Há
algumas roupas nas cadeiras, restos de figurino dos outros espetáculos.
Marciana limpa a maquiagem. Ela usa um figurino pela metade, o lado esquerdo desvestido
do tronco mostra o seu sutiã preto. A atriz se veste para o retorno do
cotidiano comum de todos os mortais. Enquanto, Marciana se veste com adereços
da banal Marciana, ela conversa com Antônia sobre os próximos capítulos da
novela das nove “A Passageira”.
Thaís
abre a porta, fica intimidada com as duas mulheres adultas; por isso, ela fica
suspensa diante das duas. Marciana repara a sua distração, observa, através do
espelho, o reflexo da menina tímida que espera o momento certo para entrar.
-
Você não quer entrar, Thaís? – disse Marciana
A
menina, hesitante, entra no espaço, que repousa vestígios de figurinos e
adereços, sem querer, ela pisa em cima de uma luva vermelha. Thaís joga a luva
e cai no colo de Antônia que coloca o adereço na arara de roupas. A menina de
olhos pretos inquietantes senta no chão e observa o final da conversa das duas
mulheres adultas; ela, então, se inferioriza diante dos adultos. A voz quase
murcha e, por um momento, esquece o motivo de ter procurado a tia Marciana. As
duas mulheres adultas riem alto, Marciana sorri, fica suspensa diante do
espelho, o rosto dela já está quase limpo de maquiagem. Muda a expressão do
sorriso do rosto. E, finalmente, a atriz repara a mudez repentina de Thaís.
Os
dois olhinhos da menina correm fugitivos para direita e para esquerda. Thaís,
apesar da infância, não tinha olhar doce e inocente. A inquietação esbugalhava
a visão dessa menina. Marciana, com a sutileza maliciosa que aprendera com a
maturidade, permaneceu em silêncio, esperando o tempo da coragem de Thaís. A
menina, finalmente, tomou coragem e perguntou:
-
Tia Marciana, posso te fazer uma pergunta
-
parece que a pergunta é bem séria, não é mesmo?
-
é bem séria, Tia! – Thaís fez uma breve pausa – Tia, você me fez uma promessa,
lembra? Que nunca ia mentir pra mim e sempre ia me explicar as coisas direitinho
-Fiz
sim – Marciana revirou o corpo e olhava a figura inquietante de Thaís –
qualquer coisa que você pedir, eu vou falar uma verdade. É o trato!
-
sim – disse Thaís – É o trato!
-
que que foi, Tá?
Thaís
deu uma volta no espaço, fugindo dos olhares das duas adultas. Ela sentiu, ao
mesmo tempo, arrependimento e coragem.
Tia
– sem olhar para Tia Marciana -, Você já me explicou tanta coisa. Mas eu
preciso saber – Thaís ficou sem saber o que ela fazia com as suas mãos - ; eu
preciso saber. Tia, como é possível o encontro?
Antônia
não entendeu a pergunta. Thaís sentiu que essa mulher ia soltar uma risada. A
menina, então, sentiu vontade de xingá-la com todos os nomes feios do mundo,
porém, ela não tinha percebido que a expressão do rosto da tia Marciana havia
mudado. A atriz soltou um meio sorriso, as duas mãos repousaram suavemente
sobre os joelhos.
-
como é possível o encontro? – Marciana fez uma pausa. Ela entendeu que era uma
espécie de pergunta grandiosa, que guarda uma experiência, várias dúvidas e um
sentimento de solidão. Marciana entendeu que a menina tinha vivido alguma coisa
importante, entendeu a pergunta silenciosa. Como resposta, tia Marciana doou
parte da sua vida para a sobrinha que estava com a vida pela metade.
-
como é possível o encontro? Lembra que a gente conversou sobre brincadeiras e
sobre como é fundamental exercitar a imaginação
-
você falou que a imaginação é um músculo, que a gente vai fortalecendo com o
tempo
-
minha querida, não sei como responder essa pergunta
-
mas tia! Eu preciso que você me responda. Como é possível o encontro?
Antônia
ficou em silêncio, ela se transformava plateia, observava o acontecimento. Algo
que ela não entendia, que ultrapassava as suas experiências de mundo. Ela
entendeu que o silêncio era importante naquele acontecimento.
-
Não sei – disse Marciana – A gente passa pela vida, falamos português, andamos
na rua e, depois, o dia termina e dormimos. Entendeu? (pausa) Não entendeu,
né?! É assim, Tá, por causa de alguma coisa que eu não entendo. Eu tenho essa
voz, eu tenho esse corpo, eu moro em São Paulo. É assim, Tá, cada um tem a
história que tem
-
Tia, você já viveu o que estou passando?
