito,
agiu no impulso, vestiu uma camisola, saiu pela rua na madrugada, caiu em duas
latas de lixo. Marcos ficou desolado, pensou em correr atrás dela, mas foi
impedido pelo beijo boca que recebeu da mulher falsa. Quando o fotógrafo desceu
as escadas, a chuva molhando as esquinas, ele viu um corpo estendido no chão,
era um corpo de mulher. Anita tinha sido atropelada.
No
dia seguinte, Marcos rasgou as fotografias do álbum de casamento de Anita.
Adormeceu. Quando ele acordou, estava diante da porta um casal do último
casamento que ele tinha trabalhado.
-
viemos buscar o álbum de fotografias. –
disse o marido, - Eu sou o Daniel, eu que falei com você pelo telefone
-
ah sim – respondeu Marcos, - mas você disse que ia trazer a sua esposa junto
-
ah claro! Ela está vindo – a esposa entra pela porta da frente. Ela estava
deslumbrante. Marcos sente um estremecimento nos braços. Daniel diz – olha lá!
Essa daqui é minha esposa. Esse é o fotógrafo, ele se chama Marcos, amor. Ela
se chama Anita
-
prazer! – disse Anita
-
prazer! - disse Marcos
-
as suas fotografias são bonitas
-
ah! Sim! Sim! É o meu trabalho
Conversaram
banalidades. O casal foi embora. Marcos ficou suspenso e solitário diante da
porta, enquanto tragava o seu último cigarro.
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