sábado, 29 de junho de 2013

Sobre todos os homens do mundo

A inspiração dos musos que não conheci  

Posso falar aqui para você que guardará segredos e não vai contar para ninguém. Já senti inveja dos namorados de minhas amigas e já desejei certos homens que jamais seriam meus. Sabe aquele rapaz que a gente olha de longe, imagina uma história inteira na cabeça, imagina coisas que não são possíveis, imagina todas as coisas e depois só fica mesmo na imaginação. Sempre tive uma intuição muito forte com isso, tem alguns homens que sinto que posso viver algo com eles e outros que só ficarão na minha imaginação.
Alguns homens conseguem ser tão sedutores que uma centelhinha de esperança permanece no corpo; quem sabe a imaginação não concretiza? Um convite para sair no sábado, talvez? Sempre fui muito tímida na frente dos moços que ganharam meu coração ou que ganharam outras coisas mais interessantes que o meu coração, afinal, com coração não é possível fazer muita coisa, não é mesmo? Coração não serve para muita coisa, fica dentro da gente e não tem porta de entrada. Só serve para cardiologistas. (O coração como símbolo de amor sempre me pareceu algo muito estranho, ele é um punho fechado, não se parece nada com uma coisa tão virtuosamente boa que os católicos significam como amor. Também, convenhamos a criação de símbolos de prazer e alegria, infelizmente, não são habilidades que as religiões possuem. Cultivamos um Cristo morto e torturado numa cruz, gostaria de ver Jesus Cristo fazendo sexo, ao menos, a vida faria mais sentido).
Estávamos falando sobre um segredo que eu tenho para contar para vocês, peço que vocês guardem com muito carinho. Não quero contar, porque vocês logo chegarão à conclusão que eu sou muito invejosa. Mas sabe que é? Existem alguns homens que a gente olha de longe, são tão lindos, acho que eles nem fazem tanta ideia de como chamam atenção. Certa vez, estava sentada no ônibus, escutando uma música, vi um rapaz lindo, barbudo, cabelos pretos, rosto redondo, mãos grandes e toscas. Ele sentou-se ao meu lado, imediatamente, imaginei tudo que poderia acontecer, fiquei olhando para janela, mas estava em outra dimensão. Não sabia nem o nome do rapaz, apenas observava calmamente o jeito como ele segurava a maçã.
Quando a gente desceu no ponto final, esse menino encontrou uma garota e deu-lhe um beijo na boca. Pensei coisas horríveis, mas deixei para lá, afinal, a sorte de amores que acontece na imaginação, é que conseguem ser mais efêmeros que sexo casual. Me irrito mesmo são com alguns amigos. Tenho alguns amigos que eles nem sabem que já tive desejo por eles, quando nos encontramos pela primeira vez. Acontece é que sou envergonhada demais para ter coragem de falar uma coisa dessas, no entanto, não custa recordar uma história.
Um menino que conheci no ônibus também, eu voltava para casa. Ele se apresentou como André e, imediatamente, eu fiquei encantada. O rapaz era de uma gentileza rara, fiquei fascinada com a voz dele e a sua estranha maneira de dizer “oi”, ele falava mexendo as duas mãos, parecia tão tímido quanto eu. Chegamos a ter um casinho, mas logo ele começou um namoro com uma amiga minha. É óbvio que cai de felicidades com namoro dos dois, até segurei um pouco de vela, mas não nego em dizer que quando estamos sozinhos e encostamos distraidamente as nossas mãos, não nego em afirmar que a imaginação perde um pouco o controle. Penso às vezes que poderia acusar os dois de traição, porque o mais gostoso de estar com alguém é a ideia de estar apaixonada, invejo a relação que ambos possuem e fico pensando, na minha cabeça, acho que eles estão vivendo uma coisa que deveria ser minha. Eu tenho ciúmes, então, de uma experiência que eu teria chance de vivenciar e não quis.
Penso isso com todos os casais que vejo na rua, bem resolvidos ou que transparecem isso. Ao menos, penso isso e me afundo em uma desconfiança. Não posso acreditar na perfeição, tudo que parece muito harmonioso, tenho dúvidas. Um ser humano que tem todos os seus sonhos realizados é tão tedioso, normalmente, não consigo conversar com pessoas assim. A ideia de perfeição é, para mim, uma ideia de morte. Jamais, conseguiria escrever de novo, não teria inquietudes no meio da madrugada, não sairia mais sozinha, não comeria pizza e coca-cola sozinha, não ia assistir filmes sozinha, não ia ouvir música sozinha, não ia fazer mais nada sozinha, porque eu teria alguém que roubaria minha energia ao meu lado e me daria uma ideia de vida perfeita. Eu seria uma chata.
Como os homens são bonitos! Às vezes, confesso, eu gosto mais de observar, gosto de reparar que eles não perceberam que estão sendo observados. Gosto de tomar um café e ver aquele rapaz passando no meio do meu caminho, caminhando longe e indo para onde precisar ir, sabendo que os nossos cotidianos são inconciliáveis. Gosto de ver o jeito de andar daquele moço, gosto de reparar o jeito que ele é tão distraído como eu, gosto de saber que a vergonha é um sentimento comum (e não é uma questão de gênero), gosto de ver a maneira como ele abre a boca, os cabelos mal penteados, a mão passando na barba e o cigarro no chão que ele acabou de pisar com pé esquerdo. Gosto de observar e imaginar o que não se pode imaginar, é outro modo de escapar das banalidades, é um outro modo que durante a rotina sem a embriaguez do álcool, eu consigo me dar um pouco mais de prazer. São musos, merecem um olhar de inspiração.

