sábado, 6 de julho de 2013

Entre dois homens, o boteco e o café da manhã

- De tudo na vida, o que eu acredito que seja mais impressionante é a experiência. Você não acha impressionante ter a vida que você tem?
- ora, a vida que eu tenho é normal – (Márcio colocava açúcar no café, pegava as sobras com dedo anular).
- como você pode ter certeza? Eu acho impressionante, meu, nascer assim como eu sou, sendo que eu poderia ter nascido de outra maneira. Eu nasci brasileiro, tenho vinte e três anos, estudei em uma puta faculdade, sou formado em economia, nunca tive namoros longos; em compensação, tenho um monte de coisa que muita gente não tem; por exemplo, adoro alguns tipos de livros, gosto de beber segurando os copos com a mão esquerda e, de todos os homens do mundo, tenho uma rotina só minha que não é sua
- mas isso é normal, Victor
- não é, meu, por exemplo, você é você, você não é eu. Cê não consegue achar isso impressionante, muito louco! Você nasceu Márcio, a gente estudou juntos, a gente é amigo, temos um vínculo, você trabalha, você vai casar com a sua noiva, vai ter uma filha com vinte e cinco anos, vai morar em Santa Catarina. Eu não vou casar, vou fazer mestrado em filosofia e não vou ser pai tão cedo; às vezes, eu duvido muito se eu vou ser marido e terei uma namorada fixa. Você é você, Márcio, você não é eu. Você tem as experiências que não são minhas, são suas, essa é a sua vida
- bom, mas isso tem mais a ver com destino. Cada pessoa nasce para vivenciar uma vida, as pessoas escolhem, antes de reencarnar, e se destinam a fazer determinadas coisas e não outras
- tudo bem. Independente de uma explicação religiosa, Márcio, vamos esquecer por enquanto isso. Não é louco? De todas as possibilidades do mundo, eu nasci exatamente a pessoa que eu sou hoje, eu poderia ter sido travesti, gay, negro, judeu, argentino, chileno, ter sido órfão, cachorro ou barata. Mas não! Eu nasci brasileiro, classe média, branco e sou formado em economia, mesmo com todas as possibilidades do mundo, eu tenho essa vida e não outra
- mas, qual o problema com isso? Por acaso, você queria ter outra vida?
- poxa, eu queria ser pianista, já tive vontade de ser mulher, já sonhei ser pássaro. Uma vez, queria até ter nascido negro em uma periferia, sem mãe e pai, para ver que tipo de visão, eu teria. Poxa, não é estranho! Eu tenho uma visão de mundo, terrivelmente limitada, porque eu tenho as experiências que eu conheço, sendo que poderia muito bem ter tido outras

Nesse momento, passa duas mulheres, uma morena e outra ruiva. Uma usava um vestido verde e os cabelos soltos; a outra usava uma calça e camiseta, um batom vermelho forte, a roupa discretamente decotada. Elas, deslumbrantes, passam distraídas por eles, ambos percebem e olham descaradamente para o corpo delas. Márcio derruba sem querer um pouco de café na mesa e respinga na sua calça, Victor dá um pulo de alegria e continua sorrindo. As duas mulheres vão embora, eles permanecem onde estão.
- tá vendo
- como elas são gostosas!
- não! Nós! Por que nós olhamos?
- porque elas são lin-das
- Não, homem! Por que sentimos desejo por mulher?
- ora, isso é normal, anormal se fosse o contrário
- Márcio, mas e se a gente não olhasse, se a gente não sentisse desejo por essas mulheres; já pensou que eu e você poderíamos muito bem ter desejo um pelo outro e oprimir isso. Eu poderia tá louco de tesão por você, mas a gente será para sempre amigos
- você é louco! Eu gosto de mulher – Márcio dá um pulo de susto
- mas, poderia não gostar e gosta. Você não vê? Nós somos o que somos, não o que não somos. Diante de tantas possibilidades, só que temos os nossos desejos sexuais, os nossos medos, nossa língua, nossos gostos, nossa cultura, nossos amigos, nossa família; criaremos um futuro assim por conta de uma religião, por conta de um padrão de relação, por conta de tanta coisa. E se fosse o contrário? E se eu fosse uma mulher que nascesse lá no Irã? E se eu fosse índio, Márcio? Eu não seria eu, seria outro, acho até que teria raiva de mim, dessa pessoa que me visto, dessa pessoa que eu sou e me conheço
- Victor, você não tá meio pirado não! Que conversa é essa? Falou de gay, falou disso e daquilo? Tá insinuando o quê?

Passou um homem barbudo ao lado deles, sentava sozinho na mesa. Depois de dois minutos, aproximou dele um outro homem de cabelos loiros. Eles, dois homens bonitos, se beijaram demoradamente. Márcio fez uma cara de nojo e desprezo, Victor bebeu um gole de café, deu outro pulo de exaltação, bateu nas costas de seu amigo.
- Viu!
- o quê? Esses daí se beijando
-  exatamente! Por que, Márcio? Por que somos assim se a gente poderia ser outro?
- Victor, eram dois homens se beijando
- e daí! Podia muito bem ser a gente se beijando, se amando e se perdendo publicamente. A gente podia tá no lugar deles
- Victor, para com isso
- para por que? É verdade! Você sabe que é. Somos o que podemos ser. Márcio, eu podia dizer eu te amo, podia falar que eu tenho ciúmes de suas namoradas, também podia falar que, na verdade, eu sinto ciúmes de você, podia falar que amo a sua vida, que eu queria ser você. Do mesmo jeito, o contrário, você podia ser eu. Mas, por alguma razão, que me foge dos meus conhecimentos, porque a minha sabedoria também é limitada, eu não entendo, eu não entendo porque eu sou eu e você é você, por que aqueles dois gays são gays? Por que aquelas mulheres me afetam? Por que eu tenho esses sonhos e não outros? Você entende?
- Victor, o que eu entendo que já está na hora de trabalhar, vamos embora, vai pagar o seu café ou quer que eu pague?
- não, não se preocupe, eu pago meu café
Márcio, antes de ir embora, bate nas costas de seu amigo e fala:
- quero você para ser padrinho do meu casamento, você aceita?

Victor para subitamente com as mãos suspensas, sorri e aceita a proposta com um abraço. Márcio vai embora do boteco. O homem branco, perdido, com seus óculos de armação preta, terno e gravata, olha para o dono do boteco, paga dois reais e pensa: “eu podia estar casando com a mulher dele, mas ele vai casar no meu lugar; eu vou viver a vida que é minha, vida que ele não vai conhecer, porque ele tem outra”. Victor foi embora. 

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