sábado, 14 de junho de 2014

As aventuras do nosso amigo extraterrestre

Primeira parte

Zambuja jr. de Marte desceu aqui na Terra depois da desmaterialização do seu pai, Zambuja de Marte, este que conheceu Brasil em 1970. Zambuja de Marte pai gostava muito desse país, era amigo de pessoas fascinantes. O melhor amigo dele no planeta Terra foi um tal de Carlos Marighella, falecido e assassinado no dia que o Brasil foi campeão de outro mundial.
- ô filho! -  disse Zambuja
- o que foi pai? – Zambuja Jr.  organizava algumas revistas da via láctea
- o que você está lendo na Revista via láctea 2.0? – perguntou o Zambuja
- o próximo buraco negro vai ser agora, papai, estou pensando em subir lá pra Saturno observar o tempo parar. A gente vai, papai?
- ah filho, eu já estou muito velho, estou pensando em ser desmaterializado
- você não vai ver o buraco negro comigo?
- filho, eu vou, mas depois, eu vou ser desmaterializado. Mas gostaria que você fizesse uma coisa para mim
- o quê?
- esse ano vai ter a copa do mundo no Brasil e você vai gostar tanto de conhecer esse país
- copa do mundo?
- é um mundial que acontece em quatro e quatro anos, organizado por uma instituição chamada FIFA
- FIFA?
- é uma instituição que tem muito e muito dinheiro
- dinheiro?
- isso é um conceito difícil de explicar, mas digamos que você vai precisar bastante disso quando você chegar na Terra. A coisa funciona assim, você vai precisar se alimentar, lá eles se alimentam com comida, é tipo nós aqui, a gente se alimenta de luz. Digamos que lá eles se alimentam de luz, só que a luz é vendida, entendeu?
- não entendi, quer dizer, que a luz não é para todos?
- é estranho, mesmo, filho, os seres humanos são figuras esquisitas. Mas é assim, eles não se alimentam só de luz, como a gente, entende, eles compram comida em um lugar chamado supermercado. E, aí, está a importância do dinheiro.
- como é a comida?
- ah, tem coisas ótimas, filho, você vai ver! Mas, eu não vou falar para você, quando você for conhecer o Brasil, você vai conhecer comidas maravilhosas. E vai sentir até falta, eu tenho muitas saudades de sentir o meu paladar lá. Comia de gula, sabe – disse Zambuja pai
- mas, pai, eu ainda não entendi, tem esse lugar chamado supermercado e tem dinheiro pra comprar comida. Os seres humanos já nascem com dinheiro?
- não, filho, não são todos que nascem com dinheiro
- então, quer dizer, que não são todos que se alimentam
- é isso
- o que eles fazem?
- alguns morrem de fome
- fome? – perguntou Zambuja Jr.
- é, filho, é um conceito difícil de entender. Enfim, são seres humanos, são seres estranhos! – disse Zambuja pai
- mas, enfim, pai, explica esse negócio aí de copa do mundo
- filho, a gente que gosta de assistir buraco negro e ouvir as constelações não vai achar tão engraçado assim e bonito ver futebol. Mas, é um esporte muito amado pelos brasileiros, então, respeite, viu. O Marighella faleceu no dia da copa do mundo, tadinho, adorava jogar esse tal de futebol, fiquei muito triste, foi a gota d’água pra mim, entendi nesse dia o conceito de lágrimas e angústia dos seres humanos.
- pai, vai devagar, o senhor fala rápido, e eu não consigo entender tudo. O que é futebol?
- futebol é uma diversão. É assim, é um bando de homens correndo atrás de uma bola e eles precisam chutar dentro de um quadrado que eles chamam de gol, entendeu
- o quadrado fica vazio?
- não, filho, lá dentro, tem um tal de goleiro, que é o único que pode pegar a bola com as mãos
- os outros não podem?
- não, filho, pegar a bola com as mãos é proibido lá
- pai, tem muitas coisas que eu não tô entendendo
- é normal, filho, é assim mesmo! São seres humanos, são seres estranhos, não fica preocupado, qualquer coisa, lembra que a possibilidade de criar o tempo e de ver o tempo parar não é impossível. Meu filho, não quero que você julgue os seres humanos, mesmo os mais abobalhados, acredite em mim, eles são criaturas muito amorosas e que são capazes de coisas lindas e fantásticas. Eu tenho certeza que você vai gostar muito dos homens e mulheres de lá. Quando a gente assistir o buraco negro, eu vou ser desmaterializado, nesse dia, eu desejo que você, meu filho, vai conhecer o Brasil e faça amigos
- combinado, pai, combinado
Os dois sorriram.
- filho, você tem mais alguma dúvida sobre os seres humanos?
- o que é homem? O que é mulher?