(a inspiração é tão fugaz). 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A Presença

Imagino como seria te amar
teria o gosto estranho das palavras
que brincamos
     e a seriedade de quando esquecemos
quais palavras
imagino como seria te amar:
desisto da ideia numa verbal volúpia
e recomeço a escrever
poemas
(Ana Cristina Cesar)


Para você que escrevo, meu amor, e não basta dizer que sinto sua falta.  Preciso dizer que todas as palavras possuem os seus limites. Te exijo. Quero você para mim, não quero o seu pensamento, quero suas mãos no meu corpo, quero você como uma canção de bolero que arranca a minha alma dessa vida. Para você que escrevo, meu amor, e não basta dizer que te amo e necessito de ti.
Te exijo, te quero concreto, quero sentir sua pele, quero ouvir o seu ar, quero gritar o seu nome no meio da rua, tirar minha roupa e gemer despudoradamente junto com você. Te quero presente, não quero ideias que surgem fragmentadas, não quero só a sensação que deixou entre minhas pernas, não quero só a sensação de um beijo que só foi despedida. Me faço ridícula, me faço idiota diante de todos os meus amigos, porque estarei louca, perdida na concretude de seu nome, nos seus dedos macios, no jeito que acaricia meu cabelo, estarei apaixonada e estarei pronta para te perder mais uma vez, de novo, outra vez, todas as vezes que forem necessárias eu me perderei em ti. Nos teus braços que me escondem no mundo em uma braçada, serei esquecida por meus talentos, estarei desaparecendo no público, meus pais não lembrarão meu nome, meus amigos serão uns imbecis para quem não correrei mais, com você, meu amor, eu serei a mulher mais egoísta do mundo. Não saberei mais que horas são, só terei tempo de sentir prazer.
Não quero mais a ideia de sua ausência atormentando o meu cotidiano, quero amar a sua presença, quero morder a sua orelha, quero sentir a sua saliva molhando os meus cabelos, quero toda a materialidade do sexo e quero me cansar com você. Quero tanto você que me esqueço completamente de viver as coisas que acontecem aqui, estou com você nas minhas ideias, quando, sorrateiramente, caminho sozinha e lembro da sensação doce da sua respiração ofegante no meu corpo.  Te exijo, quero que a sua ideia desapareça, quero que as suas mãos se materializam, quero que você me ame todos os dias, quero que o seu corpo seja minha rotina, quero que você não seja apenas um delírio, te quero inteiro. Te exijo, o seu pensamento não é suficiente para satisfazer minha ânsia.
É para você que eu escrevo, meu amor, e me faço mais ridícula para entender que não basta dizer que sinto saudades de nós dois. É preciso que esse “nós” seja minha realidade, exijo a sua presença, a sua ausência que move minhas ideias me levará a loucura, não aguento mais te procurar em outros rostos, lembrar da sua boca em outros homens, não posso mais dormir com mais ninguém com você na minha cabeça.  Não posso sonhar com pensamentos, quero você, meu amor, te quero presente.  

