domingo, 16 de dezembro de 2012

O Tempo Selvagem



Ando tão a flor da pele (Waly Salomão/ Macalé)

Efemeridade do tempo. Acordei, tomei café, o dia longo e chuvoso, senti um sentimento arrebatador no ar de angústia e morte. Senti um amor imenso por toda humanidade, queria conversar com algum amigo. Podia ligar para Vera. Já faz quatro anos que não conversamos.
Mas o que conversaríamos? Eu não tenho mais assunto com ela. Nem sei se ela ainda lembra que a minha cor favorita ainda continua sendo azul. Não mudei tanto assim, acho até que poderíamos manter uma conversa. O problema é que justamente hoje, eu gostaria de ouvir uma palavra amiga, uma vontade de desabafar e não de matar as saudades lembrando coisas alegres no passado. Nunca vou me acostumar com essa ausência, nunca vou me acostumar com a ideia de morte.
Eu podia ligar e falar: Olá Vera, liguei pra você pra dizer que eu te amo e precisava muito ouvir uma palavra amiga. Eu estou com medo de morrer. Essa vontade de ouvir alguém amigo é quase desesperada, não ando suportando esse peso dessa ausência. Não vou aguentar viver sem ele. Eu sei que você nem deve saber que estava morando com um menino, sei que nem conversamos mais, mas é que ontem eu tive um pesadelo. Um pesadelo horrível, minha amiga! Eu sonhei que estava amarrada por barbantes, o meu corpo inteiro, todo encolhido por fios grossos de barbantes, estava preso e escondido em várias camadas. A minha boca estava tapada, os meus ouvidos amarrados, quase não ouvia, quase não respirava. Só podia ver. E o que eu via! Ah que horrível! Eu via todas as pessoas que eu amava se distanciando na minha vida, eu não podia chegar perto deles. Eu via a vida deles se realizando e a minha presa, distante deles. Sentia, então, o grande peso da solidão, mas não podia gritar. Vera, eu sonhei com isso, tive tanto medo, sei que não conversamos mais, mas eu queria tanto ouvir um pouco uma voz amiga. Eu tô com tanto medo de morrer.
Eu poderia falar isso. Mas não falaria, acho que não ia conseguir conversar. A minha tagarelice ficaria no profundo silêncio, as palavras não teriam matérias sonoras, será que ela perceberia alguma coisa? Tanto tempo sem conversar, parece que houve uma mudança de dois séculos. Sinto que jamais conseguiria conversar com alguém que me conheceu antes, usando aquela alegria inocente de antes. Acho que não... (porra, usei reticências! Mas não consigo me exprimir, entende, não consigo. Eu sinto saudades. Saudades é o sentimento mais urgente da vida parece com a fome. Sei muito bem que essa frase não é minha, mas poderia ser, podia ser).
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Olho pela janela. Cai uma chuvinha insossa e seca. O chão parece nem sentir. Escuto um assovio de longe, mas confundo esse assovio com o meu assombro interior. A natureza me acaricia com o vento, mas escuto um grito mudo vindo do meu ventre, me calando profundamente. Meu semblante fica sério, estou demasiadamente perplexa. Olho para o criado-mudo, o meu café está quase no fim.
As coisas, ao meu redor, interpretam vários monólogos de solidão e avisam que a efemeridade do tempo extermina os minutos, as horas e os segundos. Só.
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Lembro da Vera, do Pedro, do Roh, da Betinha e do mundo. Lembro da Guerra do Vietnã e da crise financeira. Me esqueço profundamente de mim, me recusando a acreditar que ele me deixou e foi numa tarde de domingo. Tenho, então, uma vontade de chorar e fazer uma linda oração para alguma entidade maior. Poderia falar com Deus, já que não consigo fazer uma ligação para Vera. Entretanto, no momento em que eu penso fazer uma oração, sinto vergonha e vontade de desistir imediatamente. Não tenho linguagem para exprimir as minhas tristezas, não tenho para os meus amigos do passado, não tenho para Deus. Se é que ele aceitaria essa linguagem vulgar de português comum, se é que essa entidade aceitaria apenas uma oração estúpida de um mortal, que morre de medo e sente estranheza em ouvir a sua própria voz.
Eu sinto uma leve sensação de abandono. Espreguiço o meu corpo, deito na minha cama outra vez e tento dormir de novo.
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Não consigo dormir. Vou ao banheiro. Me ligam pelo telefone. É o IML. Finalmente, fizeram a autópsia do corpo de Carlos, escuto com atenção, descubro que a morte foi provocada. Envenenaram ele. De imediato, penso quem são os possíveis culpados, sinto um desejo enorme de matar. Cresce dentro de mim um ódio inexplicável. Uma vontade enorme de fazer a revolução e matar todos os homens ruins do mundo. Mas, fico em dúvida, se é para matar todos os homens maus, eu deveria começar por mim. Mataria toda a minha alma. Será que preencheria esse vazio? Eu sinto um sentimento que nem consigo pensar direito.
Deveria mesmo ligar para um amigo e conversar. Deveria.
Me deito no chão. Olho para o teto. Podia falar com as paredes; pelo menos, ninguém ia se sentir tão encabulado com o tempo. Podia não falar nada. Podia, podia, podia, 

Um comentário:

  1. Bruna,

    fico feliz pelo prazer de novamente poder ler seus textos.

    Você continua a escrever muito bem, na minha opinião. Há naturalidade na sua escrita.

    Alguma coisa que flui bem, não apenas no sentido de ser inteligível, mas no sentido de fluir como prazer estético.

    Muita facilidade com as palavras! É apaixonante!

    Parabéns por continuar, por seguir o caminho que, a meu ver, é o mais natural em você: o caminho da palavra.

    Parabéns.

    João.

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