I
Olhar de seriedade. Às cinco e meia
da tarde... Ele olha, ela não tem certeza. Eu como os restos de amendoim sobre
a mesa, nenhuma leitura me fez ter ideia correta de uma possível felicidade
nesse mundo (quem sabe ela existe em outros planetas?). Aí! – respiro fundo –
como seria bom ter um amozinho pra acordar. Cinco e trinta um. O sol perde a
cor; a sombra engrandece timidamente. O olhar de seriedade some, o casal na
minha frente se entrega ao um beijo profundo. Paro de observá-los.
Meu olhar de vazio enxerga pouco. A
fumaça do homem bigodudo inebria o ar, me recordo de uma definição de
felicidade em um conto que eu li. Certamente, era de um amigo carioca. Ao
fundo, uma música bem sugestiva: “rompi
tratados, traí os ritos/ quebrei a lança/ lancei no espaço/ um grito, um
desabafo” [Sangue Latino. Ney Matogrosso] . O meu vazio encontra um pouco de música para preencher, a vida
sem música não tem a menor graça. Pode faltar pintores, peças de teatro, livros
e poesias, mas a música! Não.
Um homem se aproxima, eu cumprimento.
Ele me pergunta se eu tenho fogo, acendo o cigarro dele com um isqueiro. Nós
começamos a papear, eu não falo muito, deixo que o homem sem sobrenome faça o
seu discurso. O homem é professor de
história, fala um pouco da época de 1964, outro pouco da traição de Lula, outro
pouco nas mortes que viu quando os tios, militantes do PT, morreram para
construir o partido que hoje está no poder. Um rapaz de dezoito anos se
aproxima e diz:
- “agora, com gente jovem no PT, as
coisas vão mudar. Eu vou ajudar a fazer um novo PT”.
-
“ Cala a boca! Lave essa boca pra falar no PT, você não sabe o que
significa o PT, você não sabe o que é ver um amigo seu levar um tiro por causa
desse maldito partido. Você não sabe nada”
- “ mas...”
- “ O PT me traiu, traiu os seus
mortos quando subiu ao poder. Você não sabe nada.”
- “ dá pra mudar...”
- “ Cala boca! Lave essa boca pra
falar desse partido, os nossos mortos estão sepultados pra história”
- “eu...”
-“ vai tomar no cú!, sai daqui!”
O rapaz saiu nervoso, batendo o pé
nas cadeiras da frente. O homem jogou um copo plástico perto da cabeça dele,
então o outro, também nervoso, reagiu: “seu velho... vá pra puta que pariu! ”.
O homem sem sobrenome olhou pra mim, algumas lágrimas adornavam os cílios e
perguntou:
- “ você tem mais fogo?”
- “tenho”
Acendi. Ele tragou e saiu cambaleando
até o banheiro. Eu não tinha o que falar; o que eu poderia falar? Fiquei
silenciosa. O meu silêncio é trevas escondidas que desconheço, não sei
exatamente o que pode resultar nesses demônios que não gostamos de cutucar,
acostumam-se no escuro e sonham com a claridade mais fresca, serão violentos
quando o sol iluminar os olhos acostumados com a sombra. O silêncio virou, a
pouquíssimos segundos atrás, o meu melhor amigo.
II
Depois, a noite ganhou corpo. As
pessoas que se acostumaram viver nela, foram encontrando as posições nesse
espaço, estavam preparadas para o encontro. Eu, acostumada com o não, me
perguntei qual era a hora do sim? Uma moça sentou ao lado da minha mesa e
falou:
- “ você sempre vem aqui”
- “sempre”
-“ fica aí olhando, está esperando
alguém”
- “não, estou olhando o tempo”
-“ tá um calorzinho bom, né! Você não
é daqui né!”
- “ sou sim”
- “ mas e esse sutaque?”
-“ é inventado. Me conte, você está
com o seu namorado?”
- “ estou, ele tá no banheiro. Era um
rapaz que tava conversando com você, pediu fogo e tudo, sabe?”
- “ Ah sei!..”
O homem sem sobrenome voltou com
óculos escuros, começou a brigar com a moça. Ela pediu desculpas e também saiu
nervosa. Sete e vinte e cinco. E hoje, já vi duas brigas com esse mesmo homem.
Um olhar doce fita meus olhos, não respondo, ofereço outro cigarro.
- “acho que acabamos esse namoro,
menina fresca! Você é bem calada. É melhor, quem fala demais, acaba falando
besteira. Sabe como você consegue respeito, sabendo pouco e sendo burro.
Mediano o suficiente para não se destacar em público! Pessoas originais demais
é sempre um peso. Um peso pra sociedade. Um peso pros apáticos. Um peso pra ela
própria. Eu sei que sou um peso, minhas palavras são rancorosas. ‘Todo poema
tem os seus lobos’. Essa menina que eu tava comendo, não ia suportar ficar
comigo mais um dia, é até melhor pra ela. O sonho dela é ser digna. Ela ainda
não descobriu que a dignidade é a maior ilusão da sociedade, é um conto de
fantasia, o demônio sempre pega na nossa mão”
- “você tá precisando de alguma
coisa?” – eu fiz uma pergunta idiota, ele não estava precisando de nada. Era
alguém querendo falar.
- “ eu sou um merda, você é um merda
porque não fala o que sente e esses merdas controlam a nossa sociedade, porque
merdas como você não quer abrir a boca. Quer ficar aí, calado, respirando a
podridão dos outros”
Onze horas. Nós engolimos um pouco de
saliva, eu ia dormir culpada e perdida. Se não tivesse uma insônia e uma
vontade iminente indefinível que saia na garganta e dominava minhas pernas.
Pensei em matar, mas, em seguida, conclui que era uma atitude que jamais faria,
era covarde demais para tirar a minha vida, no entanto, covarde demais para
viver sem constrangimentos.
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