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O Bolo de Chocolate

Tinha abandonado a sua cidade natal chamada Talera. Estava tomando um copo de água, soube através de uma carta de um acidente de carro que houve com Marcelo. Estava fria, um pouco calculista, tentava compreender o acontecimento, esqueceu completamente de chorar. Ela olhava o chão sem enxergar a cor, pensava as coisas que tinha vivido.
- Não quer tomar um banho Manuela? – perguntou a sua mãe
- não
- não quer comer um bolo de chocolate?
- não
Depois de um profundo silêncio.
- Filha, o que você quer?
- mãe, vai fazer o bolo de chocolate – pensando em como usaria as palavras para não transparecer a profundidade de suas emoções, disse com uma banalidade – quero comer bolo, mas antes vou tomar banho.
Saiu da sala com a cabeça cabisbaixa, a Mãe sentiu um tormento no ar, mas aprontou-se rapidamente em criar um bolo e sentiu uma tristeza que não soube exprimir enquanto preparava o doce. Desejou, de certa maneira, sentir o sentimento no lugar da sua filha, mas soube, imediatamente, que ela jamais comunicaria o sentimento por completo, só fragmentos deste, apenas um diálogo bruto comunicaria o amor que sempre teve por Marcelo e nunca assumiria diante de ninguém. O silêncio era o sinal mais bruto de sua tristeza que a sua filha não queria viver.

