quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Fragmentos da escritora: (isso é um diário)





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A fotografia é uma rasura do tempo. É tempo histórico imobilizado, um relâmpago fugaz do presente morto.
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Todo escritor que se preza sonha contar parábolas. As parábolas são eternas, são mais antigas que a história. A ficção é a memória mais antiga da humanidade.
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Era uma vez um Deus, um castelo, uma princesa, uma espada e um sapo... e aí? Deus mandou o seu discípulo matar o seu filho com a espada. O sapo gemeu. A princesa queria ser herói. O discípulo foi rebelde, negou a ordem de Deus, falou:  filho, você é livre para viver. O filho cresceu, a barba cresceu, ele construiu com suas próprias mãos um castelo. O castelo chamava-se Torre de Babel. O filho ficou arrogante, maltratava os seus escravos e servos, mandava matar todos os heróis e estuprava todas as menininhas. Deus ordenou a destruição do castelo. O vento soprou a ordem. A Torre de Babel sumiu como um sonho. O filho ficou tão triste e sumiu pelo mundo.
Enquanto isso, a princesa, prisioneira dos seus sonhos, que estava presa no céu ao lado de Deus. Ficou rebelde, desobedeceu Deus e inventou asas para voar. Virou um anjo; criando rasuras no céu; deu aos homens o poder da criação. Esse poder se chamava história. Depois, a princesa deu a capacidade de contar histórias. Porém, dentro disso, havia outro poder, a história ensinava os homens a ter imaginação. A humanidade se aproximava de Deus com a arte. A princesa deu aos homens a arte, a história, a memória e a imaginação. Os homens cresciam com angústia e com medo da morte, mas eram fortes, conseguiam ser mais fortes que Deus por causa da Arte.
Deus ficou com inveja. E contrariado com a atitude da princesa rebelde, decidiu castigá-la e não maltratar a humanidade. Deu de presente um manto enfeitiçado, a princesa ficou feliz, sem saber que no manto tinha o pior feitiço de todos, Deus deu a ela o Amor; enquanto a Igreja ordenava em voz alta: “ Não amarás!”.  A princesa ficou muito confusa e triste, andou pelo parque sem fazer rasuras no céu, foi perdendo a capacidade de rir e de chorar. Numa tarde de domingo, ela se enforcou.  Morreu sem cor.
Depois da morte da princesa, os homens deram as costas para o anjo morto. Nunca mais se lembraram do anjo da história. Ela morreu anônima. Os homens andaram perdidos pelo espaço, não se conheciam, eram uma malta de desmemoriados e sem sonhos. Vivia em um mundo sem Arte.


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Hoje, acordei com vontade de amar. Dormi sem sono, acordei gripada, meu corpo estava mole, meu nariz entupido não conseguia respirar o ar seco dessa cidade. Senti uma súbita inspiração, fui desenhar uma bola, dentro dela, desenhei outra bolinha. A minha vontade de amar não desapareceu, mas estava tão doente para enfrentar o mundo hoje. Quando afastei o desenho das minhas mãos, vi dois círculos vazios que não se encostavam e nem se preenchiam.
Era estranho como podia viver fazendo círculos, doente de sonhos e amor. A pessoa não disse nenhuma palavra; sabia que esse momento estava prestes a acabar. Ela ouviu a porta. Quando abriu, viu Renato, (sua história de amor mal resolvida). Ambos passaram o dia fazendo círculos, esquecendo-se.  

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Ela era uma menina baixinha, com olhos castanhos, veio de Marte e caiu sem querer na Liberdade em São Paulo. Na matéria dela. Tinha qualquer coisa feita de sonhos, qualquer coisa além da carne, muito feito de sexo; os muros abriram os seus ideais, partiram o corpo ao meio e criaram limites inconsistentes. Na matéria dela. Havia qualquer coisa feita de sangue, parte burrice, alguns preconceitos escondidos que ela vigiava noite e dia, qualquer coisa além da superfície.  No corpo dela. Suspirava sonhos, era algo parecido com fé, não se explicava, sentia.
Era uma menina bobinha. Tinha o mundo aos seus pés, achava que a vida sem música não tinha a menor graça. Perecia, enquanto ainda crescia, aos poucos com a apatia política que a estrutura social de seu tempo criava, contagiando principalmente jovens, matando sonhadores e fazendo esquecer ainda mais os esquecidos.  A pobre marciana de vinte anos tomava café com leite naquela manhã.
Doce e inocente, café com leite. A inocência ainda sondava suas pálpebras. No fundo do seu coração. Rezava com uma voz sem voz para alguma coisa que não conhecia e não sabia o nome. (Não gostava de nomear a metafísica). A marciana pedia um pouco de malandragem e um terço de coragem para matar.  Queria um pouco de humildade, sabia que existia fraqueza em suas palavras, soava medo em sua voz.  Se a Ditadura criou o medo, a Democracia cultuava a apatia e a sensação de um mundo sem história.
A menina tinha terminado de tomar o seu café com leite, eram sete horas da manhã, precisava enfrentar o navio negreiro de todos os dias. Ao entrar no navio negreiro, ela pressentia o nojo dos corpos, eles se encostavam tanto, o cheiro de suor era tão intenso; o metrô parava de repente, entravam mais pessoas, mais corpos apertando pele com pele. A jovem marciana queria dormir, ansiava dormir para o resto de sua vida. Só desistia dessa vontade, quando encontrava o seu cachorro. Com o animal, ela ria, ria e ria.
Perto de um animal, a jovem se aproximava de sua natureza, intuía que era possível viver infeliz, mas também era natural viver despreocupado. O cachorro é um animal despreocupado no mundo. As árvores são tão despreocupadas que se esquecem de falar, a água corre apenas. O mundo que não é infeliz é sem preocupações (principalmente, econômicas!). A Marciana se despreocupava, ainda suspirava algo diferente dos animais, um gosto azedo de angústia e sonhos. Nessa despreocupação havia um zelo de preocupações humanas que lhe faziam amargamente infeliz, seria uma mocinha assim por resto de sua vida. 

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Não se esqueça:
Não podemos temer o temor. O medo ainda alimenta a vontade de não ter medo. O amor condena o terror. Apesar de. O amor pode ser realizado também com um pouco de dor, duas colheres de angústia e um desejo de morte. 
(A angústia é o sentimento mais humano do mundo).

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