Ando
tão a flor da pele (Waly Salomão/ Macalé)
Efemeridade
do tempo. Acordei, tomei café, o dia longo e chuvoso, senti um sentimento
arrebatador no ar de angústia e morte. Senti um amor imenso por toda
humanidade, queria conversar com algum amigo. Podia ligar para Vera. Já faz
quatro anos que não conversamos.
Mas
o que conversaríamos? Eu não tenho mais assunto com ela. Nem sei se ela ainda
lembra que a minha cor favorita ainda continua sendo azul. Não mudei tanto
assim, acho até que poderíamos manter uma conversa. O problema é que justamente
hoje, eu gostaria de ouvir uma palavra amiga, uma vontade de desabafar e não de matar as saudades lembrando coisas alegres no passado. Nunca vou me acostumar com essa
ausência, nunca vou me acostumar com a ideia de morte.
Eu
podia ligar e falar: Olá Vera, liguei pra você pra dizer que eu te amo e
precisava muito ouvir uma palavra amiga. Eu estou com medo de morrer. Essa
vontade de ouvir alguém amigo é quase desesperada, não ando suportando esse
peso dessa ausência. Não vou aguentar viver sem ele. Eu sei que você nem deve
saber que estava morando com um menino, sei que nem conversamos mais, mas é que
ontem eu tive um pesadelo. Um pesadelo horrível, minha amiga! Eu sonhei que estava
amarrada por barbantes, o meu corpo inteiro, todo encolhido por fios grossos de
barbantes, estava preso e escondido em várias camadas. A minha boca estava tapada,
os meus ouvidos amarrados, quase não ouvia, quase não respirava. Só podia ver. E o que eu via! Ah que
horrível! Eu via todas as pessoas que eu amava se distanciando na minha vida,
eu não podia chegar perto deles. Eu via a vida deles se realizando e a minha
presa, distante deles. Sentia, então, o grande peso da solidão, mas não podia
gritar. Vera, eu sonhei com isso, tive tanto medo, sei que não conversamos
mais, mas eu queria tanto ouvir um pouco uma voz amiga. Eu tô com tanto medo de
morrer.
Eu
poderia falar isso. Mas não falaria, acho que não ia conseguir conversar. A
minha tagarelice ficaria no profundo silêncio, as palavras não teriam matérias
sonoras, será que ela perceberia alguma coisa? Tanto tempo sem conversar,
parece que houve uma mudança de dois séculos. Sinto que jamais conseguiria
conversar com alguém que me conheceu antes, usando aquela alegria inocente de
antes. Acho que não... (porra, usei reticências! Mas não consigo me exprimir,
entende, não consigo. Eu sinto saudades. Saudades é o sentimento mais urgente
da vida parece com a fome. Sei muito bem que essa frase não é minha, mas
poderia ser, podia ser).
&
Olho
pela janela. Cai uma chuvinha insossa e seca. O chão parece nem sentir. Escuto
um assovio de longe, mas confundo esse assovio com o meu assombro interior. A
natureza me acaricia com o vento, mas escuto um grito mudo vindo do meu ventre,
me calando profundamente. Meu semblante fica sério, estou demasiadamente
perplexa. Olho para o criado-mudo, o meu café está quase no fim.
As
coisas, ao meu redor, interpretam vários monólogos de solidão e avisam que a
efemeridade do tempo extermina os minutos, as horas e os segundos. Só.
&
Lembro
da Vera, do Pedro, do Roh, da Betinha e do mundo. Lembro da Guerra do Vietnã e
da crise financeira. Me esqueço profundamente de mim, me recusando a acreditar
que ele me deixou e foi numa tarde de domingo. Tenho, então, uma vontade de
chorar e fazer uma linda oração para alguma entidade maior. Poderia falar com
Deus, já que não consigo fazer uma ligação para Vera. Entretanto, no momento em
que eu penso fazer uma oração, sinto vergonha e vontade de desistir
imediatamente. Não tenho linguagem para exprimir as minhas tristezas, não tenho
para os meus amigos do passado, não tenho para Deus. Se é que ele aceitaria
essa linguagem vulgar de português comum, se é que essa entidade aceitaria
apenas uma oração estúpida de um mortal, que morre de medo e sente estranheza
em ouvir a sua própria voz.
Eu
sinto uma leve sensação de abandono. Espreguiço o meu corpo, deito na minha
cama outra vez e tento dormir de novo.
&
Não
consigo dormir. Vou ao banheiro. Me ligam pelo telefone. É o IML. Finalmente,
fizeram a autópsia do corpo de Carlos, escuto com atenção, descubro que a morte
foi provocada. Envenenaram ele. De imediato, penso quem são os possíveis
culpados, sinto um desejo enorme de matar. Cresce dentro de mim um ódio
inexplicável. Uma vontade enorme de fazer a revolução e matar todos os homens
ruins do mundo. Mas, fico em dúvida, se é para matar todos os homens maus, eu
deveria começar por mim. Mataria toda a minha alma. Será que preencheria esse
vazio? Eu sinto um sentimento que nem consigo pensar direito.
Deveria
mesmo ligar para um amigo e conversar. Deveria.
Me
deito no chão. Olho para o teto. Podia falar com as paredes; pelo menos,
ninguém ia se sentir tão encabulado com o tempo. Podia não falar nada. Podia,
podia, podia,
Bruna,
ResponderExcluirfico feliz pelo prazer de novamente poder ler seus textos.
Você continua a escrever muito bem, na minha opinião. Há naturalidade na sua escrita.
Alguma coisa que flui bem, não apenas no sentido de ser inteligível, mas no sentido de fluir como prazer estético.
Muita facilidade com as palavras! É apaixonante!
Parabéns por continuar, por seguir o caminho que, a meu ver, é o mais natural em você: o caminho da palavra.
Parabéns.
João.