-
Não! Eu vivi o que eu passei. Você, Tá, vive o que está passando, quando
acontecer alguma coisa. Sabe? Alguma coisa que vai fazer você seguir um caminho
diferente do meu. Você vai olhar a vida de um jeito diferente de mim
-
Então, Tia, você não pode ajudar? – pausa. A voz saiu quase tímida – o encontro
não é possível, Tia?
-
Não é impressionante! A gente mora em São Paulo. A gente se encontra com bilhões
de pessoas. Pensa, Tá, quantos milhares de amigos a gente pode fazer somente um
dia
-
mas a gente não faz, Tia
-
exatamente! Por que?
-
porque todos vão para outros caminhos. As pessoas seguem a vida que tem que
seguir. Mas, tia Marciana, você não entende? – Thaís quase chorava – Como a
gente encontra alguém? Como, de repente, em um dia qualquer, sem esperar, sem
contar as horas, a gente dá de cara com aquela pessoa que fez a gente sorrir de
graça. Ou o contrário. A gente dá de cara com aquela pessoa que fez a gente
chorar, porque ela foi uma idiota ou porque eu fui uma idiota, ou porque os
dois foram idiotas. Você entende, Tia? Tia, não sei como é possível, não sei
nem se estou me explicando direito. Ah! Lembra quando eu tinha sete anos e você
me explicou o significado da palavra integridade? Você não me explicou com o
dicionário. Você me disse que o Homem passa vida querendo ser íntegro. A gente,
tia, se divide demais, se perdemos demais, por isso, passamos a vida correndo
atrás dos nossos pedaços. A gente passa a vida correndo atrás dessa
experiência. Essa experiência que possibilita unir as nossas vidas, os nossos
pedaços. Não sei. Não sei. Tia Marciana, eu não estou me explicando direito. Hoje,
tia Marciana, quando acordei, entendi alguma coisa e tive coragem de fazer essa
pergunta pra você. Tia Marciana, é possível o encontro?
Marciana
riu devagar. Ela mudou a expressão do rosto, não sabia o que fazer com suas
mãos. Marciana ficou séria.
-
Acho engraçado a vida, Tá! Uma vez, quando eu estava muito perdida, me
apaixonei por um rapazinho. Vivemos um momento bem marcante, tivemos um
encontro. Toda a vez que sinto isso, algo parecido com a sensação de estar no
meio do palco, sabe, no palco no meio do espetáculo. No coração das coisas.
Algo parecido com a alegria de estar no meio do palco sem saber as horas e a
minha idade. Hoje, antes de você entrar, quando eu limpava a minha cara e me
despedia da bruxa do Macabeth. Me despedia de novo. Estava me fazendo essa
pergunta: e, agora, como vou voltar pro mundo? Como vou suportar viver o mundo
depois do encontro com essa bruxa na minha vida?
-
e o que você fez?
-
Não fiz nada. Não é engraçado! Eu moro em São Paulo, conheço milhares de
pessoas e, todo dia, conheço mais pessoas. Quando eu acordo, eu desejo um
encontro com aquele rapazinho, que também mora em São Paulo. Eu sei que ele
mora na Liberdade. Eu trabalho lá, ele mora lá e sabe o que acontece?
-
não, me conta
-
Nunca nos encontramos. É engraçado a gente passar a vida querendo vivenciar
alguns encontros. E, aí, a gente vivencia um desencontro. A gente vive milhares
de desencontros importantes aqui em São Paulo. Não é engraçado viver, Tá!
-
é meio triste, tia Marciana
-
triste? Viver não é triste. A vida é uma bola surrealista que a gente nunca vai
entender. Eu sei. Eu sei. Você tem dúvidas, minha pequena, mas é assim mesmo. É
assim mesmo. Não quero que você se torne um adulto conformado, quero que você
se inquiete ainda mais. Quero que você engorde a sua inquietação. E quero que
você aprenda a rir com os seus desencontros
-
por quê, Tia?
-
porque a gente vivencia mais eles. A gente tem que aprender, na marra mesmo, a
reconhecer os encontros. Você já consegue entender que um encontro pode mudar a
nossa vida de uma maneira muito poderosa. Por isso, a gente tem que aprender.
Mas, minha pequena, são os desencontros que dão corpo pras nossas vidas e faz a
gente ser um monte coisas ao mesmo tempo
Antônia
fez uma expressão do rosto diferente de todas as outras que ela fizera na vida.
Ela não falou nada, avisou somente que já estava tarde. Thaís beijou Marciana.
A atriz estava vestida para o mundo. A bruxa de Macabeth estava desmanchada
sobre as cadeiras ao lado de outros vestígios de espetáculos. Antônia apagou as
luzes. O espaço estava escuro com alguns restos dessa conversa que nunca mais
iria se repetir.
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