No banho, Manuela decidiu orar e isso pareceu algo tão estranho à concepção de mundo dela que quase desistiu. Criou tantas espécies de pensamentos sobre Deus que acabou por decidir que nunca mais falaria essa palavra para não enlouquecer com dogmas e com ideias de futuros eternos. Uma solidão efêmera já lhe parecia muito grave, uma eterna solidão, então, lhe pareceu profundo demais. O Deus dos Católicos sempre lhe deu muitos temores, nunca foi muito sedutor rezar para ele.
Entretanto, ela tinha uma estranha vontade de rezar; talvez, para ouvir a sua voz, talvez, para dialogar consigo mesma ou, talvez, para não se esquecer do rosto e das brincadeiras que teve com Marcelo. Ele era um menino muito tímido, morava ao lado de sua casa, não era um rapazinho bonito, mas dava uma sensação estranha, nunca entendeu o motivo que fez ficar atraída por ele, mas ficou e não teve controle, viveu isso com tanta intensidade e entrega que até imaginaria viver sem ele, no entanto, não gostaria de vê-lo com outras pessoas. Manuela cresceu com Marcelo como uma reminiscência da vida adulta que era trazida por um fragmento estranho, os próprios homens que se envolvia relembravam a relação que tinha com Marcelo na infância; e, principalmente, comer amoras era um truque do passado que surgia de repente no presente e lhe trazia saudades. Ao menos, sentia que era algo que jamais viveria novamente e era uma experiência irrepetível, nunca lhe passou na cabeça a possibilidade da morte corporal do seu antigo amigo de infância. Imaginar a morte dele antes de completar vinte e quatro anos, por conta de um acidente de carro, era algo que, para ela, era inimaginável. Marcelo não existia mais.
- Pai nosso – reza baixinho, mas raciocinava se eram essas, de fato, as palavras que gostaria de ouvir, - pai nosso? Por quê? Morrer pessoas assim que, de certa maneira, sei lá, foram importantes, não devia ser lícito. O que estou falando? O que estou falando? Devia estar rezando o pai nosso. Mas, não gostava dele, amava ele, queria ele para mim, do mesmo jeito que não suportava a ideia de ver ele novamente, de encarar ele, de dizer as coisas que eu pensava, de saber que a gente não era mais crianças. Mas, mas, ele não está aqui. Ele não está aqui, estou eu e essa parede. Estou nua, pensando novamente em um cara que, provavelmente, não sentiu um terço do que eu senti por ele, mas também não sei até que ponto eu senti essas coisas. Devia rezar o pai nosso, devia rezar o pai nosso.
Ao trocar de roupa, Manuela procurou uma fotografia do rosto de Marcelo, lembrou-se que não tinha fotografias dele em casa, todas as fotos estavam na casa de sua mãe. Ouviu o grito de sua mãe chamando para comer bolo de chocolate, parecia uma cena quando era menininha, quando a sua mãe chamava por ela para comer e descia correndo as escadas para contemplar os chamados que ouvia da Dona Rosa. Um silêncio trepidante climatizou o ambiente, elas ficaram horas sem pronunciar uma palavra sequer. Manuela ficou com vontade de perguntar se a outra mulher tinha uma fotografia do Marcelo, mas perdeu a coragem de perguntar quando percebeu, de repente, que olhar as fotografias era, talvez, o pior tipo de morte.
-filha, - dizendo muito sem graça, - posso fazer uma oração para você?
- pode mãe – meio sem graça, quase dizendo não, aceitou ouvir. A mãe pegou a sua mão direita e pediu que ela fechasse os olhos, ela aceitou e obedeceu.
- Filha, espero que um dia você acredite em Deus, te desejo que você escute a música das constelações, espero que um dia você tenha uma imaginação menos confusa, que um dia aprenda a orar e que sonhe sem perder a noção de realidade. Eu te desejo que namore com anjos e com demônios e que vive tudo aquilo que não vivi e um dia invejei em vida, eu te desejo o amor em todas as formas para que você não perca a vontade de continuar acreditando na vida, te desejo uma felicidade que poucos vão invejar, te desejo olhos de tigres e inteligência de raposa para tomar atitudes, te desejo orelhas com sonhos, pés com fome, te desejo curiosidade em tudo que um dia vai viver e desejos. Te desejo uma luz muito grande que você sequer vai sentir e Deus vai te dar.

Manuela não respondeu, a imaginação da sua mãe era suficientemente generosa para as duas e, por um momento, esqueceu que era forte e caiu em um mar de lágrimas. Ela ficou abraçada por tanto tempo com a sua mãe e decidiu não brigar, pelo menos hoje, para provar que a imaginação cristã da mamãe era perigosa, pois poderia facilmente cair em discursos políticos intolerantes. Manuela se esqueceu dos discursos políticos e vivenciou, pela primeira vez, uma espécie de fé criada através da imaginação de sua mãe. Agradeceu apenas, esquecendo-se completamente do rosto de Marcelo e tendo consciência que as suas mãos eram firmes e finas. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Uma brincadeira de gosto

I
As duas mãos, pequeninas, agarrando com fúria aquelas frutinhas pretas, Catarina come e saboreia cada pedaço de gosto.
- Catarina! Catarina!
- que é mãe?
- vem lavar louça!
Alimentando-se com pressa e devagar descobre o gosto que a vida parece ter. A vida é uma delicadeza insuportável como descobrir o gosto da jabuticaba. Um gosto que até então era um mistério, antes de colocar na boca e sentir, ela só tinha a sensação da fruta nas mãos, mas o sentimento de jabuticaba dentro dela era só uma falta. A fruta era o seu espaço vazio no corpo.
- Catarina! Catarina!
Ela colocava cinco, seis e sete jabuticabas de uma vez na boca. Estava com preguiça e, nesse momento, não queria lavar louça nenhuma, Catarina queria todas essas frutinhas pretas, estava gulosa pela sensação do gosto na boca.  Estava com fome e comia, comia e comia. Às vezes, comia tanto que esquecia a sensação do primeiro gosto. Esquecia, de repente, dois minutos atrás, a sensação da última jabuticaba que engolia inteira. Cada frutinha que se colocava na boca, sumia para sempre. Ela se esquecia de tudo e continuava comendo.