- ah, filho, isso aí é o conceito mais difícil de explicar, acho que mais difícil até que o dinheiro. Eu fiquei uns tempos lá no Brasil, eu realmente não entendi a diferença entre um homem e uma mulher. Mas, eu sugiro que você faça o seguinte. É, para o seu próprio bem, não vai disfarçado de mulher, elas são muito cheia de limitações, nem todos gostam de escutar elas, são muito humilhadas e correm muito mais perigos do que os homens
- eu vou como homem?
- isso! – Zambuja mostrou uma fotografia para o seu filho – um homem é isso lá!
Era uma fotografia de um modelo masculino de revistas dos anos 70. Um homem com cabelinho curto e olhos azuis.
- essas criaturas são bem respeitadas pela população de seres humanos, principalmente, quando elas têm muito dinheiro. Eu não entendi por que, meu filho, algumas dessas criaturas que eu conheci eram, como eram as palavras que eu escutava entre os seres humanos.... Nossa, eu esqueci, ah lembrei... eram criaturas escrotas! Isso mesmo! Eram criaturas escrotas, para eles, isso era respeito e beleza – disse Zambuja pai
-isso é um homem, pai? – perguntou Zambuja jr.
- bom, é estranho esse conceito, meu filho, bem estranho mesmo, veja bem, - Zambuja mostrou outra fotografia para o seu filho, era a fotografia de David Bowie.
- mas, pai, esse era o nosso amigo que vivia trazendo roupas legais da Terra – animadamente, disse Zambuja jr.
- é o Ziggy Stardust, é ele mesmo, meu filho, mas lá, para muitos, consideravam ele um homem de verdade, falavam até que ele era bonito; para outros não, chamavam de estranho. Filho, tá vendo, como esses seres humanos são estranhos e relativos, ter um pensamento preto no branco para conviver com eles não é uma boa ideia. Porque eles vivem mudando de opinião, dizem coisas que a gente não compreende muito
- o que caracteriza um homem, pai? – perguntou Zambuja jr.
- é isso, filho – Zambuja mostrou uma fotografia -, para alguns, o que caracteriza um homem é o órgão reprodutor masculino, alguns chamam de pênis, outros chamam de pau, falo, pinto, dick, caralho e etc. Você vai ouvir muitos nomes para isso.
- mas ter isso é suficiente para ser um homem? Bom, vamos para oposição, pai, o que seria uma mulher? – perguntou Zambuja jr.
- ah, vou mostrar pra você! – Zambuja mostrou uma fotografia da capa da revista Playboy – é isso, meu filho
- hum... Agora, fiquei confuso, as mulheres são lindas, pai! A diferença é porque um tem isso (aponta para fotografia do pênis) e a outra não tem isso (aponta para revista playboy). E, somente por causa da ausência disso (aponta novamente para fotografia do pênis), uma ausência inata, ou seja, uma ausência que não é por uma questão de escolha; logo, o homem é mais respeitado do que a mulher
- é isso, mas as coisas começam a ficar bem complicadas, quando você começa a ver outros fenômenos
- existem outros?
- filho, nós, extraterrestres, não temos capacidade intelectual para entender a lógica dos seres humanos. Mas eu te garanto, quando eu fui para Terra como mulher, não fui tão bem tratada não, mas quando fui para Terra como um homem, fui bem mais respeitado na rua. Por isso, sugiro que você vai para Terra como um homem
- Bom, me conte mais, pai, das suas aventuras do mundo terrestre?
- ah, filho, bom, tirando essas coisas estranhas dos seres humanos, fui muito bem tratado. Marighella era um baiano muito inteligente, gostava bastante de futebol, era uma figura bem engraçada, gostava de escrever poesias, era muito forte e coerente nas suas escolhas, às vezes, um pouco sério. Por isso, às vezes, eu gostava mais de conversar com Tim Maia
- quem é Tim Maia?
- era uma figura ótima, cantava muito bem, fazia todo mundo rir e botava moral em muitas pessoas em cima do palco. Você ia gostar de ter visto ele, meu filho, você que adora ouvir a orquestra das estrelas. Que é linda, meu filho! Mas, não tem nenhuma comparação do que ter visto um show de Tim Maia, o cara era realmente uma figura muito engraçada. Eu juro que eu achei que ele era um extraterrestre. Tinha todos os trejeitos
- e não era, pai?
- você sabe que eu ainda estou bem desconfiado, se era, não era da mesma via láctea que a gente mora
- pai, eu vou ao Brasil, depois que a gente vê o Buraco negro, vou por curiosidade. Mas vou fazer do meu jeito
- ah, filho, você vai gostar, só não se esqueça, os seres humanos são criaturas estranhas, mas adoráveis
Essa foi uma das últimas conversas entre Zambuja Jr. com seu pai. Após o buraco negro, Zambuja Jr. se vestiu como uma mulher e desceu ao planeta Terra. Ele escreveu no seu diário uma lista de metas e realizações que gostaria de fazer nesse novo mundo:

