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A
fotografia é uma rasura do tempo. É tempo histórico imobilizado, um relâmpago
fugaz do presente morto.
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Todo
escritor que se preza sonha contar parábolas. As parábolas são eternas, são
mais antigas que a história. A ficção é a memória mais antiga da humanidade.
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Era
uma vez um Deus, um castelo, uma princesa, uma espada e um sapo... e aí? Deus
mandou o seu discípulo matar o seu filho com a espada. O sapo gemeu. A princesa
queria ser herói. O discípulo foi rebelde, negou a ordem de Deus, falou: filho,
você é livre para viver. O filho cresceu, a barba cresceu, ele construiu com suas
próprias mãos um castelo. O castelo chamava-se Torre de Babel. O filho ficou
arrogante, maltratava os seus escravos e servos, mandava matar todos os heróis
e estuprava todas as menininhas. Deus ordenou a destruição do castelo. O vento
soprou a ordem. A Torre de Babel sumiu como um sonho. O filho ficou tão triste
e sumiu pelo mundo.
Enquanto
isso, a princesa, prisioneira dos seus sonhos, que estava presa no céu ao lado
de Deus. Ficou rebelde, desobedeceu Deus e inventou asas para voar. Virou um
anjo; criando rasuras no céu; deu aos homens o poder da criação. Esse poder se
chamava história. Depois, a princesa deu a capacidade de contar histórias. Porém, dentro disso, havia outro poder, a história ensinava os homens a ter imaginação. A
humanidade se aproximava de Deus com a arte. A princesa deu aos homens a arte,
a história, a memória e a imaginação. Os homens cresciam com angústia e com
medo da morte, mas eram fortes, conseguiam ser mais fortes que Deus por causa
da Arte.
Deus
ficou com inveja. E contrariado com a atitude da princesa rebelde, decidiu
castigá-la e não maltratar a humanidade. Deu de presente um manto enfeitiçado,
a princesa ficou feliz, sem saber que no manto tinha o pior feitiço de todos,
Deus deu a ela o Amor; enquanto a Igreja ordenava em voz alta: “ Não amarás!”. A princesa ficou muito confusa e triste, andou
pelo parque sem fazer rasuras no céu, foi perdendo a capacidade de rir e de
chorar. Numa tarde de domingo, ela se enforcou.
Morreu sem cor.
Depois
da morte da princesa, os homens deram as costas para o anjo morto. Nunca mais
se lembraram do anjo da história. Ela morreu anônima. Os homens andaram
perdidos pelo espaço, não se conheciam, eram uma malta de desmemoriados e sem
sonhos. Vivia em um mundo sem Arte.
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Hoje,
acordei com vontade de amar. Dormi sem sono, acordei gripada, meu corpo estava
mole, meu nariz entupido não conseguia respirar o ar seco dessa cidade. Senti
uma súbita inspiração, fui desenhar uma bola, dentro dela, desenhei outra
bolinha. A minha vontade de amar não desapareceu, mas estava tão doente para
enfrentar o mundo hoje. Quando afastei o desenho das minhas mãos, vi dois
círculos vazios que não se encostavam e nem se preenchiam.
Era
estranho como podia viver fazendo círculos, doente de sonhos e amor. A pessoa não disse nenhuma palavra; sabia que esse momento estava prestes a acabar. Ela ouviu a porta.
Quando abriu, viu Renato, (sua história de amor mal resolvida). Ambos passaram o
dia fazendo círculos, esquecendo-se.
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Ela
era uma menina baixinha, com olhos castanhos, veio de Marte e caiu sem querer
na Liberdade em São Paulo. Na matéria dela. Tinha qualquer coisa feita de
sonhos, qualquer coisa além da carne, muito feito de sexo; os muros abriram os
seus ideais, partiram o corpo ao meio e criaram limites inconsistentes. Na
matéria dela. Havia qualquer coisa feita de sangue, parte burrice,
alguns preconceitos escondidos que ela vigiava noite e dia, qualquer coisa além
da superfície. No corpo dela. Suspirava
sonhos, era algo parecido com fé, não se explicava, sentia.
Era
uma menina bobinha. Tinha o mundo aos seus pés, achava que a vida sem música
não tinha a menor graça. Perecia, enquanto ainda crescia, aos poucos com a apatia
política que a estrutura social de seu tempo criava, contagiando principalmente
jovens, matando sonhadores e fazendo esquecer ainda mais os esquecidos. A pobre marciana de vinte anos tomava café
com leite naquela manhã.
Doce
e inocente, café com leite. A inocência ainda sondava suas pálpebras. No fundo
do seu coração. Rezava com uma voz sem voz para alguma coisa que não conhecia e
não sabia o nome. (Não gostava de nomear a metafísica). A marciana pedia um
pouco de malandragem e um terço de coragem para matar. Queria um pouco de humildade, sabia que
existia fraqueza em suas palavras, soava medo em sua voz. Se a Ditadura criou o medo, a Democracia
cultuava a apatia e a sensação de um mundo sem história.
A
menina tinha terminado de tomar o seu café com leite, eram sete horas da manhã,
precisava enfrentar o navio negreiro de todos os dias. Ao entrar no navio negreiro,
ela pressentia o nojo dos corpos, eles se encostavam tanto, o cheiro de suor
era tão intenso; o metrô parava de repente, entravam mais pessoas, mais corpos
apertando pele com pele. A jovem marciana queria dormir, ansiava dormir para o
resto de sua vida. Só desistia dessa vontade, quando encontrava o seu cachorro.
Com o animal, ela ria, ria e ria.
Perto
de um animal, a jovem se aproximava de sua natureza, intuía que era possível
viver infeliz, mas também era natural viver despreocupado. O cachorro é um animal despreocupado no mundo. As árvores são tão despreocupadas que se
esquecem de falar, a água corre apenas. O mundo que não é infeliz é sem
preocupações (principalmente, econômicas!). A Marciana se despreocupava, ainda
suspirava algo diferente dos animais, um gosto azedo de angústia e sonhos. Nessa despreocupação havia um zelo de preocupações humanas que lhe faziam amargamente infeliz, seria uma mocinha assim por resto de sua vida.
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Não
se esqueça:
Não
podemos temer o temor. O medo ainda alimenta a vontade de não ter medo. O amor
condena o terror. Apesar de. O amor pode ser realizado também com um pouco de dor, duas colheres de angústia e um desejo de morte.
(A
angústia é o sentimento mais humano do mundo).
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