II
As jabuticabas não acabavam, Catarina roubava todas na árvore do vizinho, ela tinha a sensação de eternidade e perdia o medo da mãe que, aos poucos, se aproximava da árvore e gritava umas ou três palavras de ordem para menina descer e lavar louça. Catarina, mesmo alta e acima da cabeça da mãe, desceu na árvore com a boca suja, parecendo um animal que precisa ser adestrado.
- vai limpar essa boca menina! Está toda suja! Vai pentear esse cabelo! Vai lavar louça! Vai tomar banho!
Catarina olhando de baixo para cima, olhinhos curvos e miúdos, olhando o gigante materno diante da sua frente. Limpou a boca com braço esquerdo, sem pudor de passar a sujeira da jabuticaba na pele, na roupa e na calça, balançou a cabeça e fugiu de outro grito. Depois, fugiu de uma chinelada. Depois, passou a ouvir grunhidos e palavras de ordem da mãe. Ela foi tomar banho, antes de lavar louça.
E tomando banho, apenas. Sentiu o sentimento da jabuticaba como efêmero e que só poderia fazer isso se desobedecesse novamente sua mãe e o vizinho. Mas, sentiu a jabuticaba como um silêncio, algo que a memória faria para sempre um truque de alegria. Catarina sonhava com a sensação da boca e sentia a água atravessando os poros, nunca mais seria uma menina, seria um animal quando pensasse novamente no prazer de comer a vida com as mãos.


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Estudantes, Protesto e Brasil

Introdução

No Jornal “El País”, o colunista Juan Arias termina com uma pergunta bastante relevante depois de um levantamento sistemático sobre questões do momento que o país Brasil atravessa: “Alguém pode negar a um jovem o direito de sonhar?”. Reinaldo de Azevedo e Cia. dizem que essa manifestação tem o aparelhamento do PT e dos esquerdistas-marxistas riquinhos que aprenderam no colégio com um professor de história hipomarxista sobre a necessidade de reivindicar o direito pelo oprimido.
Na análise de Juan Arias, o autor coloca que temos hoje um país muito diferente de anos atrás. A mudança do quadro histórico começa com a possibilidade dos filhos de pobres que nunca pisaram numa faculdade estarem nas Universidades pela primeira vez; tiraram os pobres da miséria; aumentaram o poder de consumo das empresas e do povo. Por que, então, essa manifestação no Brasil agora que esse país está prestes a viver uma Copa do Mundo e fazer uma nova história a partir de agora? A resposta está aí: a possibilidade de fazer uma nova história gritando nos olhos dos jovens e dos cidadãos brasileiros.
No Movimento de 68, a juventude queria mudar o mundo, hoje, eles querem coisa diferente. Tomaram consciência do poder público. Não querem ser transportados como um burro de carga, atravessar São Paulo correndo riscos de serem avacalhados por todo o tipo de violência que estamos expostos; porém, a pior violência é aquela que a história desse povo esconde, é a voz dos braços repressores do Estado. Não é somente a Polícia Militar, que é a última e a mais eminente de todos nós, pois também são trabalhadores e devem sofrer uma espécie pior de vergonha, quando cumprem o seu dever.
Essa frase “cumprir dever” é perigosa, porque repetimos todos os dias. Repetimos quando encaramos a nossa rotina, quando estamos dentro do ônibus, quando nos acostumamos com a nossa aparente felicidade. Não é uma frase dita somente por policiais, é uma frase dita também por estudantes, professores, médicos e enfermeiros. É preciso cumprir os nossos deveres, seja lá o que isso significar, mesmo que seja corrompendo a liberdade alheia. É o que acontece, às vezes, dentro de manifestações políticas quando vemos manifestantes revelando o pior do humano que existe em todos nós.