“ – conhecer o mar
- descobrir o que é futebol
-  conhecer um homem de verdade
- conhecer uma mulher de verdade
- descobrir os outros fenômenos que o seu pai falou
- fazer amigos”

Zambuja Jr. começou a caminhar naquela estrada quente, sentiu a primeira diferença corporal. Havia outro clima nesse país, ele não estava acostumado com essa sensação de cansaço e quando passou a mão na pele, sentiu que suava. Distante, percebeu que algo estava mexendo, Zambuja Jr. gritou: “ei!ei!”. Era um material grande, parecia ferro, andando muito rápido que atravessou e quase derrubou o nosso amigo extraterrestre para o outro lado da ponte.
- ei, seu maluco, não fica no meio da estrada, anda na ponte! – disse um cara qualquer
- ponte? – Zambuja jr. viu uma ponte
- ah! Ponte! – Zambuja jr. coçou a cabeça. – moço, o que era aquele corpo de ferro grande que andava rápido?
- era um carro, seu imbecil!
- ah! Um carro, - Zambuja jr. sorriu -, obrigado, seu imbecil!
As aventuras do nosso amigo extraterrestre vão começar, ele está muito ansioso para conhecer a famosa Terra tão amada por Zambuja de Marte pai. 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Poetas populares

À Elisa Lucinda

O povo não conhece os seus poetas populares
Um violeiro morreu atropelado no meio da calçada
Cantava música de caipira
Que ninguém conhecia
A viola morreu desconsolada
Porque nenhuma criança queria aprender tocá-la
O povo esquece os seus poetas populares
Que cantavam uma história de sangue e glória
De um povo que o povo não quer lembrar
A memória do Brasil é uma invenção Brazileira
O povo que morre à toa por tristeza

Falta d’ comida
Falta d’ educação
Falta d’ memória
Falta d’ água
Falta d’água de chorar
Falta d’água pra beber

Águas de março que param o trânsito
Brasil não é brincadeira, há seriedade no carnaval que passa
Há seriedade no samba da moça de cabelo duro e nos corações de um povo sem pátria
Brasil não é brincadeira, há seriedade no verão
Verão sonhos desmantelados