Sobre direitos e privilégios

É muito difícil falar de educação, estamos contagiados ainda pela figura mítica do movimento estudantil de 68 e a luta contra Ditadura Militar, recebemos uma série de novidades sobre o que consideram o nosso país e um passado nostálgico que parece surgir no ouvido dos jovens como uma espécie de fantasma ou cobrança que nunca teremos noção, apenas podemos imaginar o passado. A difícil tarefar de um historiador está em trazer a experiência do passado para nós como uma experiência real e presente na vida.
É mais difícil falar de educação, quando a educação estadual permanece a mesma por vinte anos. Quando o Estado simplesmente abandona o professor e com isso instaura a guerra entre professor e aluno. Quando a escola parece formar as mesmas espécies de estudantes, analfabetos funcionais e aparentemente sem cultura. (Até hoje, não sei como alguém tem coragem de chegar ao outro e dizer que uma pessoa é sem cultura. Ninguém é sem cultura). Quando o sistema burocrático parece cada dia mais modernizar e emperrar todas as possibilidades simples; quando o sistema, cada dia mais, cria pessoas medíocres. Mas, afinal, estudar numa faculdade pública é privilégio, estar dentro de um ônibus lotado é normal, passar por humilhações para ver o seu filho preso é medida de segurança, dormir no ônibus por causa do trânsito que não anda é normal, não ter médicos nos hospitais públicos é normal e etc.
A lista de normalidade é longa. A Constituição Civil dá direito ao cidadão a possibilidade de estudar, ter saúde, estar seguro e ter direito de ir e vir. No entanto, os impostos são pagos todos os dias, a educação de qualidade ainda continua sendo privilégio, o direito de ir e vir é um tanto estranho a todos nós porque pagamos por isso e nem é seguro; trabalhar todos os dias, enquanto diminui a qualidade de vida.  O que é preciso lutar todos os dias, isso é absolutamente estranho que ainda precise ser lembrado, é o direito do cidadão reivindicar o seu espaço numa esfera pública, não é nada ilegítimo, por mais que a elite mediática e outros colocam a aparência ilegítima nas ações de qualquer manifestação política. O espaço público é de todos os cidadãos, não é de uma minoria, a democracia é do povo e não de um conjunto de gestores. Esse direito devia ser inquestionável.

Sobre Estudantes e Trabalhadores

O protesto foi feito por estudantes e jovens, mas não só. É muito engraçado que até hoje quando se escuta a palavra estudante, isso ganha uma dimensão quase perturbadora. Se for estudante de Universidades públicas, então, ganha o mesmo sentido depreciativo que as palavras “vagabundo” e “puta” estranhamente possuem. Isso é um fenômeno engraçado, ao mesmo tempo, que é um grande privilégio não pagar mensalidades numa faculdade. Um estudante que pertence a uma Instituição Pública não pode reclamar, afinal ele não paga, é tudo riquinho, não faz nada. Não é mesmo? Eles não têm direito de fazer isso, eles não são nada, são só estudantes, jovens que ainda não cresceram.
Esse discurso: “eles não são nada, são só estudantes, jovens que ainda não cresceram”. Isso é muito familiar com um discurso presente nas escolas públicas quando os professores se referem aos alunos da seguinte forma: “vocês não são nada, eles são muito ruins, tudo sem educação, sem cultura, tudo péssimo, para conversar com eles tem que ser cabeça aberta”. Dentro de manifestações é possível ver o pior do humano, mas observa direito, porque dentro da rotina escolar e dos setores públicos, é possível encontrar pessoas sem vontade e estúpidas do mesmo jeito, também é visível ver o pior do humano.
É óbvio que tudo é uma questão de perspectiva. A pessoa pode ficar quatro, cinco, seis ou nove anos numa graduação, passando por coisas e vivendo coisas que transforma um jovem em uma espécie de adulto maravilhoso, se o mundo abrisse espaço para isso. Se as academias e as escolas também melhorassem para os jovens. Mas, enfim, algumas coisas no mundo ainda não mudaram, as duas instituições mais antigas da humanidade ainda são Escola e Igreja.  
Um jovem que ganha um salário mínimo no Shopping Center ou trabalha como segurança, porque tem que sustentar filhos, sabe-se lá como, não pôde fazer faculdade por conta dos rumos da vida, é menos jovem por conta disso? Ou é mais adulto? Esse jovem que ganha um salário mínimo e não estuda, seria o trabalhador que a elite e outros escutariam? Não é meio absurdo o privilegiado estudante que possui o direito de viver a sua juventude sem pressa ser mais jovem e menos convincente para falar do mundo do que um adulto que precisa efetivamente trabalhar e deixar os estudos lá embaixo da cama? O que é um jovem, afinal de contas, uma pessoa entre 18 até 25 anos, ou uma pessoa sem grana que precisa efetivamente sacrificar muitas coisas para fazer uma graduação? Ou uma pessoa sem grana de 20 anos que precisa efetivamente sacrificar a vontade de cursar uma graduação porque não tem dinheiro, porque não quer, porque os rumos da vida foram outros? Afinal, um jovem estudante, por acaso, é o quê? Um parasita do governo. Parasita ruim, porque os auxílios de permanência de uma faculdade pública também não mudam, um estudante ganha sempre auxílio no valor de 400 reais ou 150 reais e não é todos,  esse auxílio que não cai no mês certo e ele precisa realmente “ir se virando” como dá. (Isso quando não acontece a evasão nas Universidades públicas, não tenho estofo para falar das diferenças da evasão em Federais e Estaduais).
Observemos bem isso. A educação é um problema, porque vivemos em um mundo desigual. Houve mudanças? Sim, muito curtas e pequenas. Mas, em qualquer esquina, eu ainda escuto: “tudo que é pago ainda é melhor. Tudo que é público, é muito ruim”. Em qualquer esquina, escuto pessoas que não conseguiram marcar sua consulta nos hospitais. Assim, o setor público não melhorou e querer que essas instituições públicas ofereçam um serviço que forneçam qualidade, não é nada do outro mundo. É, realmente, normal e legal.

Protestos

O protesto não é um movimento estudantil, mas poderia ser. Não é um movimento hippie, mas poderia ser. Não é um movimento mediado por um partido político (como diria Reinaldo Azevedo), não é aparelhado pelos petistas, mas é múltiplo partidário. O protesto acontece na rua, ela pertence à esfera pública, quem manda nela é o povo.
O protesto não pode possuir rótulos. Os manifestantes e o povo precisam sempre estar atentos para verdadeira mensagem de toda e qualquer manifestação política. A violência dos participantes do movimento não é a causa, a mensagem não deve ser essa, o debate não é esse, a Policia Militar agredindo manifestantes com expressões bélicas superiores a vinagres e latas de lixo, isso sim é motivo de debate, porque não garante segurança e instaura o caos. O motivo sempre precisa partir da causa que o movimento defende. A causa é o real motivo desse encontro, que é um encontro dos paulistanos.

Conclusão

Alguém pode tirar de um cidadão paulistano e brasileiro o direito de sonhar com um mundo diferente que ele conhece? Os paulistanos, os cariocas e o mundo estão provando que os sonhos podem ser expostos na rua e a luta por eles pode ser considerada algo normal na vida das pessoas. Fiquemos sempre atentos com as nossas contradições e tentemos, de certa maneira, colocá-las no debate. Entretanto, não deixemos os nossos sonhos ruírem novamente por conta de dois ou três parasitas aparentemente libertários ou intelectulóides da nossa mídia apavorada que não respeitam nenhuma rede de pesquisa realizada por nossos verdadeiros lutadores acadêmicos do nosso país.
Se houver engano e equívocos, aprenderemos com eles.

Bibliografia