Caminham a massa sem rosto
Indecisa, sem caminho
Os poetas populares andam em desalinho
Nem anônimos são
Eles perderam a dimensão
De como a importância deles
Marcam uma história
Os poetas populares não gostam mais de poesia
Precisam ganhar a vida

O povo se esqueceu dos seus poetas populares
E os poetas populares se esqueceram de cantar o povo  

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Seco

Os poros não fecham
Os pelos não molham
Os dias não passam
A tristeza não vem

As estrelas sentem preguiça de brilhar
A lua não fica mais cheia
A boca implode
Os ouvidos explodem
As mãos destroem
O açúcar salga
O azedo adoça
O vazio dimensiona
A água mata a sede
A sede não cessa
Seca o mundo  

O seco que seca tudo 

Profundidade

lavei minha cabeça
duas, três, quatro vezes
lavei meus cabelos fio por fio
fiquei com a cabeça lavada
cabelos cheirosos, limpos e belos,
mas a minha consciência não se limpou
a minha angústia não toma banho
durmo fedendo todo o dia com a cabeça limpinha 

O verdadeiro remédio para fim de namoro: a laranja e as palavras

está impresso na minha testa
a impressão besta
da nossa última detestável conversa
já esquecida

não se preocupe
não estou chateada
frases são assim mesma,
de natureza efêmera,
mais cedo ou mais tarde,
elas serão esquecidas

(obs: espero esquecer tudo
espero ser esquecida do mundo)

vamos conversar
sei que esse é o fim de tudo
isso é a nossa separação
sei que, possivelmente, eu encontre uma outra pessoa
e aconteça o mesmo com você
mas, agora, quando as coisas estão em chamas
e você está aí, sentado na beira da cama,
eu estou aqui, deitando-me sobre os ouvidos, adiando o término dessa discussão
não escutando suas palavras de fúria contra mim,
não gritando ternas palavras cruéis, cobertas de arrependimento.
são só palavras, eu sei. (Vou me contradizer), você também é poeta,
sei que entende que as palavras são só palavras.
mas, nesse instante, eu aqui e você aí, sentado na beira da cama.
uma palavra pode estar no meio do caminho.

as frases são assim mesmo,
de natureza efêmera,
mas uma palavra
modifica uma era

sei que está impresso no meu corpo
todas as nossas conversas,
fincadas como tatuagem
E o que me resta?
esquecer o mundo que tinha você
e fazer um mundo, onde eu possa ser esquecida por todos

meu poeta, todas as minhas escritas foram para você
depois que o nosso amor acabou
eu preciso me reinventar
essa é a parte difícil
torna-me branca, virgem outra vez
preciso aprender a esquecer, e para isso faço-me lembrar
de tudo que eu me tornei por sua causa
de tudo que eu perdi e realizei por causa dessa última detestável conversa
precisei apanhar os caquinhos do que sobrou,
quando você saiu do apartamento

houve consentimento no fim
as lágrimas de domingo foram inevitáveis
 a música que ouvi no supermercado
a laranja que tinha o seu nome na casca

meu amor, passei os meus dedos na casca da laranja
senti que o cheiro que exalava era o seu
coloquei-a na minha boca
a saliva molhou minha pele
a laranja revelou no meu ouvido sua palavra secreta
senti você
tive que preencher minha memória
de suco de laranja
escutei o telefonema, era Marcela cobrando minha presença:
-Bruna, você esqueceu de escrever aquela redação?
- mas, justo hoje?
- venha aqui agora
Tive que ir

o mundo não se esqueceu de mim
por outro lado, enchi minha memória de suco de laranja
quando choro repentinamente, sinto que minha lágrima
tem cheiro de fruta cítrica. Aí, meu sorriso fica azedo,
minhas palavras perdem o jeito lacunar, todas hoje têm dimensão de laranja
peso, sabor, altura e formato